sábado, 2 de março de 2024

ENFRENTANDO AS TENTAÇÕES[1]

 


Miguel Vives y Vives

 

Assim como é muito difícil encontrar na Terra quem esteja sempre em perfeito estado de saúde física, mais ainda é encontrar alguém com perfeita saúde moral.

Ninguém é perfeito neste mundo. Assim como a atmosfera e as condições materiais influem diretamente em nosso organismo, predispondo-o a certas enfermidades, os elementos espirituais que nos cercam influem sobre a nossa condição moral. Aproveitam-se das coisas mais insignificantes, para provocar-nos sofrimentos e mal-estar interior, objetivando mortificar-nos ou deter-nos na via do progresso.

Os elementos espirituais que nos cercam infiltram-se constantemente em nosso psiquismo, como os elementos atmosféricos o fazem, em relação ao nosso corpo. E criam ao nosso redor condições propícias ao desenvolvimento de enfermidades, se não estivermos aptos a repeli-las. Assim, pois, devemos estar prevenidos para afugentar ambas as influências.

Mas assim como, por maiores que sejam as nossas precauções, não podemos afastar de todo as influências do frio e do calor, em suas bruscas variações, tampouco podemos evitar completamente as tentações. O que podemos fazer é não cair na sua rede. Aqui, pois, deve estar a base do nosso método. A isto devemos dirigir toda a nossa atenção, todo o nosso cuidado, mesmo que nos custe o maior sacrifício.

Que fazemos com os elementos atmosféricos? No inverno, abrigamo-nos, e no verão aliviamos as roupas e procuramos os lugares frescos. Mas se, com isso, não evitamos as moléstias do tempo, temos de nos conformar a não lhes dar importância.

Sofremos resignados e procuramos resistir o quanto possível, dizendo “Isto é o frio”, ou “Assim é o calor”, e concluímos:

“Logo passará”, sem mais nos incomodarmos. Da mesma maneira devemos fazer com as tentações. Porque constituem um mal que atinge a todos, não há ninguém que não as sofra. Quase diríamos: é uma condição necessária. E quase nos atreveríamos a afirmar, indispensável ao nosso progresso.

Entenda-se, porém, que a tentação não tem sempre e para todos os indivíduos o mesmo caráter e as mesmas formas. Da mesma maneira que os graus da virtude e dos defeitos são múltiplos, também são muitas as variedades da tentação. Nem sempre o espírito que nos tenta se limita a excitar desejos e pensamentos maus em nossa mente. Às vezes penetra em nossa consciência e nos faz sentir desejos que nos parecem necessidades próprias, que devemos satisfazer. Tanto podem ser os de ordem física, como a sensualidade e as extravagâncias várias, o descanso indevido, os vícios, e assim por diante, como podem ser os de ordem moral, como desejos de vingança, de crítica maldosa, de paixões exageradas ou de repulsa para determinadas pessoas.

Há criaturas de suficiente retidão e de tão boas intenções, que o espírito das trevas encontra muita dificuldade em penetrar no seu íntimo. Muito amiúde, porém, acontece que essas pessoas, à primeira contrariedade, soltam palavras inconvenientes, em tom áspero, ou excitam-se por pouca coisa, e embora nada de mal sentissem no seu íntimo, o espírito das trevas, que as vinha espreitando, aproveita-se da oportunidade para fazê-la cair.

Geralmente, a tentação deita suas raízes em nosso entendimento, e por isso a chamamos assim, mas não é somente dessa maneira que age o espírito das trevas, para fazer-nos cair.

Sucede às vezes que sentimos uma tristeza e um mau-humor sem motivo aparente, ou por motivo tão insignificante, que nos surpreendemos com o seu efeito. Esse estado é antes um início de possessão do que uma tentação. O espírito que a causa pode não somente tirar-nos a tranquilidade, mas também comprometer-nos e alterar-nos a saúde. De outras vezes, a forma da tentação ou da possessão é outra. Leva-nos a gostar demasiado de alguma pessoa, sem sabermos porque, a fim de fazer-nos cometer injustiças. Isto pode acontecer no seio da família ou com pessoas estranhas. Essa forma de ação, como a anterior, pode fazer-nos sofrer muito, e necessitamos de muita força de vontade para vencê-la.

