quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A Lei de destruição[1]


Maria Ribeiro

A parte terceira de O Livro dos Espíritos é reservada a esclarecer sobre as leis morais, classificadas por Kardec com a permissão dos Espíritos em dez partes; aliás, a mesma divisão mosaica e que, segundo os Orientadores do Plano Maior, abrangem todas as circunstâncias da vida.
Dentre as leis morais, a lei de destruição parece ser a menos compreendida, também pouco abordada. O capítulo VI representando a quinta lei – lei de destruição – aborda: destruição necessária e destruição abusiva; flagelos destruidores; guerras; homicídio; crueldade; duelo e pena de morte. Na questão 728, Kardec argui aos Instrutores do Além se a destruição é uma lei da Natureza ao que eles prontamente respondem:
“- É preciso que tudo se destrua para renascer e se regenerar, porque o que chamais destruição não é senão uma transformação que tem por objetivo a renovação e melhoramento dos seres vivos”.
Na Gênese, no capítulo III, lê-se:
“Para aquele que não considera senão a matéria, que limita sua visão à vida presente, isso parecerá, com efeito, uma imperfeição na obra divina”.
Entre os animais forma-se a cadeia alimentar que promove na natureza um equilíbrio ao qual ninguém se dá conta. Entre os seres inferiores, desprovidos de senso moral, a mais imperiosa necessidade é a da nutrição – lutam para viver. “É nesse primeiro período que a alma se elabora e se ensaia para a vida”.
O homem passa por uma fase de transição e, nas primeiras idades, o que prevalece é o instinto animal; depois, este se contrabalança com o sentimento moral e agora a necessidade é satisfazer o desejo de domínio; somente muito depois, com o desenvolvimento do senso moral começa a surgir uma maior sensibilidade e “o homem passa a lutar contra as dificuldades e não mais contra seus semelhantes.” Na atualidade o homem se transformou no principal consumidor de alimento animal, e as pesquisas gastronômicas lançam sempre suas novidades; e não se pode crer, que isto se dê com o cruel intuito de massacrar os pobres bichinhos. O hábito de consumir carne parece incomodar um grupo formado dentro do Movimento Espírita que quer a todo custo demovê-lo, lutando contra a condição que a Natureza, ao menos provisoriamente, os colocou: de um lado, os animais, que desde a gênese mosaica foram dados aos homens para sua provisão; e de outro, os homens, cuja constituição orgânica exige proteína de origem animal. Isto se deve ao fato de alguns adeptos pouco convictos e superficialmente conhecedores de fato do Espiritismo, se deixarem seduzir pelas informações vindas de Espíritos mais facínoras do que sérios. Ainda no capitulo anterior que trata da lei de conservação, Allan Kardec, na questão 723 questiona se “a alimentação animal, entre os homens, é contrária à lei natural” e os Espíritos Codificadores objetam, muito claramente:
”- Na vossa constituição física a carne nutre a carne, de outra maneira o homem enfraquece. A lei de conservação dá ao homem um dever de entreter suas forças e sua saúde para cumprir a lei do trabalho. Ele deve, pois, se alimentar, segundo o exige a sua organização”.
Conclui-se que o primeiro dever do homem é zelar pela própria saúde e bem estar físico, o que, durante os estágios primitivos, ele procura fazê-lo instintivamente. De outra forma, ele não encontrará subsídios para desenvolver outros deveres, cumprir outras leis. Voltando à Gênese, no item 21 do referido capítulo, em destaque, está declarado:
“- A verdadeira vida, do animal, tal como a do homem, não se encontra no envoltório corporal, como também não se encontra em seu vestuário; ela está no princípio inteligente, que preexiste, e que sobrevive ao corpo”.
