sábado, 21 de maio de 2016

Educação para a Morte[1]


 

J. Herculano Pires
 

Vou me deitar para dormir. Mas posso morrer durante o sono. Estou bem, não tenho nenhum motivo especial para pensar na morte neste momento. Nem para desejá-Ia. Mas a morte não é uma opção, nem uma possibilidade. É uma certeza. Quando o Júri de Atenas condenou Sócrates à morte, ao invés de lhe dar um premio, sua mulher correu aflita para a prisão, gritando-lhe: "Sócrates, os juízes te condenaram a morte". O filosofo respondeu calmamente: "Eles também já estão condenados". A mulher insistiu no seu desespero: "Mas e uma sentença injusta!" E ele perguntou: "Preferias que fosse justa?" A serenidade de Sócrates era o produto de um processo educacional: a Educação para a Morte. É curioso notar que em nosso tempo só cuidamos da Educação para a Vida. Esquecemo-nos de que vivemos para morrer. A morte é o nosso fim inevitável. No entanto, chegamos geralmente a ela sem o menor preparo. As religiões nos preparam, bem ou mal, para a outra vida. E depois que morremos encomendam o nosso cadáver aos deuses, como se ele não fosse precisamente aquilo que deixamos na Terra ao morrer, o fardo inútil que não serve mais para nada.
Quem primeiro cuidou da Psicologia da Morte e da Educação para a morte, em nosso tempo, foi Allan Kardec. Ele realizou uma pesquisa psicológica exemplar sobre o fenômeno da morte. Por anos seguidos falou a respeito com os espíritos de mortos. E, considerando o sono como irmão ou primo da morte, pesquisou também os espíritos de pessoas vivas durante o sono. Isso porque, segundo verificara, os que dormem saem do corpo durante o sono. Alguns saem e não voltam: morrem. Chegou, com antecedência de mais de um século, a esta conclusão a que as ciências atuais também chegaram, com a mesma tranquilidade de Sócrates, a conclusão de Victor Hugo: "Morrer não é morrer, mas apenas mudar-se".
As religiões podiam ter prestado um grande serviço à Humanidade se houvessem colocado o problema da morte em termos de naturalidade. Mas, nascidas da magia e amamentadas pela mitologia, só fizeram complicar as coisas. A mudança simples de que falou Victor Hugo transformou-se, nas mãos de clérigos e teólogos, numa passagem dantesca pela selva selvaggia da Divina Comedia. Nas civilizações agrárias e pastoris, graças ao seu contato permanente com os processos naturais, a morte era encarada sem complicações. Os rituais suntuosos, os cerimoniais e sacramentos surgiram com o desenvolvimento da civilização, no deslanche da imaginação criadora.  A mudança revestiu-se de exigências antinaturais, complicando-se com a burocracia dos passaportes, recomendações, trânsito sombrio na barca de Caronte, processos de julgamento seguido de condenações tenebrosas e assim por diante. Logo mais, para satisfazer o desejo de sobrevivência, surgiu a monstruosa arquitetura da morte, com mausoléus, pirâmides, mumificações, que permitiam a ilusão do corpo conservado e da permanência fictícia do morto acima da terra e dos vermes. Morrer já não era morrer, mas metamorfosear-se, virar múmia nos sarcófagos ou assombração maléfica nos mistérios da noite. As múmias, pelo menos, tiveram utilidade posterior, como vemos na Historia da Medicina, servindo para os efeitos curadores do pó de múmia. E quando as múmias se acabaram, não se achando nenhuma para remédio, surgiram os fabricantes de múmias falsas, que supriam a falta do pó milagroso. Os mortos socorriam os vivos na forma lobateana do pó de pirim-pim-pim.
Muito antes de Augusto Comte, os médicos haviam descoberto que os vivos dependiam sempre e cada vez mais da assistência e do governo dos mortos. De toda essa embrulhada resultou o pavor da morte entre os mortais. Ainda hoje os antropólogos podem constatar, entre os povos primitivos, a aceitação natural da morte. Entre as tribos selvagens da África, da Austrália, da América e das regiões árticas, os velhos são mortos a pauladas ou fogem para o descampado a fim de serem devorados pelas feras. O lobo ou o urso que devora o velho e a velha expostos voluntariamente ao sacrifício será depois abatido pelos jovens caçadores que se alimentam da carne do animal reforçada pelos elementos vitais dos velhos sacrificados. É um processo generoso de troca no qual os clãs e as tribos se revigoram.
O pavor maior da morte provém da ideia de solidão e escuridão. Mas os teólogos acharam que isso era pouco e oficializaram as lendas remotas do Inferno, do Purgatório e do Limbo, a que não escapam nem mesmo as crianças mortas sem batismo. De tal maneira se aumentaram os motivos do pavor da morte, que ela chegou a significar desonra e vergonha. Para os judeus, a morte se tomou a própria impureza. Os túmulos e os cemitérios foram considerados impuros. Os cenotáfios, túmulos vazios construídos em honra aos profetas mostram bem essa aversão à morte. Como podiam eles aceitar um Messias que vinha da Galileia dos Gentios, onde o Palácio de Herodes fora construído sobre terra de cemitérios? Como aceitar esse Messias que morreu na cruz, vencido pelos romanos impuros que arrancara Lazaro da sepultura (já cheirando mal) e o fizera seu companheiro nas lides sagradas do messianismo?