É então que devemos recordar as palavras do Mestre: “Vigiai e orai”. É quando devemos manter o pensamento bem elevado e agir com muita justiça, evitando afastarmo-nos, o mínimo que seja, dos nossos deveres. E, se assim mesmo não pudermos afastar a possessão, nem por isso devemos desanimar, mas pedir e sustentar o pensamento elevado, opondo uma paciência e uma resignação a toda prova às más influências, pois dessa maneira conseguiremos adiantar-nos muito. Estas penas ocultas, que às vezes por nada no mundo comunicaríamos a quem quer que fosse, têm grande mérito perante Deus e fortalecem muito o espírito encarnado.

Nunca devemos olvidar que, na Terra, não teremos jamais a paz completa e que, se alguma vez chegarmos a senti-la, será por pouca duração. Assim, pois, quando formos atormentados por estados como esses, devemos ser fortes, resistir e opor-lhes serenidade, paciência e calma sem limites. Por outro lado, não devemos esquecer-nos de que, apesar do sofrimento que eles nos causam, desaparecem num momento e nos deixam tranquilos, como se nada houvéssemos sofrido. Estas variações ocorrem por causa da luta entre os espíritos que nos amam e os que nos aborrecem. Nunca devemos, pois, desconfiar da ausência dos seres espirituais que nos amam. Pelo contrário, devemos confiar muito neles e pedir-lhes, suplicar-lhes a proteção, quando nos virmos em apuros, pois que muito poderão fazer por nós, se nos pusermos em condições de receber as suas boas influências.

A tentação por pensamento não nos causa tanto sofrimento como a possessão. Para combater esta, devemos extirpar as nossas paixões, os nossos vícios e desejos ilícitos. Todos conhecem esta perturbação, menos os que estão dominados pela incredulidade. Ela começa assim: o espírito das trevas faz que nossos pensamentos e desejos ilícitos provoquem sensações e excitações, quando se apresenta uma ocasião favorável. Temos então de cerrar as portas do pensamento a toda ideia que represente uma infração da lei divina. E se, apesar da resistência, continuamos excitados, devemos colocar-nos no lugar da vítima e refletir se gostaríamos que nos roubassem o que nos é mais sagrado e mais caro, procurando compreender o que é justo.

Parece demais tratarmos destes assuntos com os espíritas, porém não o é. Quando entramos no Espiritismo, não somos perfeitos. Muito pelo contrário, temos às vezes grandes defeitos a combater. E muito mais quando o espírito das trevas, que nos dominava no tempo em que nos entregávamos apenas às coisas do mundo, não quer separar-se de nós, aferrando-se ao que lhe parecia do seu domínio.

Acontece, às vezes – e é um fenômeno comum aos que entram no Espiritismo –, que ao conhecê-lo as pessoas sentem vivos desejos de transformar-se, tomando decisões novas e afastando-se dos desejos ilícitos. A resolução de seguir uma vida nova logo se concretiza. Durante algum tempo, essas criaturas se limpam de todo. Logo mais, porém, as primeiras impressões se extinguem, pouco a pouco, e as pessoas começam a voltar a ser o que eram. Então, o espírito que as dominava retorna à antiga morada, e elas caem de novo. Se o espírita, nesse caso não se escudar na oração, no amor, na caridade, com um forte desejo de libertar-se, as coisas se tornam piores do que antes[2].

Por isso, temos visto a falência de muitos que começaram e não puderam continuar. Se estavam mal antes da tentativa, pior ficaram depois. É particularmente às pessoas muito aferradas ao dinheiro, aos interesses materiais, que isso acontece. Essa paixão é muito difícil de ser arrancada, a que mais custa corrigir. Dessa maneira, é muito raro, para não dizer impossível, que um egoísta, apegado ao dinheiro, consiga entrar e manter-se no Espiritismo.

Aplica-se aqui a transcendente frase de Allan Kardec: “Fora da caridade não há salvação.” O espírito aferrado aos interesses materiais, enquanto durar esse estado, quase podemos dizer que é incapaz de compreender e aceitar o Espiritismo: eis a barreira que retém a humanidade.