Daí, cabe perguntar, de onde estes companheiros tiraram tanta coragem para contradizer de forma tão aberrante aos insignes Codificadores: Kardec e os Espíritos adjudicados de tamanha missão. Seja coragem, seja estupidez, fato é que se trata de uma insolência absurda, pois que não há ninguém encarnado ou desencarnado à altura daqueles que trouxeram a Doutrina Espírita, ao menos agora. Demorará ainda talvez alguns séculos para que os missionários ressurjam para acrescentar na Codificação o que o próprio Kardec, na sua simplicidade, afiançou. Isto vai depender do avanço moral dos homens, que na atualidade ainda se encontram num tal estado entusiasta que chega ao ponto de negligenciar e desmentir a Verdade proposta pela Doutrina Espírita.
Quer estas colocações Espíritas dizer que tal destruição é necessária. Recorram-se às palavras Kardequianas:
“Uma primeira utilidade que se apresenta nesta destruição, utilidade puramente física, certamente, é essa: os corpos orgânicos não se alimentam senão com a ajuda de matérias orgânicas, uma vez que estas matérias são as únicas que contêm os elementos nutritivos necessários à sua transformação. Os corpos, instrumentos de ação do princípio inteligente, têm necessidade de ser incessantemente renovados; a Providência os faz servir a seu mútuo alimento; é por isso que os seres se nutrem uns dos outros; então é o corpo que se nutre do corpo, porém o Espírito não se aniquilou, nem se alterou; apenas, despojou-se de seu invólucro”.
Outro aspecto relevante relacionado a isto é que é na luta que o Espírito se desenvolve: ele adquire habilidades e exercita sua inteligência, para enfim, adquirir conhecimentos e experiência, distanciando-se cada vez mais dos sinais de animalidade.
Dentro desta destruição que Kardec denomina necessária, remeta-se a uma prática imensamente útil a Humanidade, que é a sujeição de determinadas espécies animais para experimentos científicos. Por mais avançada esteja a tecnologia, seria impossível prescindir da participação destes nossos irmãos de ordem inferior na Criação* nas pesquisas de fármacos, ou para provar a eficiência das drogas farmacológicas, e em outras pesquisas onde a existência de um organismo perfeitamente vivo é um imperativo. Isto só tem trazido benefícios; aliás, existem regras éticas que regulam estas práticas. Sobre este particular, os Espíritos já haviam dito que o direito de destruição é regulado pela necessidade de provisão, e que o abuso jamais foi um direito. (734) Ou seja, não é só para a alimentação que os homens precisam dos animais, mas para o desenvolvimento de parte de sua Ciência, e principalmente da Ciência que preserva sua saúde e sua vida física. Pergunta-se: o que aconteceria hoje se ficasse terminantemente proibido a utilização dos animais nos experimentos científicos? Como seriam divididos os espaços físicos entre os homens e os animais, se ficasse proibido o consumo de carne? E se todos se tornassem vegetarianos, a demanda de vegetais atenderia prontamente a todos? São questões que precisam ser pensadas, antes da propaganda de que a Doutrina Espírita proíbe o consumo de carne, palavras dos seguidores de Espíritos orientais. Está reservado o direito de excluir o alimento de origem animal do cardápio aos que voluntariamente despertarem o desejo do vegetarianismo. Mas que não esteja vinculado a esta escolha o atendimento a qualquer recomendação doutrinário-Espírita.
Com base no que as Excelsas Entidades afirmam nas obras fundamentais do Espiritismo, infere-se que, até chegar a um estado cuja nutrição independa da proteína animal, o homem tem muita carne a comer. A esta ideia não se associe uma motivação para os exageros, afinal, o exagero em tudo é maléfico.
