J. Herculano Pires
Vou me deitar para dormir. Mas
posso morrer durante o sono. Estou bem, não tenho nenhum motivo especial para
pensar na morte neste momento. Nem para desejá-Ia. Mas a morte não é uma opção,
nem uma possibilidade. É uma certeza. Quando o Júri de Atenas condenou Sócrates
à morte, ao invés de lhe dar um premio, sua mulher correu aflita para a prisão,
gritando-lhe: "Sócrates, os juízes te condenaram a morte". O filosofo
respondeu calmamente: "Eles também já estão condenados". A mulher
insistiu no seu desespero: "Mas e uma sentença injusta!" E ele
perguntou: "Preferias que fosse justa?" A serenidade de Sócrates era
o produto de um processo educacional: a Educação para a Morte. É curioso notar
que em nosso tempo só cuidamos da Educação para a Vida. Esquecemo-nos de que
vivemos para morrer. A morte é o nosso fim inevitável. No entanto, chegamos
geralmente a ela sem o menor preparo. As religiões nos preparam, bem ou mal,
para a outra vida. E depois que morremos encomendam o nosso cadáver aos deuses,
como se ele não fosse precisamente aquilo que deixamos na Terra ao morrer, o
fardo inútil que não serve mais para nada.
Quem primeiro cuidou da
Psicologia da Morte e da Educação para a morte, em nosso tempo, foi Allan
Kardec. Ele realizou uma pesquisa psicológica exemplar sobre o fenômeno da
morte. Por anos seguidos falou a respeito com os espíritos de mortos. E,
considerando o sono como irmão ou primo da morte, pesquisou também os espíritos
de pessoas vivas durante o sono. Isso porque, segundo verificara, os que dormem
saem do corpo durante o sono. Alguns saem e não voltam: morrem. Chegou, com
antecedência de mais de um século, a esta conclusão a que as ciências atuais
também chegaram, com a mesma tranquilidade de Sócrates, a conclusão de Victor
Hugo: "Morrer não é morrer, mas apenas mudar-se".
As religiões podiam ter prestado
um grande serviço à Humanidade se houvessem colocado o problema da morte em
termos de naturalidade. Mas, nascidas da magia e amamentadas pela mitologia, só
fizeram complicar as coisas. A mudança simples de que falou Victor Hugo
transformou-se, nas mãos de clérigos e teólogos, numa passagem dantesca pela selva selvaggia da Divina Comedia. Nas civilizações agrárias e pastoris, graças ao seu
contato permanente com os processos naturais, a morte era encarada sem
complicações. Os rituais suntuosos, os cerimoniais e sacramentos surgiram com o
desenvolvimento da civilização, no deslanche da imaginação criadora. A mudança revestiu-se de exigências
antinaturais, complicando-se com a burocracia dos passaportes, recomendações,
trânsito sombrio na barca de Caronte, processos de julgamento seguido de
condenações tenebrosas e assim por diante. Logo mais, para satisfazer o desejo
de sobrevivência, surgiu a monstruosa arquitetura da morte, com mausoléus,
pirâmides, mumificações, que permitiam a ilusão do corpo conservado e da
permanência fictícia do morto acima da terra e dos vermes. Morrer já não era
morrer, mas metamorfosear-se, virar múmia nos sarcófagos ou assombração
maléfica nos mistérios da noite. As múmias, pelo menos, tiveram utilidade
posterior, como vemos na Historia da Medicina, servindo para os efeitos
curadores do pó de múmia. E quando as múmias se acabaram, não se achando
nenhuma para remédio, surgiram os fabricantes de múmias falsas, que supriam a
falta do pó milagroso. Os mortos socorriam os vivos na forma lobateana do pó de
pirim-pim-pim.
Muito antes de Augusto Comte, os
médicos haviam descoberto que os vivos dependiam sempre e cada vez mais da
assistência e do governo dos mortos. De toda essa embrulhada resultou o pavor
da morte entre os mortais. Ainda hoje os antropólogos podem constatar, entre os
povos primitivos, a aceitação natural da morte. Entre as tribos selvagens da
África, da Austrália, da América e das regiões árticas, os velhos são mortos a
pauladas ou fogem para o descampado a fim de serem devorados pelas feras. O
lobo ou o urso que devora o velho e a velha expostos voluntariamente ao
sacrifício será depois abatido pelos jovens caçadores que se alimentam da carne
do animal reforçada pelos elementos vitais dos velhos sacrificados. É um
processo generoso de troca no qual os clãs e as tribos se revigoram.
O pavor maior da morte provém da
ideia de solidão e escuridão. Mas os teólogos acharam que isso era pouco e
oficializaram as lendas remotas do Inferno, do Purgatório e do Limbo, a que não
escapam nem mesmo as crianças mortas sem batismo. De tal maneira se aumentaram
os motivos do pavor da morte, que ela chegou a significar desonra e vergonha.
Para os judeus, a morte se tomou a própria impureza. Os túmulos e os cemitérios
foram considerados impuros. Os cenotáfios, túmulos vazios construídos em honra
aos profetas mostram bem essa aversão à morte. Como podiam eles aceitar um
Messias que vinha da Galileia dos Gentios, onde o Palácio de Herodes fora
construído sobre terra de cemitérios? Como aceitar esse Messias que morreu na
cruz, vencido pelos romanos impuros que arrancara Lazaro da sepultura (já
cheirando mal) e o fizera seu companheiro nas lides sagradas do messianismo?
