terça-feira, 2 de janeiro de 2024

PROPAGAÇÃO DO ESPIRITISMO[1]

 


Allan Kardec

 

Passa-se um fenômeno notável com a propagação do Espiritismo. Ressuscitado das crenças antigas há apenas alguns anos, não fez sua aparição entre nós à sombra dos mistérios, como outrora, mas em plena luz e à vista de todo o mundo. Para uns foi objeto de curiosidade passageira, um divertimento que se descartava como um brinquedo, a fim de se tomar outro; para muitos não encontrou senão a indiferença; para o maior número a incredulidade, malgrado a opinião de filósofos cujos nomes a cada instante invocamos como autoridade. Isso nada tem de surpreendente: o próprio Jesus convenceu, por seus milagres, todo o povo judeu? Sua bondade, e a sublimidade de sua doutrina, fizeram com que conquistasse graça perante os juízes? Não foi tratado, ao contrário, de velhaco e impostor?

E, se lhe não aplicaram o epíteto de charlatão, foi porque, então, não se conhecia esse termo de nossa civilização moderna. Entretanto, os homens sérios perceberam, nos fenômenos que ocorrem em nossos dias, algo mais que um simples objeto de frivolidade; estudaram, aprofundaram-no com olhos de observador consciencioso, nele encontrando a chave de uma multidão de mistérios até então incompreendidos. Para eles isso foi um facho de luz, daí surgindo toda uma doutrina, toda uma filosofia e, podemos até mesmo dizer, toda uma ciência, inicialmente divergente, conforme o ponto de vista ou a opinião pessoal do observador, mas tendendo pouco a pouco à unidade de princípio. Apesar da oposição interesseira de alguns, sistemática entre os que imaginam que a luz não pode emanar senão de suas cabeças, encontra essa doutrina numerosos aderentes, porque esclarece o homem sobre seus verdadeiros interesses, presentes e futuros, respondendo à sua aspiração com vistas ao futuro, tornado, de alguma sorte, palpável. Enfim, porque satisfaz simultaneamente à razão e às suas esperanças, dissipando dúvidas que degeneravam em absoluta incredulidade. Ora, com o Espiritismo todas as filosofias materialistas ou panteístas caem por si mesmas; não é mais possível a dúvida no tocante à Divindade, à existência da alma, sua individualidade, sua imortalidade. Seu futuro se nos apresenta como a luz do dia, e sabemos que esse futuro, que sempre deixa uma porta aberta à esperança, depende da nossa vontade e dos esforços que fizermos na direção do bem.

Enquanto não viram no Espiritismo senão fenômenos materiais, só se interessaram por ele como espetáculo, porque se dirigia aos olhos; porém, desde o momento em que se elevou à categoria de ciência moral foi levado a sério, porque falava ao coração e à inteligência, e todos encontraram nele a solução do que procuravam vagamente em si mesmos; uma confiança fundada na evidência substituiu a incerteza pungente; do ponto de vista tão elevado em que nos coloca, as coisas terrenas parecem tão pequenas e tão mesquinhas que as vicissitudes deste mundo não são mais que incidentes passageiros, que se suporta com paciência e resignação; a vida corporal não passa de uma breve parada na vida da alma; para nos servirmos de uma expressão de nosso sábio e espirituoso confrade Sr. Jobard, não é mais que um albergue ordinário, onde não vale a pena desfazer as malas.

Com a Doutrina Espírita tudo está definido, tudo está claro, tudo fala à razão; numa palavra, tudo se explica, e os que se aprofundaram em sua essência encontram nela uma satisfação interior, à qual não mais desejam renunciar. Eis por que, em tão pouco tempo, encontrou tantas simpatias, de modo algum recrutadas no círculo limitado de uma localidade, mas no mundo inteiro. Se os fatos não estivessem aí para o provar, nós os julgaríamos pela nossa Revista, que tem apenas alguns meses de existência, e cujos assinantes, não se contando embora aos milhares, estão disseminados por todos os pontos do globo. Além dos de Paris e dos Departamentos, nós os possuímos na Inglaterra, Escócia, Holanda, Bélgica e Prússia; em São Petersburgo, Moscou, Nápoles, Florença, Milão, Gênova, Turim, Genebra, Madri e Shangai; na China e na Batávia; em Caiena; no México e no Canadá; nos Estados Unidos etc. Não o afirmamos como bravata, mas como um fato característico. Para que um jornal recém-fundado e tão especializado desde agora seja solicitado por países tão diversos e tão afastados, é preciso que o assunto nele tratado encontre partidários no mundo inteiro, pois, do contrário, não o fariam vir de tão longe por simples curiosidade, fosse ainda da lavra do melhor escritor. É, pois, o assunto que interessa e não o seu obscuro redator. Aos olhos dos leitores, portanto, o seu objetivo é sério. Torna-se, assim, evidente que o Espiritismo tem raízes em todas as partes do mundo e, sob esse ponto de vista, vinte assinantes, espalhados em vinte países diferentes, provariam mais do que cem, concentrados numa única localidade, porque não se poderia supô-lo senão como obra de uma confraria.

