domingo, 15 de maio de 2016

Haverá justificação para a ingratidão?[1]



Diamantino Lourenço R. de Bártolo[2]  

Venade - Caminha, Viana do Castelo (Portugal) 
 

As causas que, eventualmente, possam estar na origem de atitudes e comportamentos mal-agradecidos, acredita-se que sejam de natureza diversa e que, quaisquer que sejam os motivos, não justificam os procedimentos caraterísticos da ingratidão: insensibilidade para reconhecer valores, sentimentos e atitudes recebidas, como, por exemplo: amabilidades, consideração, estima, amizade, solidariedade, lealdade. 

 Falta de humildade, em certo tipo de personalidade? Esquecimento, puro e simples, de reconhecer um bem recebido? Ausência do hábito de agradecer àqueles que praticam o bem, em benefício concreto de outros? Falta de delicadeza para agradecer um simples favor? Vergonha de manifestar comportamentos suaves e atos de gratidão?

 Possivelmente outros motivos se poderiam invocar para os procedimentos e atitudes ingratos, ou pelo menos de não gratidão, todavia, o fato é que ela, a ingratidão, existe, se manifesta e, quantas vezes, magoa e ofende justamente quem ficaria feliz em receber o reconhecimento, um humilde sorriso generoso e sincero, um simples obrigado.

 O mundo atual, na sua dinâmica globalizante, provoca comportamentos individuais e coletivos que, cada vez mais, se afastam dos simples e elementares valores da gentileza, da humildade e da gratidão. Quantas vezes o favor é negociado pela troca por outro favor, por outro benefício ou por um outro valor material concreto! 

 A troca de favores, de influências, de cargos e posições sócio-estatutárias torna-se uma prática quase corrente e, na constituição dos respectivos intervenientes, muito embora tais costumes não sejam perniciosos quando há benefício para as partes envolvidas. Formação e educação para valores desta natureza, boas práticas na e a partir da família, ou de grupos de amigos e comunidades mais restritas, podem integrar-se numa dinâmica de cooperação institucional, devendo-se implementar, por processos legais e transparentes, os procedimentos que conduzam aos melhores resultados.

 Gratidão, gentileza, humildade serão conhecimentos, práticas, princípios, valores, deveres ou quaisquer outras designações que, na mentalidade de quem não os pratica, possivelmente, não se enquadrem num saber-fazer que proporciona lucros, dividendos materiais: em numerário, ou de natureza ainda mais substantiva. Como se chega a esta insensibilidade é uma questão que se compreende com alguma clareza, pelas razões já apontadas, entre outras, eventualmente, ainda mais graves.

 Ao acentuar-se esta insensibilidade, face ao sentimento de gratidão, caminha-se para situações que se podem tornar causadoras de maiores desigualdades. Quem não tem poderes, vontade, gentileza e mesmo carinho para retribuir um favor com outro favor recebido, possivelmente, não adquirirá qualquer apoio, benefício e compreensão de quem o possa fornecer se souber que em troca apenas recebe, quando recebe, um quase forçado e indiferente “muito obrigado”.

Agradecer o recebimento de um benefício, uma ajuda, uma solidariedade, apenas com sentimentos de constrangida gratidão, de uma atitude de aparente e respeitoso reconhecimento, pode significar nunca mais se ter apoio daquela pessoa que foi objeto de afetada gratidão, por palavras, por sentimentos e atitudes de admiração e gestos gratos.

 A gentileza, a cordialidade, a boa educação traduzidas por palavras e gestos simbólicos, embora significantes, mas tudo como que por autoimposição, parece que já não satisfazem a muitos daqueles que esperam agradecimentos mais concretos e objetivos, suscetíveis de uma determinada veracidade.

 São múltiplas, profundas e sofisticadas as causas da ingratidão que se alastra, silenciosamente, na sociedade: múltiplas, porque envolvem vertentes que vão da depreciação de valores essenciais, abstratos e simbólicos à insuficiência da preparação, educação e formação de muitas pessoas; profundas, porque vêm minando os princípios mais elementares que sustentam a solidariedade, a amizade, a lealdade, a confiança e a compreensão.

 Parece que se tenta materializar tudo a partir de conceitos e comportamentos que, em muitos casos, são fomentados nas organizações que, num passado recente, mereciam a maior credibilidade e respeito: família, escola, empresas, associações e instituições de diverso cariz.

 Sofisticadas, porque, sub-repticiamente, e com a hipocrisia de aparente humildade, se insinua uma prática de troca de favores, influências e até mesmo a compra de tais benefícios e apoios, isto é, diz-se um muito obrigado, mas… fica a insinuação de que isso é muito pouco para agradecer o bem recebido por favor, às vezes com amizade sincera de quem o fornece.

 Ao longo da vida de cada pessoa, e quando esta já viveu algumas décadas, ocorrem situações que comprovam tanto os atos de generosidade, de solidariedade, de favores, como os que se lhes seguem de reconhecimento, agradecimento ou ingratidão.

 Toda pessoa tem destas experiências, e quando se verificam mais casos de ingratidão, para com a mesma pessoa, esta terá uma tendência natural para se tornar menos sensível a praticar determinadas atitudes que conduzem a boas práticas e à disponibilização para fazer o bem, ouvindo-se, frequentemente, lamentos e críticas no sentido de que, afinal, não é estimulante praticar boas ações, fazer favores, ajudar, porque muitas pessoas não reconhecem nem agradecem nada depois de atingirem os seus objetivos e se instalarem no pedestal que desejavam. 

 Apesar de situações e comportamentos destes, ainda existe muita solidariedade, principalmente em situações-limite, ou de extrema fragilidade, e quando intervêm órgãos de comunicação social ou instituições de solidariedade social. Nestas circunstâncias, surgem, de fato, os benfeitores que, sem esperarem qualquer ato de gratidão, ajudam, generosamente, quem está a passar por grandes dificuldades.

 O humanismo que existe em muitas pessoas pode ser a base de partida para a criação de grandes movimentos e instituições de solidariedade que, simultaneamente, espalham o bem e transmitem a ideia de gratidão para com aqueles que participam nestas instituições, isto é, benfeitores que se solidarizam com uma situação, uma causa, uma iniciativa humanitária e altruísta; se se sentirem alvo de gratidão dessa instituição, os beneficiários que posteriormente vierem a ser contemplados, pela mesma instituição, sentir-se-ão na obrigação de manifestarem gratidão e reconhecimento públicos. Talvez se gere uma cadeia de solidariedades e gratidões que, dentro de algum tempo, todos possam manifestar esse sentimento tão nobre, quanto humilde.

 As causas da ingratidão podem, pois, (e devem) ser combatidas a partir da interiorização de princípios e valores, sentimentos e emoções verdadeiras que suportem e justifiquem, precisamente, comportamentos e atitudes gratas. Ensinar, no sentido de adquirir conhecimentos e avaliá-los, esta virtude que é a gratidão não se afigura tarefa fácil; transmitir, por atos, palavras e exemplos concretos, boas práticas de gratidão e sensibilizar crianças, jovens e adultos para o cultivo de permanente atitude de gratidão, afigura-se possível: na família e na escola; na igreja; entre amigos; na pequena comunidade; também no contexto mais amplo da sociedade.



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