Allan Kardec
A questão da pluralidade das
existências há desde longo tempo preocupado os filósofos e mais de um
reconheceu na anterioridade da alma a única solução possível para os mais
importantes problemas da psicologia. Sem esse princípio, eles se encontraram
detidos a cada passo, encurralados num beco sem saída, donde somente puderam
escapar com o auxílio da pluralidade das existências.
A maior objeção que podem fazer
a essa teoria é a da ausência de lembranças das existências anteriores. Com efeito,
uma sucessão de existências inconscientes umas das outras; deixar um corpo para
tomar outro sem a memória do passado equivaleria ao nada, visto que seria o
nada quanto ao pensamento; seria uma multiplicidade de novos pontos de partida,
sem ligação entre si; seria a ruptura incessante de todas as afeições que fazem
o encanto da vida presente, a mais doce e consoladora esperança do futuro; seria,
afinal, a negação de toda a responsabilidade moral.
Semelhante doutrina seria tão
inadmissível e tão incompatível com a justiça divina, quanto a de uma única
existência com a perspectiva de uma eternidade de penas por algumas faltas
temporárias. Compreende-se então que os que formam semelhante ideia da
reencarnação a repilam; mas, não é assim que o Espiritismo no-la apresenta.
A existência espiritual da alma,
diz ele, é a sua existência normal, com indefinida lembrança retrospectiva. As existências
corpóreas são apenas intervalos, curtas estações na existência espiritual,
sendo a soma de todas as estações apenas uma parcela mínima da existência
normal, absolutamente como se, numa viagem de muitos anos, de tempos a tempos o
viajor parasse durante algumas horas.
Embora pareça que, durante as
existências corporais, há solução de continuidade, por ausência de lembrança, a
ligação efetivamente se estabelece no curso da vida espiritual, que não sofre
interrupção. A solução de continuidade, realmente, só existe para a vida
corpórea exterior e de relação, e a ausência, aí, da lembrança prova a
sabedoria da Providência que assim evitou fosse o homem por demais desviado da
vida real, onde ele tem deveres a cumprir; mas, quando o corpo se acha em
repouso, durante o sono, a alma levanta o voo parcialmente e restabelece-se
então a cadeia interrompida apenas durante a vigília.
A isto ainda se pode opor uma
objeção, perguntando que proveito pode o homem tirar de suas existências
anteriores, para melhorar-se, dado que ele não se lembra das faltas que haja
cometido. O Espiritismo responde, primeiro, que a lembrança de existências
desgraçadas, juntando-se às misérias da vida presente, ainda mais penosa
tornaria esta última. Desse modo, poupou Deus às suas criaturas um acréscimo de
sofrimentos. Se assim não fosse, qual não seria a nossa humilhação, ao
pensarmos no que já fôramos!
Para o nosso melhoramento,
aquela recordação seria inútil. Durante cada existência, sempre damos alguns
passos para a frente, adquirimos algumas qualidades e nos despojamos de algumas
imperfeições. Cada uma de tais existências é, portanto, um novo ponto de
partida, em que somos qual nos houvermos feito, em que nos tomamos pelo que
somos, sem nos preocuparmos com o que tenhamos sido. Se, numa existência
anterior, fomos antropófagos, que importa isso, desde que já não o somos? Se
tivemos um defeito qualquer, de que já não conservamos vestígio, aí está uma
conta saldada, de que não mais nos cumpre cogitar. Suponhamos que, ao
contrário, se trate de um defeito apenas meio corrigido: o restante ficará para
a vida seguinte e a corrigi-lo é do que nesta devemos cuidar.
Tomemos um exemplo: um homem foi
assassino e ladrão, e foi punido, quer na vida corpórea, quer na vida
espiritual; ele se arrepende e corrige do primeiro pendor, porém, não do
segundo. Na existência seguinte, será apenas ladrão, talvez um grande ladrão,
porém, não mais assassino.
Mais um passo para diante e já
não será mais que um ladrão obscuro; pouco mais tarde já não roubará, mas
poderá ter a veleidade de roubar, que a sua consciência neutralizará.
