terça-feira, 17 de maio de 2016

A FATALIDADE NA INTERPRETAÇÃO ESPÍRITA[1]

 

Fernando A. Moreira[2]
 

A fatalidade vem sendo a vilã nas doutrinas não reencarnacionistas, para explicar as ocorrências que representam para elas, uma predeterminação e infalibilidade completa dos acontecimentos, qualquer que seja sua natureza, boa ou má; o infalível, o inevitável, o irrevogável, o funesto, o decisivo, o inadiável, o nefasto, o pré-estabelecido. Seria assim, representativa da vontade de Deus, sem, no entanto explicarem o porquê dessa vontade optativa para uns e não para outros, e das suas relações com a justiça divina; estaríamos assim, vulneráveis ao fatalismo, ao destino, à sorte e ao azar. Haveria um determinismo e tudo o que acontecesse estaria pré-estabelecido, nada se podendo fazer contra ele, ou vinculado à casualidade.
Para nós espíritas, no entanto, nada acontece por acaso e a fatalidade não é um acontecimento pré-determinado ou ocasional, é uma construção; quando escolhemos as nossas provas nós somos os artífices delas, os “construtores do nosso destino e cada pessoa encontra-se num contexto parcialmente determinado pelo conjunto de suas ações desta vida, das vidas anteriores e dos períodos na erraticidade [3]“, e, portanto a fatalidade, vem depois do livre arbítrio do Espírito; a matéria não tem livre arbítrio, esta sim, está sujeita a fatalidade, porque é dependente de leis biológicas e físico-químicas, numa relação de causa e efeito.
“A fatalidade existe unicamente pela escolha que o Espírito fez, ao encarnar, desta ou daquela forma para sofrer. Escolhendo-a, institui para si uma espécie de destino, que é a consequência mesma da posição em que vem achar-se colocado [4]”.
Na figura (no final deste texto) vemos a programação reencarnatória estabelecida pela espiritualidade superior, adaptando o gênero das provas, escolhida pelo Espírito e as expiações por eles imposta, de acordo com as necessidades deste mesmo Espírito. Este pode, no entanto, ignorar ou rebelar-se contra o protocolo pré-estabelecido e agindo por seu livre arbítrio, trilhar outro caminho, tentando burlar a lei, com graves consequências para o seu Espírito, repercussões no seu perispírito e às vezes até, imediatamente imprimidas no seu corpo físico.
O câncer de pulmão, por exemplo, pode não ter sido nem prova, nem expiação, mas se o homem fuma desbragadamente, o cigarro pode agir desencadeando a doença, quando existirem causas predisponentes, ou em caso contrário, determinando-a, sem que tivesse havido nenhuma eleição anterior dele ou da espiritualidade; a consequência fatal, a morte prematura, também não correspondia a nenhum processo estabelecido no planejamento da recorporificação do Espírito. O mau uso de seu livre arbítrio e que o levou aquela fatalidade, ao infortúnio.
“Na realidade nós somos o que fomos, encontrando-se gravadas no nosso perispírito, todas as nossas vivências e experiências pregressas, a se transmitir através do modelo organizador biológico ao novo corpo físico, não como uma fatalidade, mas como um ponto de partida, podendo ser modificada, na decorrência do que realizarmos de positivo ou negativo, na edificação de nossa proposta reencarnatória [5]”.
Quando nós persistimos no erro, no endurecimento, sujeitamo-nos às reencarnações compulsórias e, portanto às expiações; a Lei do Progresso é fatal para o Espírito, que inexoravelmente seguirá o caminho da evolução e da felicidade. Quando Jesus nos convocou usando as palavras, “Sede perfeitos como vosso Pai Celestial o é” (Mateus, 5:48), colocou o verbo no imperativo, que determina assim que a perfeição terá que ser atingida, evidenciando o caminho na busca eterna por ela, que é o destino de todos nós, único compatível com a bondade, a misericórdia e a justiça infinitas de Deus. A Doutrina Espírita nos mostra que, graças esta essência do nosso Pai Celestial, nós nunca seremos deserdados, pois é inconciliável com ela, a nossa condenação a penas eternas, e alcançaremos através de reencarnações sucessivas, o que foi determinado, pois seremos todos não o que queremos, mas o que devemos ser; a lei do progresso, da reencarnação e de causa e efeito, estão também aneladas ao amor, a misericórdia e a justiça, no rosário iluminado da infinita grandeza divina.
Acreditamos numa programação reencarnatória, um protocolo pré-estabelecido no Ministério da Regeneração, feita pela Espiritualidade Superior, sob a égide de Deus, que seriam então, completamente incompetentes, se houvesse fatalidade para acontecimentos espirituais. Se o Espírito está cumprindo, no uso de seu livre arbítrio, a sua programação reencarnatória, não há como, pois, ser visitado pela fatalidade; outro Espírito não poderá se intrometer e quebrar os elos, estabelecidos neste programa.
“O determinismo, representado pelas leis de Deus, ou pela ação de Seus emissários, atuam no sentido de que terceiros não sejam atingidos pelo mau uso do seu livre-arbítrio, quando não o merecem [6]“.
O merecimento preserva o Espírito da fatalidade, de acordo com o que foi estabelecido pela lei de Deus, que não pode ser transgredida ou anulada.
“Nem livre arbítrio, nem determinismo absolutos, na encarnação, mas liberdade condicionada”. (Bozzano, Ernesto, 1930) [7]
O livre arbítrio existe dentro da lei de liberdade e esta última, termina no limite entre a nossa e a do nosso semelhante; o entrelaçamento e os acontecimentos aparentemente fatais, nada mais são do que processos cármicos, consentidos pela espiritualidade.
“É o escândalo que há de vir; e que irá expiar, e daí- ai daquele por quem vier”(...). A vítima sofre as consequências por seus atos anteriores; foi por ela que viera anteriormente o escândalo. “Ai dela agora.” Aproveitou-se, apenas, o momento ruim para o resgate da pena do outro, que ocorreria mesmo sem a sua anuência[8]...”.
Ninguém nasce para ser assassino ou estuprador, mas colocado na posição de carrasco, cede a sua má inclinação e executa a ação, pelo mau uso de seu livre arbítrio; poderia ter resistido e não tê-la praticado, pois a opção foi sua.
“Quanto aos atos da vida moral, esses emanam sempre do próprio homem que, por conseguinte tem sempre a liberdade de escolher. No tocante, pois, a esses atos, nunca há fatalidade [9]”.
A vítima, por sua sintonia, colocou-se em posição de submeter-se à ação do criminoso, que se tivesse se negado a praticá-la, dar-se-ia da mesma forma, seria do mesmo gênero, embora fosse outro o veículo que iria executá-la, pois “cada um terá que carpir seus próprios erros [10]”.
A fatalidade física, o momento da morte virá naturalmente, no tempo e maneira pré-estabelecida, a não ser que o precipitemos, pelo uso de nosso livre arbítrio (v.g. suicídio). Instante é um momento, um espaço de tempo indefinido, mais ou menos elástico, diferente de hora, minuto e segundo da morte.
“Fatal, no verdadeiro sentido da palavra, só o instante da morte o é [11]”.
É evidente que Deus a tudo prevê, mas os acontecimentos não estão a isso condicionados; Deus previu as nossas ações, mas nós não agimos porque Deus previu, mas porque utilizamos o nosso livre arbítrio, desta ou daquela maneira e Ele, tinha ciência dessa nossa maneira de agir.
“(...) os eventos previstos já existiam na memória de Deus. Isso não quer dizer que cada um de nós tenha que passar por ali obrigatoriamente, mas que Deus, na majestade de sua postura intemporal, já nos viu, no futuro passando por ali [12].”
Isto contradiz o conceito de que já aconteceu o futuro e que nada podemos fazer para mudá-lo .
Agora se usamos tóxicos, guiamos nosso carro a 200 km/h ou atravessamos uma avenida, de intenso movimento de automóveis, de olhos cerrados, por exemplo, estamos no expondo e nos sujeitando a “fatalidade”, mas antes do nosso procedimento errôneo, utilizamos o nosso livre-arbítrio.
Nós moldamos nosso futuro, balizados na evolução do nosso Espírito e organizada nossa programação reencarnatória, inclusive o instante pré-fixado do nosso nascimento, que também não é fatal, cabe-nos cumpri-la, mas de acordo com nossas ações caridosas, por nossa vivência no amor, poderemos minimizar nossos débitos e nosso sofrimento, conseguindo moratória para a nossa dívida, pois “a caridade cobrirá uma multidão de pecados”. (I Pedro, 4: 08)
Deus, por ser infinitamente bom, justo e misericordioso nos criou Espíritos simples e ignorantes, para que sejamos Espíritos glorificados; só há glória quando há mérito e Ele quer que a atinjamos por nossos próprios méritos, no sábio uso do nosso livre arbítrio.
A espiritualidade superior não tem qualquer compromisso com a fatalidade, podendo alterar nosso programa de acordo com o nosso merecimento; para ela, sobre o prisma espiritual, a fatalidade não é fatal, podendo ser modificada, já que “é possível renovar nosso destino todos os dias 10”.
Jesus, nosso mestre, modelo amigo e estrela-guia nos legou o cintilo de suas parábolas, a nos iluminar o caminho; cabe a nós caminharmos na sua direção, calcando o Evangelho, porque “a cada um será dado segundo as suas obras.” (Mateus,16:27)
 


