A liberdade é a condição
necessária da alma humana que, sem ela, não poderia construir seu destino. Em
vão os filósofos e os teólogos têm argumentado longamente a respeito dessa
questão. À porfia têm-na obscurecido com suas teorias e sofismas, votando a
humanidade à servidão em vez de guiá-la para a luz libertadora. A noção é
simples e clara. Os druidas haviam-na formulado desde os primeiros tempos de
nossa História. Está expressa nas Tríades
por estes termos: Há três unidades primitivas – Deus, a luz e a liberdade.
À primeira vista, a liberdade do
homem parece muito limitada no círculo de fatalidades que o encerra:
necessidades físicas, condições sociais, interesses ou instintos. Mas,
considerando a questão mais de perto, vê-se que essa liberdade é sempre
suficiente para permitir que a alma quebre esse círculo e escape às forças
opressoras.
A liberdade e a responsabilidade
são correlativas no ser e aumentam com sua elevação; é a responsabilidade do
homem que faz sua dignidade e moralidade. Sem ela, não seria ele mais do que um
autômato, um joguete das forças ambientes; a noção de moralidade é inseparável
da de liberdade.
A responsabilidade é
estabelecida pelo testemunho da consciência, que nos aprova ou censura segundo
a natureza de nossos atos. A sensação do remorso é uma prova mais demonstrativa
que todos os argumentos filosóficos. Para todo Espírito, por pequeno que seja o
seu grau de evolução, a lei do dever brilha como um farol, através da névoa das
paixões e interesses. Por isso, vemos todos os dias homens nas posições mais
humildes e difíceis preferirem aceitar provações duras a se rebaixarem e
cometer atos indignos.
Se a liberdade humana é
restrita, está pelo menos em via de perfeito desenvolvimento, porque o
progresso não é outra coisa senão a extensão do livre-arbítrio no indivíduo e
na coletividade. A luta entre a matéria e o espírito tem precisamente como
objetivo libertar este último cada vez mais do jugo das forças cegas. A
inteligência e a vontade chegam, pouco a pouco, a predominar sobre o que a
nossos olhos representa a fatalidade. O livre-arbítrio é, pois, a expansão da
personalidade e da consciência. Para sermos livres é necessário querer sê-lo e
fazer esforço para vir a sê-lo, libertando-nos da escravidão da ignorância e das
paixões inferiores, substituindo o império das sensações e dos instintos pelo
da razão.
Isto só se pode obter por uma
educação e uma preparação prolongada das faculdades humanas: libertação física
pela limitação dos apetites; libertação intelectual pela conquista da verdade;
libertação moral pela procura da virtude. É essa a obra dos séculos. Mas, em
todos os graus de sua ascensão, na repartição dos bens e dos males da vida, ao
lado da concatenação das coisas, sem prejuízo dos destinos que nosso passado
nos inflige, há sempre lugar para a livre vontade do homem.
*
Como conciliar nosso
livre-arbítrio com a presciência divina? Perante o conhecimento antecipado que
Deus tem de todas as coisas, pode-se verdadeiramente afirmar a liberdade
humana? Questão complexa e árdua na aparência, que fez correr rios de tinta e
cuja solução é, contudo, das mais simples. Mas o homem não gosta das coisas
simples; prefere o obscuro, o complicado, e não aceita a verdade senão depois
de ter esgotado todas as formas do erro.
Deus, cuja ciência infinita
abrange todas as coisas, conhece a natureza de cada homem e as impulsões, as
tendências, de acordo com as quais poderá determinar-se. Nós mesmos, conhecendo
o caráter de uma pessoa, poderíamos facilmente prever o sentido em que, numa
dada circunstância, ela decidirá, quer segundo o interesse, quer segundo o
dever. Uma resolução não pode nascer do nada. Está forçosamente ligada a uma
série de causas e efeitos anteriores das quais deriva e que a explicam. Deus,
conhecendo cada alma em suas menores particularidades, pode, pois,
rigorosamente, deduzir, com certeza, do conhecimento que tem dessa alma e das
condições em que ela é chamada a agir, as determinações que, livremente, ela
tomará.
Notemos que não é a previsão de
nossos atos que os provoca. Se Deus não pudesse prever nossas resoluções, não
deixaria elas, por isso, de seguir seu livre curso.
É assim que a liberdade humana e
a previdência divina conciliam-se e combinam, quando se considera o problema à
luz da razão.
O círculo dentro do qual se
exerce a vontade do homem é, de mais a mais, excessivamente restrito e não
pode, em caso algum, impedir a ação divina, cujos efeitos se desenrolam na
imensidade sem limites. O fraco inseto, perdido num canto do jardim, não pode,
desarranjando os poucos átomos ao seu alcance, lançar a perturbação na harmonia
do conjunto e pôr obstáculos à obra do Divino Jardineiro.