Ainda em nossos dias o respeito aos mortos está envolvido numa forma velada de repulsa e depreciação. A morte transforma o homem em cadáver, risca-o do numero dos vivos, tira-Ihe todas as possibilidades de ação e, portanto de significação no meio humano. "o morto esta morto", dizem os materialistas e o populacho ignaro. O Papa Paulo VI declarou, e a Imprensa mundial divulgou em toda parte, que “existe uma vida após a morte, mas não sabemos como ela é”. Isso quer dizer que a própria Igreja nada sabe da morte, a não ser que morremos. A ideia cristã da morte, sustentada e defendida pelas diversas igrejas, é simplesmente aterradora. Os pecadores ao morrer se veem diante de um Tribunal Divino que os condena a suplícios eternos. Os santos e os beatos não escapam às condenações, não obstante a misericórdia de Deus, que não sabemos como pode ser misericordioso com tanta Impiedade. As próprias crianças inocentes, que não tiveram tempo de pecar, vão para o Limbo misterioso e sombrio pela simples falta do batismo. Os criminosos broncos, ignorantes e todo o grosso da espécie humana são atirados nas garras de Satanás, um anjo decaído que só não encarna o mal porque não deve ter carne. Mas com dinheiro e a adoração interesseira a Deus essas almas podem ser perdoadas, de maneira que só para os pobres não há salvação, mas para os ricos o Céu se abre ao impacto dos tedéuns suntuosos, das missas cantadas e das· gordas contribuições para a Igreja. Nunca se viu soberano mais venal e tribunal mais injusto. A depreciação da morte gerou o desabrido comercio dos traficantes do perdão e da indulgencia divina. O viI dinheiro das roubalheiras e injustiças terrenas consegue furar a Justiça Divina, de maneira que o desprestigio dos mortos chega ao máximo da vergonha. A felicidade eterna depende do recheio dos cofres deixados na Terra.
Diante de tudo isso, o conceito da morte se azinhavra nas mãos dos cambistas da simonia, esvazia-se na descrença total, transforma-se no conceito do nada, que Kant definiu como conceito vazio. O morto apodrece enterrado, perdeu a riqueza da vida, virou pasto de vermes e sua misteriosa salvação depende das condições financeiras da família terrena. O morto é um fraco, um falido e um condenado, inteiramente dependente dos vivos na Terra.
O povo não compreende bem todo esse quadro de misérias em que os teólogos envolveram a morte, mas sente o nojo e o medo da morte, introjetados em sua consciência pela farsa dos poderes divinos que o ameaçam desde o berço ao tumulo e ao além-túmulo. Não é de admirar que os pais e as mães, os parentes dos mortos se apavorem e se desesperem diante do fato irremissível da morte.
Jesus ensinou e provou que a morte se resolve na Páscoa da ressurreição, que ninguém morre, que todos temos o corpo espiritual e vivemos no além-túmulo como vivos mais vivos que os encarnados. Paulo de Tarso proclamou que o corpo espiritual e o corpo da ressurreição (cap. XXII da Primeira Epístola aos Coríntios), mas a permanente imagem do Cristo crucificado, das procissões absurdas do Senhor Morto - heresia clamorosa -, as cerimônias da Via-Sacra e as imagens aterradoras do Inferno Cristão - mais impiedoso e brutal do que os Infernos do Paganismo - marcados a fogo na mente humana através de dois milênios, esmagam e envilecem a alma supersticiosa dos homens.
Não e de admirar que os teólogos atuais, divididos em varias correntes de sofistas cristãos moderníssimos, estejam hoje proclamando, com uma alegria leviana de diploides, a Morte de Deus e o estabelecimento do Cristianismo Ateu. Para esses novos teólogos o Cadáver de Deus foi enterrado pelo Louco de Nietsche, criação fantástica e infeliz do pobre filosofo que morreu louco.
O clero cristão tanto católico como protestante, tanto do Ocidente como do Oriente perdeu a capacidade de socorrer e consolar os que se desesperam com a morte de pessoas amadas. Seus instrumentos de consolação perderam a eficiência antiga, que se apoiava no obscurantismo das populações permanentemente ameaçadas pela Ira de Deus. A Igreja, Mãe da Sabedoria Infusa, recebida do Céu como graça especial concedida aos eleitos, confessa que nada sabe sobre a vida espiritual e só aconselha aos fieis as práticas antiquadas das rezas e cerimônias pagas, para que os mortos queridos sejam beneficiados no outro Mundo ao tinir das moedas terrenas. O Messias espantou a chicote os animais do Templo que deviam ser comprados para o sacrifício redentor no altar simoníaco e derrubou as mesas dos cambistas, que trocavam no Templo as moedas gregas e romanas pelas moedas sagradas dos magnatas despenseiros da misericórdia divina. O episódio esclarecedor foi suplantado na mente popular pelo impacto esmagador das ameaças celestiais contra os descrentes, esses rebeldes demoníacos. Em vão o Cristo ensinou que as moedas de Cesar só valem na Terra. Ha dois mil anos essas moedas impuras vem sendo aceitas por Deus para o resgate das almas condenadas. Quem pode, em sã consciência, acreditar hoje em dia numa Justiça Divina que funciona com o mesmo combustível da Justiça Terrena? Os sacerdotes foram treinados a falar com voz empostada, melíflua e fingida, para, a semelhança da voz das antigas sereias, embalar o povo nas ilusões de um amor venal e sem piedade. Voz doce e gestos compassivos não conseguem mais, em nossos dias, do que irritar as pessoas de bom senso. O Cristo Consolador foi traído pelos agentes da misericórdia divina que desceu ao banco das pechinchas, no comercio impuro das consolações fáceis. Os homens preferem jogar no lixo as suas almas, que Deus e o Diabo disputam não se sabe o porquê.

 

[1] Educação para a morte – J. Herculano Pires

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