Ainda em nossos dias o respeito
aos mortos está envolvido numa forma velada de repulsa e depreciação. A morte
transforma o homem em cadáver, risca-o do numero dos vivos, tira-Ihe todas as
possibilidades de ação e, portanto de significação no meio humano. "o
morto esta morto", dizem os materialistas e o populacho ignaro. O Papa
Paulo VI declarou, e a Imprensa mundial divulgou em toda parte, que “existe uma
vida após a morte, mas não sabemos como ela é”. Isso quer dizer que a própria
Igreja nada sabe da morte, a não ser que morremos. A ideia cristã da morte,
sustentada e defendida pelas diversas igrejas, é simplesmente aterradora. Os
pecadores ao morrer se veem diante de um Tribunal Divino que os condena a
suplícios eternos. Os santos e os beatos não escapam às condenações, não
obstante a misericórdia de Deus, que não sabemos como pode ser misericordioso
com tanta Impiedade. As próprias crianças inocentes, que não tiveram tempo de
pecar, vão para o Limbo misterioso e sombrio pela simples falta do batismo. Os
criminosos broncos, ignorantes e todo o grosso da espécie humana são atirados
nas garras de Satanás, um anjo decaído que só não encarna o mal porque não deve
ter carne. Mas com dinheiro e a adoração interesseira a Deus essas almas podem
ser perdoadas, de maneira que só para os pobres não há salvação, mas para os
ricos o Céu se abre ao impacto dos tedéuns
suntuosos, das missas cantadas e das· gordas contribuições para a Igreja. Nunca
se viu soberano mais venal e tribunal mais injusto. A depreciação da morte
gerou o desabrido comercio dos traficantes do perdão e da indulgencia divina. O
viI dinheiro das roubalheiras e injustiças terrenas consegue furar a Justiça
Divina, de maneira que o desprestigio dos mortos chega ao máximo da vergonha. A
felicidade eterna depende do recheio dos cofres deixados na Terra.
Diante de tudo isso, o conceito
da morte se azinhavra nas mãos dos cambistas da simonia, esvazia-se na
descrença total, transforma-se no conceito do nada, que Kant definiu como
conceito vazio. O morto apodrece enterrado, perdeu a riqueza da vida, virou
pasto de vermes e sua misteriosa salvação depende das condições financeiras da
família terrena. O morto é um fraco, um falido e um condenado, inteiramente
dependente dos vivos na Terra.
O povo não compreende bem todo
esse quadro de misérias em que os teólogos envolveram a morte, mas sente o nojo
e o medo da morte, introjetados em sua consciência pela farsa dos poderes
divinos que o ameaçam desde o berço ao tumulo e ao além-túmulo. Não é de
admirar que os pais e as mães, os parentes dos mortos se apavorem e se
desesperem diante do fato irremissível da morte.
Jesus ensinou e provou que a
morte se resolve na Páscoa da ressurreição, que ninguém morre, que todos temos
o corpo espiritual e vivemos no além-túmulo como vivos mais vivos que os
encarnados. Paulo de Tarso proclamou que o corpo espiritual e o corpo da
ressurreição (cap. XXII da Primeira Epístola aos Coríntios), mas a permanente imagem
do Cristo crucificado, das procissões absurdas do Senhor Morto - heresia
clamorosa -, as cerimônias da Via-Sacra e as imagens aterradoras do Inferno
Cristão - mais impiedoso e brutal do que os Infernos do Paganismo - marcados a
fogo na mente humana através de dois milênios, esmagam e envilecem a alma
supersticiosa dos homens.
Não e de admirar que os teólogos
atuais, divididos em varias correntes de sofistas cristãos moderníssimos,
estejam hoje proclamando, com uma alegria leviana de diploides, a Morte de Deus
e o estabelecimento do Cristianismo Ateu. Para esses novos teólogos o Cadáver
de Deus foi enterrado pelo Louco de Nietsche, criação fantástica e infeliz do
pobre filosofo que morreu louco.
O clero cristão tanto católico
como protestante, tanto do Ocidente como do Oriente perdeu a capacidade de
socorrer e consolar os que se desesperam com a morte de pessoas amadas. Seus
instrumentos de consolação perderam a eficiência antiga, que se apoiava no
obscurantismo das populações permanentemente ameaçadas pela Ira de Deus. A
Igreja, Mãe da Sabedoria Infusa, recebida do Céu como graça especial concedida
aos eleitos, confessa que nada sabe sobre a vida espiritual e só aconselha aos
fieis as práticas antiquadas das rezas e cerimônias pagas, para que os mortos queridos
sejam beneficiados no outro Mundo ao tinir das moedas terrenas. O Messias
espantou a chicote os animais do Templo que deviam ser comprados para o
sacrifício redentor no altar simoníaco e derrubou as mesas dos cambistas, que
trocavam no Templo as moedas gregas e romanas pelas moedas sagradas dos
magnatas despenseiros da misericórdia divina. O episódio esclarecedor foi
suplantado na mente popular pelo impacto esmagador das ameaças celestiais
contra os descrentes, esses rebeldes demoníacos. Em vão o Cristo ensinou que as
moedas de Cesar só valem na Terra. Ha dois mil anos essas moedas impuras vem
sendo aceitas por Deus para o resgate das almas condenadas. Quem pode, em sã
consciência, acreditar hoje em dia numa Justiça Divina que funciona com o mesmo
combustível da Justiça Terrena? Os sacerdotes foram treinados a falar com voz
empostada, melíflua e fingida, para, a semelhança da voz das antigas sereias,
embalar o povo nas ilusões de um amor venal e sem piedade. Voz doce e gestos
compassivos não conseguem mais, em nossos dias, do que irritar as pessoas de
bom senso. O Cristo Consolador foi traído pelos agentes da misericórdia divina
que desceu ao banco das pechinchas, no comercio impuro das consolações fáceis.
Os homens preferem jogar no lixo as suas almas, que Deus e o Diabo disputam não
se sabe o porquê.
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