[2] Fernando A. Moreira é médico, expositor e articulista espírita, com vários artigos publicados em jornais, revistas e sites.
[3] CHIBENI, Sílvio e Sílvia; A Concepção Espírita da Fatalidade; “Reformador”, junho/1997, pg.21.
[4] KARDEC, Allan; O Livro dos Espíritos; FEB,1944, perg.: 851, 853 e 861; pg. 390, 391 e 394.
[5] MOREIRA, Fernando A.; Reencarnação e Genética; “Revista Internacional de Espiritismo”, mar/2000, pg.56.
[6] EDITORIAL; Existência e Vida, “O Clarim”, novembro/2001, pg. 02.
[7] MIRANDA, Hermínio; “Diversidade dos Carismas”, Publicações Lachâtre, 2ª ed., 1994, vol. I, pg. 299 e 300
[8] EDITORIAL; Livre Arbítrio e Morte Prematura, “Mundo Espírita”, agosto/1997, pg.2.
[9] KARDEC, Allan; O Livro dos Espíritos; FEB,1944, perg.: 851, 853 e 861; pg. 390, 391 e 394.
[10] SOUZA, Juvanir Borges; “O que dizem os Espíritos sobre o aborto”, FEB, 1ª ed., 2001, pg. 167 e 215.
[11] KARDEC, Allan; O Livro dos Espíritos; FEB,1944, perg.: 851, 853 e 861; pg. 390, 391 e 394.
[12] MIRANDA, Hermínio; “Diversidade dos Carismas”, Publicações Lachâtre, 2ª ed., 1994, vol. I, pg. 299 e 300.

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