*
A questão do livre-arbítrio tem
uma importância capital e graves consequências para toda a ordem social, por
sua ação e repercussão na educação, na moralidade, na justiça, na legislação
etc. Determinou duas correntes opostas de opinião: os que negam o
livre-arbítrio e os que o admitem com restrição.
Os argumentos dos fatalistas e
deterministas resumem-se assim: “O homem está submetido aos impulsos de sua
natureza, que o dominam e obrigam a querer, determinar-se num sentido, de
preferência a outro; logo, não é livre”.
A escola adversa, que admite a
livre vontade do homem, em face desse sistema negativo, exalta a teoria das
causas indeterminadas. Seu mais ilustre representante, em nossa época, foi Charles
Renouvier.
As vistas desse filósofo foram
confirmadas, mais recentemente, pelos belos trabalhos de Wundt, sobre a percepção, de Alfred Fouillée sobre a ideia-força e de Boutroux sobre a contingência da lei natural.
Os elementos que a revelação
neo-espiritualista nos traz, sobre a natureza e o futuro do ser, dão à teoria
do livre-arbítrio sanção definitiva. Vêm arrancar a consciência moderna à
influência deletéria do materialismo e orientar o pensamento para uma concepção
do destino que terá por efeito, como dizia C. du Prel, recomeçar a vida
interior da Civilização.
Até agora, tanto sob o ponto de
vista teológico como determinista, a questão tinha ficado quase insolúvel. E
não podia ser de outro modo, já que cada um daqueles sistemas partia do dado
inexato de que o ser humano tem a percorrer uma única existência. A questão
muda, porém, inteiramente de aspecto ao se alargar o círculo da vida e se
considerar o problema à luz que projeta a doutrina dos renascimentos. Assim,
cada ser conquista a própria liberdade no decurso da evolução que tem de
perfazer.
Suprida, a princípio, pelo
instinto, que pouco a pouco desaparece para dar lugar à razão, nossa liberdade
é muito escassa nos graus inferiores e em todo o período de nossa educação
primária. Toma extensão considerável, desde que o Espírito adquire a
compreensão da lei. E sempre, em todos os graus de sua ascensão, na hora das
resoluções importantes, será assistido, guiado, aconselhado por Inteligências
superiores, por Espíritos evoluídos e mais esclarecidos do que ele.
O livre-arbítrio, a livre
vontade do Espírito exerce-se principalmente na hora das reencarnações.
Escolhendo tal família, certo meio social, ele sabe de antemão quais são as
provações que o aguardam, mas compreende, igualmente, a necessidade dessas
provações para desenvolver suas qualidades, curar seus defeitos, despir seus
preconceitos e vícios. Essas provações podem ser também consequência de um
passado nefasto, que é preciso reparar, e ele aceita-as com resignação e
confiança, porque sabe que seus grandes irmãos do espaço não o abandonarão nas
horas difíceis.
O futuro aparece-lhe então, não
em seus pormenores, mas em seus traços mais salientes, isto é, na medida em que
esse futuro é a resultante de atos anteriores. Esses atos representam a parte
de fatalidade ou “a predestinação” que certos homens são levados a ver em todas
as vidas. São simplesmente, como vimos, efeitos ou reações de causas remotas.
Na realidade, nada há de fatal e, qualquer que seja o peso das
responsabilidades em que se tenha incorrido, pode-se sempre atenuar, modificar
a sorte com obras de dedicação, de bondade, de caridade, por um longo
sacrifício ao dever.
*
A questão do livre-arbítrio tem,
dizíamos, grande importância sob o ponto de vista jurídico. Tendo, não
obstante, em conta o direito de repressão e preservação social, é muito difícil
precisar, em todos os casos que dependem dos tribunais, a extensão das
responsabilidades individuais. Não é possível fazê-lo senão estabelecendo o
grau de evolução dos criminosos. O neo-espiritualismo fornecer-nos-ia talvez os
meios; mas, a justiça humana, pouco versada nessas matérias, continua a ser
cega e imperfeita em suas decisões e sentenças.
Muitas vezes o mau, o criminoso,
não é, na realidade, mais do que um Espírito novo e ignorante em que a razão
não teve tempo de amadurecer. “O crime – diz Duclos – é sempre o resultado dum
falso juízo.” É por isso que as penalidades infligidas deveriam ser
estabelecidas de modo que obrigassem o condenado a refletir, a instruir-se, a
esclarecer-se, a emendar-se. A sociedade deve corrigir com amor e não com ódio,
sem o que se torna criminosa.