Depois, um derradeiro esforço e,
havendo desaparecido todo vestígio da enfermidade moral, será um modelo de
probidade. Que lhe importa então o que ele foi?
A lembrança de ter acabado no
cadafalso não seria uma tortura e uma humilhação constantes?
Aplicai este raciocínio a todos
os vícios, a todos os desvios, e podereis ver como a alma se melhora, passando
e tornando a passar pelos cadinhos da encarnação. Não terá sido Deus mais justo
com o tornar o homem árbitro da sua própria sorte, pelos esforços que empregue
por se melhorar, do que se fizesse que sua alma nascesse ao mesmo tempo que seu
corpo e o condenasse a tormentos perpétuos por erros passageiros, sem lhe
conceder meios de purificar-se de suas imperfeições? Pela pluralidade das
existências, nas suas mãos está o seu futuro. Se ele gasta longo tempo a se
melhorar, sofre as consequências dessa maneira de proceder: é a suprema
justiça; a esperança, porém, jamais lhe é interdita.
A seguinte comparação é de modo
a tornar compreensíveis as peripécias da vida da alma:
Suponhamos uma estrada longa, em
cuja extensão se encontram, de distância em distância, mas com intervalos desiguais,
florestas que se tem de atravessar e, à entrada de cada uma, a estrada, larga e
magnífica se interrompe, para só continuar à saída. O viajor segue por essa
estrada e penetra na primeira floresta. Aí, porém, não dá com caminho aberto; deparasse-lhe,
ao contrário, um dédalo inextricável em que ele se perde. A claridade do Sol há
desaparecido sob a espessa ramagem das árvores. Ele vagueia, sem saber para
onde se dirige. Afinal, depois de inauditas fadigas, chega aos confins da
floresta, mas extenuado, dilacerado pelos espinhos, machucado pelos pedrouços.
Lá, descobre de novo a estrada e prossegue a sua jornada, procurando curar-se
das feridas.
Mais adiante, segunda floresta se lhe antolha, onde o esperam
as mesmas dificuldades. Mas, ele já possui um pouco de experiência e dela sai
menos contundido. Noutra, topa com um lenhador que lhe indica a direção que
deve seguir para se não transviar. A cada nova travessia, aumenta a sua
habilidade, de maneira que transpõe cada vez mais facilmente os obstáculos.
Certo de que à saída encontrará de novo a boa estrada, firma-se nessa certeza;
depois, já sabe orientar-se para achá-la com mais facilidade. A estrada finaliza
no cume de uma montanha altíssima, donde ele descortina todo o caminho que
percorreu desde o ponto de partida. Vê também as diferentes florestas que
atravessou e se lembra das vicissitudes por que passou, mas essa lembrança não
lhe é penosa, porque chegou ao termo da caminhada. É qual velho soldado que, na
calma do lar doméstico, recorda as batalhas a que assistiu. Aquelas florestas que
pontilhavam a estrada lhe são como que pontos negros sobre uma fita branca e
ele diz a si mesmo: “Quando eu estava naquelas florestas, nas primeiras,
sobretudo, como me pareciam longas de atravessar! Figuravas-me que nunca terminaria;
tudo ao meu derredor me parecia gigantesco e intransponível. E quando penso
que, sem aquele bondoso lenhador que me pôs no bom caminho, talvez eu ainda lá
estivesse! Agora, que contemplo essas mesmas florestas do ponto onde me acho,
como se me apresentam pequeninas! Afigurasse-me que de um passo teria podido transpô-las;
ainda mais, a minha vista as penetras e lhes distingo os menores detalhes;
percebo até os passos em falso que dei.
Diz-lhe então um ancião:
— Meu filho, eis-te chegado ao termo da viagem; mas, um
repouso indefinido causar-te-á tédio mortal e tu te porias a ter saudades das vicissitudes
que experimentaste e que te davam atividade aos membros e ao Espírito. Vês
daqui grande número de viajantes na estrada que percorreste e que, como tu,
correm o risco de transviar-se; tens experiência, nada mais temas: vai-lhes ao
encontro e procura com teus conselhos guiá-los, a fim de que cheguem depressa.
