terça-feira, 23 de janeiro de 2024

UM AVISO DE ALÉM-TÚMULO[1]

 



Allan Kardec

 

O seguinte fato foi relatado pela Patrie, de 15 de agosto de 1858:

Terça-feira passada, cometi a imprudência de vos contar uma história emocionante. Deveria ter pensado que não existem histórias emocionantes; há somente histórias bem contadas, de maneira que o mesmo fato, narrado por duas pessoas diferentes, pode fazer dormir um auditório ou provocar arrepios de terror. Como me entretive com meu companheiro de viagem, de Cherbourg a Paris, o Sr. B..., de quem ouvi uma anedota maravilhosa! Se a tivesse estenografado, certamente teria a possibilidade de vos causar arrepios.

Mas cometi a imprudência de confiar em minha memória detestável, o que lamento profundamente. Enfim, seja como for, eis a aventura, provando seu desenlace que hoje, 15 de agosto, incontestavelmente é um fato.

O Sr. de S... – nome histórico ainda hoje levado em consideração – era oficial durante o Diretório. Fosse por prazer, ou por necessidade de serviço, dirigia-se à Itália.

Em um de nossos departamentos centrais foi Surpreendido pela noite e sentiu-se feliz por encontrar abrigo numa espécie de barraca de aspecto suspeito, onde lhe ofereceram uma ceia de má qualidade e um catre no celeiro.

Habituado à vida de aventuras e ao rude ofício da guerra, o Sr. de S... comeu com apetite, deitou-se sem murmurar e dormiu profundamente.

Seu sono foi perturbado por terrível aparição. Viu um espectro levantar-se na sombra, marchar pesadamente em direção ao seu grabato e deter-se à altura da cabeceira. Era um homem de cerca de cinquenta anos, cujos cabelos, grisalhos e embaraçados, estavam vermelhos de sangue; apresentava o peito nu e a garganta, enrugada, estava cortada e as feridas abertas. Permaneceu em silêncio por alguns instantes, fixando os olhos negros e profundos sobre o viajante adormecido; depois, sua pálida figura se animou e suas pupilas brilharam como dois carvões ardentes. Parecendo esforçar-se com muita dificuldade, e com uma voz surda e estremecida pronunciou estas estranhas palavras:

 – Conheço-te; és soldado como eu e, também como eu, homem de coração, incapaz de faltar com a palavra. Venho pedir-te um serviço, que outros já me prometeram, mas não cumpriram. Estou morto há três semanas: o dono desta casa, auxiliado pela mulher, surpreendeu-me durante o sono e cortou-me a garganta. Meu cadáver está escondido sob um monte de esterco, à direita, no fundo do pátio secundário. Vai, amanhã, procurar a autoridade do lugar, trazendo contigo dois gendarmes e fazendo com que eu seja enterrado. O dono da casa e sua mulher se trairão e tu os entregarás à justiça. Adeus, conto com tua piedade; não esqueças a rogativa de um antigo companheiro de armas.

Despertando, o Sr. de S... recordou-se do sonho. Apoiou a cabeça no cotovelo e pôs-se a meditar; sua emoção era viva, dissipando-se diante das primeiras claridades do dia. Como Athalie, disse: Um sonho! Deverei me inquietar com um sonho? Ignorando o que se passava em seu coração, e escutando apenas a voz da razão, afivelou a mala e continuou a viagem.

No final do dia, chegando à sua nova etapa, parou para passar a noite num albergue. Mal, porém, havia fechado os olhos, o espectro apareceu-lhe uma segunda vez, triste e quase ameaçador.

– Surpreendo-me e me aflijo – disse o fantasma – de ver um homem como tu perjurar e faltar a seu dever. Esperava mais de tua lealdade. Meu corpo está sem sepultura, vivem em paz meus assassinos. Amigo, minha vingança encontra-se em tuas mãos; em nome da honra eu te intimo a que voltes atrás.

O Sr. de S ... passou o resto da noite em grande agitação; rompido o dia, envergonhou-se de seu pavor e continuou a viagem.

Ao cair da tarde, terceira parada e terceira aparição. Desta vez, o fantasma estava mais lívido e mais terrível; um sorriso amargo percorria seus brancos lábios. Falou com voz rude:

– Creio que te julguei mal; teu coração, como o dos outros, parece insensível às súplicas dos infortunados. Venho invocar o teu auxílio pela última vez e fazer um apelo à tua generosidade. Retorna a X..., vinga-me, ou sê para sempre maldito!

Dessa vez o Sr. de S... decidiu retomar o caminho de volta até o albergue suspeito, onde havia passado a primeira de suas lúgubres noites. Dirigiu-se à residência do magistrado e pediu dois gendarmes. À sua e à vista dos dois policiais, os assassinos empalideceram e confessaram o crime, como se força superior lhes houvesse arrancado essa confissão fatal.

O processo foi instruído rapidamente, tendo eles sido condenados à morte. Quanto ao pobre oficial, cujo cadáver foi encontrado sob um monte de esterco, à direita, no fundo do pátio secundário, foi sepultado em terra santa e os sacerdotes oraram pelo repouso de sua alma.

Havendo cumprido sua missão, o Sr. de S... apressou-se em deixar a região e correu para os Alpes, sem olhar para trás.