As almas, como demonstramos, são
equivalentes em seu ponto de partida. São diferentes por seus graus infinitos
de adiantamento: umas novas, outras velhas e, por conseguinte, diversamente
desenvolvidas em moralidade e sabedoria, segundo a idade. Seria injusto pedir
ao Espírito infantil méritos iguais aos que se podem esperar de um Espírito que
viu e aprendeu muito. Daí uma grande diferenciação nas responsabilidades.
O Espírito só estará
verdadeiramente preparado para a liberdade no dia em que as leis universais,
que lhe são externas, se tornem internas e conscientes em razão de sua própria
evolução. No dia em que ele se penetrar da lei e fizer dela a norma de suas
ações, terá atingido o ponto moral em que o homem se possui, domina e governa a
si mesmo.
Daí em diante já não precisará
do constrangimento e da autoridade sociais para corrigir-se. E dá-se com a
coletividade o que se dá com o indivíduo. Um povo só é verdadeiramente livre,
digno da liberdade, se aprendeu a obedecer a essa lei interna, lei moral,
eterna e universal, que não emana nem do poder de uma casta, nem da vontade das
multidões, mas de um Poder mais alto. Sem a disciplina moral que cada qual deve
impor a si mesmo, as liberdades não passam de um logro; tem-se a aparência, mas
não os costumes de um povo livre. A sociedade fica exposta, pela violência de
suas paixões e a intensidade de seus apetites, a todas as complicações, a todas
as desordens.
Tudo o que se eleva para a luz
eleva-se para a liberdade. Esta se expande plena e inteira na vida superior. A
alma sofre tanto mais o peso das fatalidades materiais quanto mais atrasada e
inconsciente é, tanto mais livre se torna quanto mais se eleva e aproxima do
divino.
No estado de ignorância, é uma
felicidade para ela estar submetida a uma direção. Mas, quando sábia e
perfeita, goza da sua liberdade na luz divina.
Em tese geral, todo homem chegado
ao estado de razão é livre e responsável na medida do seu adiantamento. Passo
em claro os casos em que, sob o domínio de uma causa qualquer, física ou moral,
doença ou obsessão, o homem perde o uso de suas faculdades. Não se pode
desconhecer que o físico exerce, às vezes, grande influência sobre o moral;
todavia, na luta travada entre ambos, as almas fortes triunfam sempre. Sócrates
dizia que havia sentido germinar em si os instintos mais perversos e que os
domara. Havia nesse filósofo duas correntes de forças contrárias, uma orientada
para o mal, outra para o bem. Era a última que predominava. Há também causas
secretas que muitas vezes atuam sobre nós. Às vezes a intuição vem combater o
raciocínio, impulsos partidos da consciência profunda nos determinam num
sentido não previsto. Não é a negação do livre-arbítrio; é a ação da alma em
sua plenitude, intervindo no curso de seus destinos, ou então será a influência
exercida pelos nossos Guias invisíveis, que nos impele em direção ao plano
divino, ou ainda a intervenção de uma Inteligência que, vindo de mais longe e
mais alto, procura arrancar-nos às contingências inferiores e levar-nos para as
cumeadas. Em todos esses casos, porém, é somente nossa vontade que rejeita ou
aceita e decide em última instância.
Em resumo, em vez de negar ou
afirmar o livre-arbítrio, segundo a escola filosófica a que se pertença, seria
mais exato dizer: “O homem é o obreiro de sua libertação.” Ele atinge o estado
completo de liberdade pelo cultivo íntimo e pela valorização de suas potências
ocultas. Os obstáculos acumulados em seu caminho são meramente meios de o
obrigar a sair da indiferença e a utilizar suas forças latentes. Todas as
dificuldades materiais podem ser vencidas.
Somos todos solidários e a
liberdade de cada um liga-se à liberdade dos outros.
Libertando-se das paixões e da
ignorância, cada homem liberta seus semelhantes. Tudo o que contribui para
dissipar da inteligência as trevas e fazer recuar o mal torna a humanidade mais
livre, mais consciente de si mesma, de seus deveres e potências.
Elevemo-nos, pois, à consciência
de nosso papel e nosso objetivo e seremos livres. Com os nossos esforços,
ensinamentos e exemplos asseguraremos a vitória da vontade, assim como do bem,
e em vez de formarmos seres passivos, curvados ao jugo da matéria, expostos à
incerteza e inércia, teremos feito almas verdadeiramente livres, soltas das
cadeias da fatalidade e pairando acima do mundo pela superioridade das
qualidades conquistadas.
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