quinta-feira, 16 de julho de 2015

A morte e seu problema[1]





Fatalidade biológica, a morte é fenômeno habitual da vida. Na engrenagem molecular, associam-se e desagregam-se partículas, transformando-se através do impositivo que as constitui, face à finalidade específica de cada uma. Por efeito, o mesmo ocorre com o corpo, no que resulta o fenômeno conhecido como morte.
Desinformado quanto aos mecanismos da forma e da funcionalidade orgânica, desestruturado psicologicamente, o homem teme a morte, em razão do atavismo representativo do fim da vida, da consumpção do ser.
Em variadas culturas primitivas e contemporâneas, para fugir-se à realidade desta inevitável ocorrência, foram criados cerimoniais e cultos religiosos que pretendem diminuir o infausto acontecimento, escamoteando-o, ao tempo em que se adorna o morto de esperança quanto à sobrevivência.
Em muitas sociedades do passado, era comum colocar-se entre os dentes dos falecidos uma moeda de ouro, para recompensar o barqueiro encarregado de conduzi-lo à outra margem do rio da Vida. Na Grécia, particularmente, este uso se tornou normal, objetivando compensar a avareza de Caronte, que ameaçava deixar vagando os não-pagantes, quando da travessia do rio Estige, segundo a sua Mitologia.
Modernamente, repetindo o embalsamamento em que se notabilizaram os egípcios, nas Casas dos Mortos, busca-se embelezar os defuntos para que deem a impressão de vida e bem-estar, assim liberando os vivos dos temores e das reminiscências amargas. Todavia, por mais se mascare a verdade, chega o momento em que todos a enfrentam sem escapismo, convidados a vivenciá-la. A morte é um fenômeno ínsito da vida, que não pode ser desconsiderado.
Neuroses e psicoses graves se estabelecem no indivíduo em razão do medo da morte, paradoxalmente, nas expressões maníaco-depressivas, levando o paciente a suicidar-se ante o temor de a aguardar.
Numa análise psicológica profunda, o homem teme a morte, porque receia a vida. Transfere, inconscientemente, o pavor da existência física para o da destruição ou transformação dos implementos que a constituem. Acostumado a evadir-se das responsabilidades, mediante os mecanismos desculpistas, o inexorável acontecimento da morte se lhe torna um desafio que gostaria de não defrontar, por consciência, quiçá, de culpa, passando a detestar esse enfrentamento.
Para fugir, mergulha na embriaguez dos sentidos consumidores e das emoções perturbadoras, abreviando o tempo pelo desgaste das energias mantenedoras do corpo físico.
O homem, acreditando-se previdente e ambicioso, aplica o tempo na preparação do futuro e na preservação do presente. Entretanto, poderia e deveria investir parte dele na reflexão do fenômeno da morte, de modo a considera-lo natural e aguardá-lo com tranquila disposição emocional. Nem o desejando ou, sequer, evitando driblá-lo.
A educação que se lhe ministra desde cedo, face ao mesmo atavismo apavorante da morte, é centrada no prazer nas delícias do ego, nas vantagens que pode retirar do corpo, sem a correspondente análise de temporalidade e fragilidade de que se revestem. Graças a essa inadvertência espocam-lhe os conflitos, as fobias, a insegurança.
Um momento diário de análise, em torno da vida física, predispõe a criatura a projetar o pensamento para mais além do portal de cinza e de lama em que se deteriora a organização somática.
Tudo, no mundo físico, é impermanente, e tal impermanência pode ser vista sob duas formas: a exterior ou grosseira, e a interior ou sutil.
Nada é sempre igual, embora a aparência que preserva nos períodos de tempo diferentes. Por isto mesmo, tudo se encontra em incessante alteração no campo das micropartículas até o instante em que a forma se modifica — fase sutil de impermanência. Um objeto que se arrebenta e um corpo, vegetal, animal e humano, que morre, passam pela fase da transição exterior grosseira para uma outra estrutura, experimentando a morte.
A morte, todavia, não elimina o continuum da consciência, após a disjunção cadavérica.
Se, desde cedo, cria-se o hábito da meditação a respeito da consciência sobrevivente, independente do corpo, a morte perde o seu efeito tabu de aniquiladora, odienta destruidora do ideal, do ser, da vida.
O tradicional enigma do que acontece após a morte deve ser de interesse relevante para o homem que, meditando, encontra o caminho para decifrá-lo. Deixar-se arrastar pelo pavor ou não lhe dar qualquer importância constituem comportamentos alienantes.
A curiosidade pelo desconhecido, a tendência de investigar os fenômenos novos são atrações para a mente perquiridora, que encontra recursos hábeis para os cometimentos.
A intuição da vida, o instinto de preservação da existência, as experiências psíquicas do passado e parapsicológicas do presente atestam que a morte é um veículo de transferência do ser energético pensante, de uma fase ou estágio vibratório para outro, sem expressiva alteração estrutural da sua psicologia. Assim, morre-se como se vive, com os mesmos conteúdos psicológicos que são os alicerces (inconsciência) do eu racional (consciência).
Nesta panorâmica da vida (no corpo) e da morte (do corpo) ressalta um fator decisivo no comportamento humano: o apego à matéria, com as consequentes emoções perturbadoras e extratos do comportamento contaminados, jacentes na personalidade.
Sob um ponto de vista, a manifestação do instinto de conservação é valiosa, por limitar os tresvarios do homem que, diante de qualquer vicissitude, apelaria para o suicídio, qual acontece com certos psicopatas. De certo modo, frenado, inconscientemente, enfrenta os problemas e supera-os com a ação eficiente do seu esforço dirigido corretamente.
Por outro lado, os esclarecimentos religiosos, embora a multiplicidade dos seus enfoques, demonstrando que a morte é período de transição entre duas fases da vida, contribuem para demitizar o pavor do aniquilamento.
Definitivamente, as experiências psíquicas, parapsicológicas e mediúnicas, provocadas ou naturais, têm trazido importante contribuição para equacionar o problema da morte, dando sentido à existência.
Conscientizando-se, o homem, da continuidade do ser pensante após as transformações do corpo através da morte da forma, alteram-se lhe, totalmente, os conceitos sobre a vida e a sua conduta no transcurso da experiência orgânica.
De qualquer forma, reservar espaços mentais para o desapego das coisas, das pessoas e das posições, analisando a inevitabilidade da morte, que obriga o indivíduo a tudo deixar, é uma terapia saudável e necessária para um trânsito feliz pelo mundo objetivo.


[1] O Homem Integral – Joanna de Ângelis/Divaldo Franco – Ba, Centro Espírita Caminho da Redenção

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