Aliás, a constituição orgânica tem por base substâncias inorgânicas encontradas praticamente em tudo na natureza, tais como, oxigênio, hidrogênio, carbono e nitrogênio, entre outros, que, ao contato do fluido vital, ganham vida e, ao se combinarem entre si, adquirem a forma de aminoácidos, que são as unidades formadoras de proteínas. Proteínas e vida andam juntas, pois além de serem fundamentais para a construção dos organismos, também funcionam como enzimas e, nos vertebrados, funcionam como anticorpos. Muitas destas descobertas se realizaram após a Codificação, provando que os Espíritos sabiam perfeitamente do que falavam, enquanto que para o homem comum os informes científicos ainda representam grandes incógnitas…
À medida que o homem evolui moralmente, seu corpo exigirá alimentos menos densos. Quanto mais material é o mundo onde habita, mais material será sua alimentação. Quando atingir esferas menos atrasadas, sua constituição física sendo mais sutil, obviamente exigirá igualmente alimentos mais sutis. Não se deve esquecer que o Espírito retira do ambiente onde vai estagiar, os elementos (fluidos) para formação de seu perispírito (na verdade, sua condição Espiritual é que atrairá tais elementos), e a partir deste, a formação do corpo físico de acordo com os elementos (materiais) desse globo. Portanto, nada impediria que um Espírito muito elevado encarnado na Terra, por exemplo, utilizasse para sua nutrição, as iguarias de origem animal, já que seu corpo físico é de constituição idêntica ao dos demais, tendo as mesmas exigências.
Kardec se preocupou em trazer esclarecimento sobre os flagelos de que o homem muitas vezes se torna vítima, e na questão 737 pergunta qual o objetivo destes para os homens. E a resposta diz que é para fazer a humanidade avançar mais depressa. Na questão seguinte, os Espíritos afirmam que Deus oferece aos homens outros meios de progredir, mas eles não os aproveitam, pois não utilizam o discernimento do bem e do mal, ou seja, praticam o mal e deixam de praticar o bem, mesmo com conhecimento de causa. São provas que farão o homem exercitar alguns valores, como inteligência, paciência, resignação, abnegação, desinteresse e amor ao próximo; valores imprescindíveis para seu progresso. Além disso, têm os flagelos uma utilidade sob o ponto de vista físico: regiões sofrem alterações que trarão benefícios para as gerações futuras. (739/740)
De uma forma ou de outra, também o corpo do homem sofre a destruição. Dada a morte física, suas vestes carnais darão início ao espetáculo da total desorganização. As transformações post-mortem se iniciam em média duas horas após a morte. Microrganismos encetam o trabalho destruidor, mesmo antes da inumação. Não será exagero defender esta empreitada de que foram dotadas as bactérias – transformar um corpo em elementos menores, até que estes, recombinando-se entre si ou com outros elementos, deem origem a outras formas de vida. Por isso não há o que se chama destruição no sentido de aniquilamento. Na verdade, deixa-se de existir uma forma para continuar existindo em outra, tanto o homem como tudo o que Deus criou.
Os Espíritos não assemelharam o instinto de destruição com a crueldade, alegando que aquela às vezes faz-se necessária, e essa nunca o é. E concluem a questão 752: “ela é sempre o resultado de uma natureza má”. O que leva a estes eventos infelizes entre os homens é a predominância da natureza animal sobre a espiritual, onde a satisfação das paixões fala mais alto; das paixões levadas ao exagero, pois que, equilibradamente, podem levar o homem a grandes coisas. (907/908) Quando um indivíduo age mal, porém para se preservar e preservar a sua espécie obedece ao instinto de conservação, do qual todos os seres são dotados. Então não se classifica como cruel ao liquidar outro com este fim. Mas à medida que se desenvolve, adquire noções sobre o bem e o mal, e agora, se age de idêntica forma, já responderá mais severamente, porque racionalmente, obedecendo ao seu egoísmo, faz o mal, o mesmo que ele fazia quando não podia ter noção mais exata das coisas, portanto, é um sujeito cruel. Mas é claro que estes julgamentos pertencem somente Àquele que a tudo e todos conhece. Cada qual que se julgue a si mesmo e reflita se ainda tem atitudes cruéis ao invés de querer buscar classificações para os outros.
O planeta Terra testemunha ocorrências absurdas que se sucedem uma sempre mais cruel que a anterior, causando sensações de derrota pessoal e coletiva; local onde permanecem vinculados Espíritos ainda afins com o mal, onde ainda existe a pena de morte, legal ou veladamente, como estimar uma data para um mundo melhor, ou por outra, para advento do mundo de regeneração? Nem Jesus se atreveu a demarcar uma data para o estabelecimento do equilíbrio no planeta: ”Porém daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, mas unicamente meu Pai. (Mt 24,36)” Obviamente, porque tal evento depende unicamente da evolução humana.  Em O Livro dos Médiuns, em resposta à pergunta 11ª do item 298, lê-se: ”… Os Espíritos levianos que não têm nenhum escrúpulo em vos enganar, indicam os dias e as horas sem se inquietarem com o resultado. Por isso, toda previsão circunstanciada, deve vos ser suspeita”.