A primeira vez que repousou numa cama, o fantasma ergueu-se novamente ante seus olhos, não mais o fazendo com ferocidade e irritação, porém mais suave e benevolentemente, dizendo-lhe:

– Obrigado, obrigado, irmão. Quero agradecer o serviço que prestaste: mostrar-me-ei a ti uma vez ainda, uma só: duas horas antes da tua morte virei avisar-te. Adeus.

O Sr. de S... tinha, então, cerca de trinta anos; durante igual período nenhuma visão veio perturbar a quietude de sua vida. Mas no dia 14 de agosto de 182..., véspera da festa de Napoleão, o Sr. de S..., que permanecia fiel ao partido bonapartista, tinha reunido num grande jantar uma vintena de antigos soldados do Império. A festa fora muito alegre e o anfitrião, embora velho, estava bem conservado e com boa saúde. Encontravam-se no salão e tomavam café.

O Sr. de S... teve vontade de cheirar rapé e lembrou-se de que havia deixado a tabaqueira no quarto. Como tinha por hábito servir-se ele mesmo, deixou seus convivas por alguns instantes e subiu ao primeiro andar da casa, onde ficava o quarto. Não havia levado luz.

Quando penetrou no longo corredor que dava acesso ao quarto, deteve-se subitamente e se viu forçado a apoiar-se na parede: diante dele, na extremidade da galeria, deparou-se com o fantasma do homem assassinado que, não pronunciando qualquer palavra, nem fazendo gesto algum, desapareceu logo depois. Era o aviso prometido.

Por ter bom ânimo, após um instante de desfalecimento o Sr. de S... recobrou a coragem e o sangue-frio, marchou para o quarto, apanhou a tabaqueira e desceu para o salão. Ao penetrar ali, não deixava transparecer qualquer sinal de emoção, misturando-se à conversação durante uma hora e revelando todo o seu espírito e a mesma jovialidade habitual.

À meia-noite os convidados se retiraram. Sentou-se, então, passando três quartos de hora em recolhimento; depois, havendo posto ordem em seus negócios, embora não sentisse nenhum mal estar, ganhou seu quarto de dormir. Quando abriu a porta, um tiro o estendeu morto, exatamente duas horas após a aparição do fantasma.

A bala que lhe despedaçou o crânio destinava-se ao seu criado.

Henri d’Audigier

 

Fazendo questão de cumprir a promessa que havia feito ao jornal, de narrar alguma coisa que emocionasse os leitores, teria o autor deste artigo haurido a estória em sua fecunda imaginação, ou seria ela verdadeira? É o que não poderíamos garantir. Aliás, esse ponto não é o mais importante; real ou fictício, o essencial é saber se o fato é possível. Pois bem! Não hesitamos em dizer:

Sim, os avisos de além-túmulo são possíveis, e numerosos exemplos, cuja autenticidade não poderia ser posta em dúvida, aí estão para os atestar.

Se, pois, a anedota do Sr. Henry d’Audigier é apócrifa, muitas outras do mesmo gênero não o são; diremos, mesmo, que esta nada oferece de extraordinário. A aparição ocorreu em sonho, circunstância muito comum, quando é notório que podem produzir-se à vista, durante o estado de vigília. O aviso no instante da morte nada tem de insólito, mas os fatos desse gênero são muito mais raros porque a Providência, em sua sabedoria, nos oculta o momento fatal. Não é senão excepcionalmente que ele nos pode ser revelado e por motivos que nos são desconhecidos. Eis um outro exemplo mais recente, menos dramático, é verdade, mas cuja exatidão podemos garantir.

O Sr. Watbled, negociante e presidente do Tribunal de Comércio de Boulogne, faleceu no dia 12 de julho passado, nas seguintes circunstâncias: sua esposa, que havia perdido há doze anos, e cuja morte lhe causava constantes pesares, apareceu-lhe durante duas noites consecutivas nos primeiros dias de junho, dizendo-lhe:

Deus apiedou-se de nossos sofrimentos e deseja que em breve estejamos reunidos.

Acrescentou, ainda, que o 12 de julho seguinte era o dia marcado para essa reunião e que, em consequência, devia preparar-se para ela. Realmente, desde esse momento operou-se nele uma mudança notável: definhava-se dia a dia, logo tomando o leito e, sem qualquer esforço e sem sofrimento algum, no dia marcado exalou o derradeiro suspiro, nos braços de seus amigos.

Em si mesmo, o fato é incontestável. Os cépticos poderão apenas discutir a causa, que não deixarão de atribuir à imaginação. Sabe-se que semelhantes predições, feitas por ledores de buena-dicha, foram seguidas de um desenlace fatal. Nesses casos, concebe-se que a imaginação, superexcitada pela ideia, possa fazer com que os órgãos experimentem uma alteração radical: por mais de uma vez o medo de morrer provocou a morte. Aqui, entretanto, as circunstâncias não são as mesmas. Os que se aprofundaram nos fenômenos do Espiritismo podem perfeitamente dar-se conta do fato; quanto aos cépticos, só têm um argumento: Não creio; logo, isso não é possível.

Interrogados a respeito, os Espíritos responderam:

Deus escolheu esse homem, que era de todos conhecido, a fim de que o acontecimento se espalhasse e provocasse reflexão.

Os incrédulos incessantemente pedem provas; Deus lhes oferece a cada momento, através dos fenômenos que surgem por toda parte; a eles, porém, aplicam-se estas palavras:

Têm olhos, mas não veem; têm ouvidos, mas não escutam.



[1] Revista Espírita – setembro/1858 – Allan Kardec

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