O apego ao dinheiro é sinal evidente de falta de caridade e amor ao próximo. Quem tem esse apego não se encontra em vias de realizar grandes progressos. O homem deve procurar atender as suas necessidades, de maneira justa e honrosa. Quando elas já estão satisfeitas, não deve exceder-se em ambições e desejos insaciáveis. Se é espírita, tudo quanto puder adquirir, além do que necessita, deve fazê-lo apenas por meios estritamente lícitos, e do que ajuntar deve distribuir grande parte aos necessitados.

Somente assim lhe será permitido possuir mais do que necessita, sem cair em responsabilidade. Do contrário, se não der aos pobres a participação nos seus ganhos, por mais que estes pareçam lícitos perante o mundo, são uma usurpação perante Deus. O que assim procede, sendo espírita, além de não progredir, retrocede: “Fora da caridade não há salvação”. E que não abuse dos juros, para os que precisam de dinheiro.

O espírita deve lembrar-se de que a sua felicidade não está na Terra, mas no Espaço. Assim, pois, deve fazer todo o possível para enriquecer o seu espírito com virtudes e boas obras. Para tanto, não deve esquecer que um dos seus maiores inimigos é o amor ao dinheiro, ou seja, o egoísmo, que é o pior e o mais fatal inimigo do homem. Já tratamos de maneira a combater essa paixão e a tentação que a acompanha: é tornar os necessitados participantes da nossa poupança. Isso fará que as nossas iniciativas e os nossos trabalhos redundem em benefício dos que sofrem. O que preceder desta maneira terá a satisfação de possuir algo para o seu bem-estar terreno e para o seu progresso espiritual, pois os seus esforços resultam na prática do bem.

Assim, ao realizar um bom negócio ou fazer um trabalho bem pago, deverá imediatamente destinar uma quantia proporcional ao ganho para remediar os males e as necessidades dos que sofrem. E isto sem dar atenção a pensamentos egoístas, às conveniências pessoais, realizando logo a boa determinação, pois do contrário o espírito das trevas acorre, desbarata os bons desejos e inutiliza tudo.

Quanto à tentação possessiva, que é aquela em que o espírito das trevas penetra na própria consciência da criatura, há uma maneira de conhecê-la e combatê-la: basta opor-lhe um estado de consciência baseado no desejo da mais reta justiça. Por exemplo: sentimos repugnância por uma ou várias pessoas? Oporemos a isso um espírito de caridade a toda prova. Sentimos um amor excessivo por alguém? Devemos equilibrá-lo pelo senso da reta justiça. Por exemplo: é justo que se dê essa preferência a alguém? Se não é justo, podemos estar seguros de que o sentimento excessivo é sustentado por algum inimigo do espaço, mormente se ele pode acarretar uma paixão ou perturbar a harmonia no seio da família, ou no círculo das nossas relações.

Já assinalamos que a tentação se manifesta por muitas maneiras. Mas, se nos escudarmos num verdadeiro senso de justiça, perceberemos logo a sua presença e poderemos combate-la.

No caso de não podermos afastá-la apenas pela nossa vontade, temos de recorrer à oração, evocando com ardor e fé o nosso guia espiritual e as influências de espíritos elevados, que atenderão com prazer ao nosso apelo, pois desejam sempre o nosso progresso e a nossa elevação. Por mais aflitiva, portanto, que seja a nossa situação, nunca devemos duvidar do auxílio do Alto, tanto mais quando o solicitarmos.

A estes casos é que se aplicam as palavras do Senhor: “Pedi, e vos será dado”; “Batei e se vos abrirá”; “Vigiai e orai”. Ao mesmo tempo, enquanto se sofre, é preciso alimentar uma paciência a toda prova, com serena resignação, que é a maneira mais eficaz de desanimar o espírito tentador. Assim, se aos nossos estados de alma e às tentações soubermos opor sempre um senso de reta justiça e uma paciência e resignação a toda prova, oferecemos uma barreira ao espírito das trevas, que nunca poderá induzir-nos ao erro, nem causar-nos qualquer espécie de transtorno ou retrocesso. Pelo contrário, todos os males que o espírito das trevas quiser causar-nos darão um resultado contrário ao que ele deseja.