Mas o Cristo também alertou: ”Vigiai, pois, em todo o tempo, orando, para que sejais havidos por dignos de evitar todas essas coisas que hão de acontecer e de estar em pé diante do Filho do Homem.” (Lc 21, 36), como a dizer que está ao alcance do homem evitar muitas tragédias, materiais ou morais, e entende-se por “orando”, não simplesmente no sentido literal, mas no sentido ativo do termo. Orar também é pensar sempre no bem, em qualquer circunstância, e no bem da coletividade, trabalhando e investindo para a melhoria das instituições, que infelizmente, só funcionam muito precariamente. Há que se atender às atuais necessidades sociais, com a revisão de leis; com o repensar sobre os atuais modelos implementados que já não funcionam.
Enquanto aguarda-se ansiosamente pelo mundo de regeneração, milhões de irmãos morrem de fome, outros tantos morrem nas guerras, seja nas regiões do mundo envolvidas culturalmente com as guerras (se assim se pode expressar), seja nas guerras das metrópoles: trânsito, assassínios motivados por diversas razões, latrocínios, drogas… Outros milhões anseiam pelo carnaval, pelas festividades, pela copa do mundo, como se nada tivesse acontecendo. Há muito recurso pecuniário envolvido em tudo isso, mas não há um tostão para atender as necessidades básicas das pessoas. Não seria isto um duelo, aliás, um terrível duelo? São homens contra homens: de um lado, homens poderosos e afortunados, do outro homens miseráveis e esquecidos. E no meio? No meio tem-se uma espada afiada representada por outros homens, presunçosos e egoístas que não tomam partido, já que seus interesses não sofrem danos nesse duelo.
Aqui não haveria necessidade da aplicação desta lei? Destruir os costumes bárbaros, que igualam o homem ao bruto; pois os costumes bárbaros também se modernizaram e tomam corpo entre nós.
Ao que parece é o mundo de regeneração que aguarda pelos homens. Ele já é uma realidade para todos os que trabalham ou trabalharam por conquistá-lo. É uma outra promessa do Cristo que se cumpre para estes porque não será algo milagroso, um acontecimento inusitado, maravilhoso, repentino… O mundo de regeneração será resultado de uma construção coletiva, partindo de atitudes individuais. E para que ele seja efetivamente instaurado, será preciso destruir o atual sistema de coisas, romper com os valores vigentes, e que, de uma forma ou de outra, recebem o aval de todos.
Esta Lei de destruição analisada pelos Espíritos faz que se reflita sobre como as transformações ocorrem após o declínio de algo, que pode ocorrer sutil ou bruscamente. Alguns sistemas de governo só mudaram após muitas comoções, até mesmo após revoluções sangrentas, por exemplo. Os eventos inovadores chegam para transformar um certo estado de coisas, e, à primeira vista, seus resultados podem ser considerados negativos ou ruins, dada a visão superficial e imediatista dos homens. Estes eventos acabam incitando os indivíduos para o trabalho, pois que deles exigirá o exercício da inteligência através das pesquisas e descobertas.
No mundo material tudo se transforma sempre visando o bem e um mais perfeito estado de coisas, na tentativa de redirecionar o homem para uma visão toda Moral. Nada ocorre sem uma legítima utilidade. Deus, supremo Bem e Amor, todo Bondade e Justiça, conhece as reais necessidades de cada Ser da Criação, e todas as leis que estabeleceu são solidárias entre si, cabendo aos homens, se instruírem e se moralizarem para compreendê-las na sua integridade, na sua utilidade, na sua grandiosidade.
*Imitando os Espíritos e Kardec, utilizamos este termo, mas, na nossa indigna condição, por falta de um mais adequado, reconhecendo-se grandeza em todas as obras da criação.

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