Replica o nosso homem:
— Irei com alegria, entretanto, pergunto: por que não
há uma estrada direta desde o ponto de partida até aqui? Isso forraria aos
viajantes o terem de atravessar aquelas abomináveis florestas.
Retruca o ancião:
— Meu filho atenta bem e verás que muitos evitam a
travessia de algumas delas: são os que, tendo adquirido mais de pronto a
experiência necessária, sabem tomar um caminho mais direto e mais curto para chegarem
aqui. Essa experiência, porém, é fruto do trabalho que as primeiras travessias
lhes impuseram, de sorte que eles aqui aportam em virtude do mérito próprio.
Que é o que saberias, se por lá não houvesses passado? A atividade que houveste
de desenvolver, os recursos de imaginação que precisaste empregar para abrir
caminho aumentaram os teus conhecimentos e desenvolveram a tua inteligência.
Sem que tal se desse, serias tão noviço quanto o eras à
partida. Ao demais, procurando safar-te dos tropeços, contribuíste para o
melhoramento das florestas que atravessaste.
O que fizeste foi pouca coisa, imperceptível mesmo; pensa,
contudo, nos milhares de viajores que fazem outro tanto e que, trabalhando para
si mesmos, trabalham, sem o perceberem, para o bem comum. Não é justo que
recebam o salário de suas penas no repouso de que gozam aqui?
Que direito lhes caberia a
esse repouso, se nada houvessem feito?
Responde o viajor:
— Meu pai numa das florestas, encontrei
um homem que me disse: “Na orla há um imenso abismo a ser transposto de um
salto; mas, de mil, apenas um só o consegue; todos os outros lhe caem no fundo,
numa fornalha ardente e ficam perdidos sem remissão. Esse abismo eu não o vi.
Responde o Ancião:
— Meu filho, é que ele não existe, pois, do contrário, seria
uma cilada abominável, armada a todos os que para cá se dirigem. Bem sei que
lhes cabe vencer dificuldades, mas igualmente sei que cedo ou tarde as
vencerão. Se eu houvera criado impossibilidades para um só que fosse, sabendo que
esse sucumbiria, teria praticado uma crueldade, que avultaria imenso, se
atingisse a maioria dos viajores.
Esse abismo é uma alegoria, cuja explicação vais
receber.
Olha para a estrada e observa os intervalos das
florestas.
Entre os viajantes, alguns vês que caminham com passo lento
e semblante jovial; vê aqueles amigos, que se tinham perdido de vista nos
labirintos da floresta, como se sentem ditosos, por se haverem de novo
encontrado ao deixarem-na.
Mas, a par deles, outros há que se
arrastam penosamente; estão estropiados e imploram a compaixão dos que passam, pois
que sofrem atrozmente das feridas de que, por culpa própria, se cobriram,
atravessando os espinheiros.
Curar-se-ão, no entanto, e isso lhes constituirá uma lição
da qual tirarão proveito na floresta seguinte, donde sairão menos machucados. O
abismo simboliza os males que eles experimentam e, dizendo que de mil apenas um
o transpõe, aquele homem teve razão, porquanto enorme é o número dos
imprudentes; errou, porém, quando disse que aquele que ali cair não mais sairá.
Para chegar a mim, o que tombou encontra sempre uma saída. Vai, meu filho, vai
mostrar essa saída aos que estão no fundo do abismo; vai amparar os feridos que
se arrastam pela estrada e mostrar o caminho aos que se embrenharam pelas
florestas.
A estrada é a imagem da vida espiritual da alma e em cujo
percurso esta é mais ou menos feliz. As florestas são as existências corpóreas,
em que ela trabalha pelo seu adiantamento, ao mesmo tempo que na obra geral. O
caminheiro que chega ao fim e que volta para ajudar os que vêm atrasados figura
os anjos guardiães, os missionários de Deus, que se sentem venturosos em vê-lo,
como, também, no desdobrarem suas atividades para fazer o bem e obedecer ao
supremo Senhor.
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