Allan Kardec
1. Evocação.
– Falai; eu responderei.
2. Embora estejais morto há 1743 anos, tendes recordação de
vossa existência em Roma ao tempo de Trajano?
– Por que, então, nós, Espíritos, não nos haveríamos de
recordar? Lembrais-vos de muitos atos de vossa infância. Que é, pois, para o
Espírito uma existência passada, senão a infância das existências pelas quais
devemos passar antes de chegarmos ao fim de nossas provas? Toda existência
terrena ou envolvida pelo véu material é uma caminhada para o éter e, ao mesmo
tempo, uma infância espiritual e material: espiritual porque o Espírito ainda
se acha no começo das provas; e material porque apenas está adentrando as fases
mais grosseiras pelas quais deve passar, a fim de depurar-se e instruir-se.
3. Poderíeis dizer-nos o que tendes feito desde aquela
época?
– Seria longo dizer o que fiz; procurei fazer o bem; sem
dúvida não quereis passar horas inteiras até que eu conte tudo; contentai-vos,
pois, com uma resposta. Repito: procurei fazer o bem, instruir-me e levei
criaturas terrestres e errantes a se aproximarem do Criador de todas as coisas,
daquele que nos dá o pão da vida espiritual e material.
4. Que mundo habitais agora?
– Pouco importa; estou um pouco em toda parte; o espaço é
o meu domínio, bem como o de muitos outros. São questões que um Espírito sábio
e esclarecido pela luz santa e divina não deve responder ou somente fazê-lo em
ocasiões muito raras.
5. Numa carta que escrevestes a Sura relatais três casos de
aparição. Lembrai-vos deles?
– Eu os confirmo, porque são verdadeiros. Tendes fatos
semelhantes diariamente, aos quais não prestais a menor atenção; são bastante
simples, contudo, à época em que eu vivia nós os achávamos surpreendentes. Não
vos deveis admirar; deixai de lado essas coisas, pois tendes outras bem mais
extraordinárias.
6. Entretanto, gostaríamos de vos dirigir algumas perguntas
a respeito.
– Contanto que eu vos responda de maneira geral; isto vos
deve bastar. Perguntai, pois, se fazeis questão absoluta; serei, no entanto,
lacônico em minhas respostas.
7. No primeiro caso, uma mulher aparece a Curtius Rufus e
lhe diz que é a África. Quem era essa mulher?
– Uma grande figura. Parece-me que ela é muito simples
para homens esclarecidos, tais os do século XIX.
8. Qual a razão que impelia o Espírito que apareceu a
Atenodoro[3],
e por que aquele ruído de correntes?
– Marca da escravidão, manifestação; meio de convencer os
homens, de chamar-lhes a atenção, fazendo falar da coisa e provar a existência
do mundo espiritual.
9. Defendias, perante Trajano, a causa dos cristãos
perseguidos. Foi por simples razões humanitárias ou por convicção da veracidade
de sua doutrina?
– Eu tinha os dois motivos, mas o aspecto humanitário
ocupava o segundo lugar.
10. Que pensais do vosso panegírico[4]
de Trajano?
– Ele teria necessidade de ser refeito.
11. Escrevestes uma história do vosso tempo que se perdeu.
Poderíeis reparar essa perda no-la ditando?
– O mundo dos Espíritos não se manifesta especialmente
por estas coisas. Tendes certos tipos de manifestações, mas elas têm o seu
objetivo: são outras tantas balizas, fincadas à direita e à esquerda na grande
estrada da verdade; mas deixai-as de lado e não vos ocupeis com isso nem a isso
consagreis os vossos estudos. A nós compete o cuidado de ver e julgar aquilo
que vos importa saber. Cada coisa tem seu tempo; não vos afasteis, pois, da
linha que vos traçamos.
12. Folgamos em prestar justiça às vossas boas qualidades e,
sobretudo, ao vosso desinteresse. Dizem que não exigíeis coisa alguma dos
clientes que defendíeis. Esse desinteresse era assim tão grande em Roma quanto
o é entre nós?
– Não lisonjeeis as minhas qualidades passadas. Não lhes
atribuo nenhuma importância. O desinteresse não é muito cultivado em vosso
século. Em cada duzentos homens encontrareis apenas um ou dois verdadeiramente
desinteressados; bem sabeis que é o século do egoísmo e do dinheiro. Os homens
do presente são feitos de lama e revestidos de metal. Outrora havia coração, a
verdadeira força dos Antigos; hoje só existe a posição social.
13. Sem pretender absolver nosso século, parece-nos que
ainda é preferível àquele em que vivestes, onde a corrupção atingia o seu
apogeu e a delação nada conhecia de sagrado.
– Faço uma generalização que é bem verdadeira. Sei que à
época em que eu vivia não existia muito desinteresse; entretanto, havia aquilo
que não possuís ou, pelo menos, que o possuís em dose muito fraca: o amor do
belo, do nobre, do grande. Falo para todo o mundo. O homem do presente,
sobretudo os povos do Ocidente, os franceses particularmente, têm o coração
pronto para fazer grandes coisas, mas isso não passa de um relâmpago. Logo vem
a reflexão e a reflexão pondera e diz: o positivo, o positivo antes de tudo; e
o dinheiro e o egoísmo voltam a tomar a frente. Nós nos manifestamos justamente
porque vos afastais dos grandes princípios dados por Jesus. Adeus. Ainda não o
compreendeis.
Observação – Compreendemos muito bem que nosso
século ainda deixa muito a desejar; sua chaga é o egoísmo e o egoísmo gera a
cupidez e a sede das riquezas. Sob esse aspecto está longe do desinteresse de
que o povo romano ofereceu tantos exemplos sublimes em uma certa época, mas que
não foi a de Plínio. No entanto seria injusto desconhecer a sua superioridade
em mais de um ponto, mesmo sobre os mais belos tempos de Roma, que também
tiveram os seus exemplos de barbárie. Havia, então, ferocidade até na grandeza
e no desinteresse, ao passo que o nosso século será marcado pelo abrandamento
dos costumes, pelos sentimentos de justiça e de humanidade que presidem a todas
as instituições que vê nascer e, até, nas querelas entre os povos.
Allan Kardec
[1] Caio Plínio Cecílio Segundo, também conhecido como
Plínio, o Jovem, o Moço ou o Novo, foi orador insigne, jurista, político, e
governador imperial na Bitínia. (Wikipédia)
[2] REVISTA ESPÍRITA – março/1859 – Allan Kardec
[3] Atenodoro de Tarso ou Atenodoro Cananita foi um
filósofo estoico. Nasceu em Canana, perto de Tarso. O seu pai foi Sandon. Foi
aluno de Posidônio de Rodes, e professor de Otaviano em Apolónia. Em 44 a.C.,
seguiu Otaviano até Roma e continuou a ser seu mentor. (Wikipédia)
[4] Discurso público em louvor a alguém ou a um ser
abstrato, elogio solene.
Nenhum comentário:
Postar um comentário