Sim, quando sofremos a tentação, com o senso da reta justiça, com paciência e resignação, ao mesmo tempo progredimos e damos provas ao Pai de que sabemos sofrer no cumprimento da lei, e esperar resignados. É esta a suprema maneira de agir, para os espíritos que vivem, já viveram e viverão na Terra. Com essa maneira, não evitaremos todos os males e sofrimentos que os espíritos atrasados podem causar-nos, mas triunfaremos de todas as suas acometidas, e os aborrecimentos que lhes causarmos servirão para fazê-los progredir. Se fizermos assim, poderemos repetir as palavras de um grande escritor antigo: Quando resistimos à tentação, ela é a formiga do leão; mas quando nos entregamos, ela é o leão da formiga; sejamos sempre o leão, e a tentação a formiga, que nada teremos a temer. Dessa maneira, seremos donos de nós mesmos, pensando, sentindo e querendo unicamente o que o dever nos impõe. E assim nos pouparemos muitas angústias na vida e nos prepararemos para entrar mais tarde no Reino de Deus.

Não obstante, nunca devemos esquecer, enquanto estivermos na Terra, que seremos contrariados em tudo. A humanidade ainda está muito atrasada, e poucas pessoas sabem cumprir todos os seus deveres. Como temos de viver em relação com muitas, tanto na família como no círculo das amizades, nunca nos faltarão contrariedades. Por isso, enquanto estivermos na Terra devemos viver alertas, escudando-nos no amor, na admiração e na adoração ao Pai, sem limites, e pondo toda a nossa esperança na grandeza da sua obra. É ela a casa onde teremos de viver eternamente. É necessário, pois, seguir a lei divina, ensinada por nosso Senhor e Mestre. É necessário pô-la em prática, tendo grande fé e amor pela palavra do Senhor.

E se algum dia as angústias da vida nos perseguirem, não olvidemos as suas palavras: “Bem-aventurados os que sofrem, pois deles será o Reino dos Céus”. Façamos que a confiança na sua promessa nos dê valor e força para tudo suportar, lembrando que a existência terrena não é mais do que um sopro, um período curtíssimo de nossa existência universal, e que, pelos dias e noites que sofrermos na Terra, se soubermos conformar-nos e seguir o exemplo dos mártires e dos justos, teremos mil anos de repouso e felicidade.

Animai-vos, meus irmãos! Vós que sofreis, deixai que o corpo se faça em pedaços ou sucumba aos golpes da dor, mantendo o espírito fortalecido na prática da submissão e do valor moral. Permanecei fiéis a Deus, o Senhor Supremo, no cumprimento da sua lei. Não olvideis que a recompensa superará todos os vossos desejos e todas as vossas esperanças.

Aconselhamos, por fim, ao irmão que estiver angustiado pela tentação, que procure um irmão digno de confiança, abrindo-lhe o seu coração e pedindo a sua ajuda. Consideremos, porém, que as pessoas consultadas nessas ocasiões, que bem podem ser os presidentes de reuniões ou de Centros, devem ser prudentes, misericordiosas, caritativas, meigas no falar e no agir, capazes de toda a abnegação, amando a Deus e submissas ao Senhor e às suas leis. Devem considerar, ao ser consultadas por essas almas enfermas, que exercem a função de guias espirituais, e que podem fazer muito bem ao consulente, se souberem responder com segurança, mansidão e caridade.

É necessário haver entre os espíritas pessoas experientes na prática da virtude, da caridade, do amor ao próximo, da adoração ao Pai e da veneração ao Senhor, porque só assim esses irmãos terão luz suficiente para atender aos casos de necessidade, ajudar aos demais e dar-lhes a mão no intricado labirinto da vida. Bem aventurado o que se esforça para chegar a esse estado! Pois não conhecerá as trevas e merecerá a confiança dos que vivem no Alto e dos que vivem na Terra. É assim que, depois desta morada terrena, chegaremos a entrar no Reino de Deus.



[1] O TESOURO DOS ESPÍRITAS – Miguel Vives y Vives

[2] Em Mateus, 12:43-45, Jesus ensina que o espírito imundo afastado do homem, volta mais tarde, e encontrando a casa limpa e adornada, passa a habitá-la de novo, na companhia de mais sete espíritos, piores do que ele.

E acrescenta: “E são os últimos atos desse homem piores do que os primeiros”. (N.T.)

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