A maneira por que se vem propagando o Espiritismo até agora não merece uma atenção menos cuidadosa. Se a imprensa houvesse feito retumbar a voz em seu favor; se o pudesse enaltecer; se, em suma, o mundo lhe tivesse dado atenção, poder-se-ia dizer que se havia propagado como todas as coisas que dão margem a uma reputação factícia, da qual se deseja experimentar, mesmo que seja por curiosidade. Mas nada disso ocorreu: em geral, a imprensa não lhe prestou nenhum apoio voluntário; pelo contrário: quando não o desdenhou, em raros intervalos a ele se referiu somente para o levar ao ridículo e para despachar seus adeptos aos manicômios, coisa pouco estimulante para os que tivessem a veleidade de iniciar-se na doutrina. Apenas o próprio Sr. Home mereceu as honras de algumas referências algo mais sérias, ao passo que os acontecimentos mais vulgares nela encontram grande espaço. Aliás, pela linguagem dos adversários, vê-se facilmente que falam do Espiritismo como os cegos falariam das cores, isto é, sem conhecimento de causa, sem exame sério e aprofundado, e unicamente baseados numa primeira impressão; dessa forma, seus argumentos se limitam à negação pura e simples, já que não podemos promover à categoria de argumentos as expressões chistosas que empregam. Por mais espirituosos que sejam, os gracejos não representam razões. Entretanto, não se deve acusar de indiferença ou de má vontade todo o pessoal da imprensa.

Em termos individuais, nela o Espiritismo encontra partidários sinceros, e conhecemos diversos entre os mais destacados homens de letras. Por que, então, mantêm-se silenciosos? É que, ao lado da questão da crença, há também a da personalidade, muito poderosa neste século. Neles, como em muitos outros, a crença é concentrada, e não expansiva; além disso, obrigam-se a responder pelos erros de seus jornais, receando perder os assinantes caso levantem, com destemor, uma bandeira cuja coloração possa desagradar a alguns deles. Perdurará esse estado de coisas? Não; logo o Espiritismo será como o magnetismo, do qual só se falava outrora em voz baixa, e que hoje não se teme mais confessar. Por mais bela e justa que seja, nenhuma ideia nova se implanta instantaneamente no espírito das massas, e aquela que não encontrasse oposição seria um fenômeno absolutamente insólito. Por que faria o Espiritismo exceção à regra comum? Às ideias, como aos frutos, é preciso tempo para amadurecer; mas a leviandade humana faz com que sejam julgadas antes da maturidade, ou sem que tenhamos o trabalho de sondar-lhes as qualidades íntimas. Isso nos faz lembrar a espirituosa fábula de A Macaquinha, o Macaco e a Noz. Como se sabe, essa pequena macaca colhe uma noz com a casca ainda verde; morde-a, faz caretas, joga fora e se admira de gostarem de uma coisa tão amarga; mas um velho macaco, menos superficial e, com certeza, profundo pensador da sua espécie, apanha a noz do chão, quebra-lhe a casca, come-a e a considera deliciosa, decorrendo daí uma bela moral, dirigida aos que julgam as coisas novas tão-somente pelo seu aspecto exterior.

O Espiritismo teve, pois, de caminhar sem o concurso de qualquer apoio estranho; e eis que, em cinco ou seis anos, tem se vulgarizado com tamanha rapidez que toca as raias do prodígio. Onde terá adquirido essa força, senão em si mesmo? Em seu princípio é preciso, pois, tenha ele algo de muito poderoso, para ser assim propagado sem os meios superexcitantes da publicidade. É que, como havíamos dito acima, quem quer que se dê ao trabalho de aprofundá-lo, nele encontrará o que procurava, aquilo que sua razão lhe fazia entrever, uma verdade consoladora, haurindo, finalmente, a esperança de uma verdadeira satisfação. Dessa forma, as convicções adquiridas são sérias e duráveis; não se trata dessas opiniões levianas, que um sopro faz nascer e que outro as destrói. Ultimamente alguém nos dizia:

Encontro no Espiritismo uma esperança tão suave, nele haurindo tão gratas e doces consolações, que qualquer pensamento contrário tornar-me-ia bastante infeliz, sentindo que meu melhor amigo se tornaria odioso, caso tentasse demover-me dessa crença.

Quando uma ideia não tem raízes pode lançar um brilho passageiro, semelhante a essas flores que fazemos desenvolver à força, mas que em breve, por falta de sustento, morrem e delas não mais se fala. Ao contrário, as que têm uma base séria crescem e persistem, terminando por identificar-se de tal modo com os nossos hábitos que mais tarde nos admiramos de um dia havermos passado sem elas. Se o Espiritismo não foi secundado pela imprensa europeia, dirão que o mesmo não ocorreu na América. Até certo ponto isso é verdade. Na América, como aliás em todos os lugares, existe uma imprensa geral e uma imprensa especial. A primeira, por certo, ocupou-se muito mais do Espiritismo do que entre nós, embora menos do que se pensa; ela também tem os seus órgãos hostis.

Somente nos Estados Unidos, conta a imprensa especial com dezoito jornais espíritas, dos quais dez hebdomadários e vários de grande formato. A esse respeito, vê-se que estamos ainda bastante atrasados; mas lá, como aqui, os jornais especiais se destinam a pessoas especiais.

É evidente que uma gazeta médica, por exemplo, não deverá ser pesquisada pelos arquitetos nem pelos homens da lei; da mesma forma um jornal espírita, com poucas exceções, não será lido senão pelos partidários do Espiritismo. O grande número de jornais americanos que tratam dessa matéria prova a expressiva quantidade de leitores que têm a alimentar. Muito fizeram, sem dúvida, mas em geral sua influência é puramente local; são, na maioria, desconhecidos do público europeu, e os nossos jornais muito raramente transcrevem alguns artigos seus. Dizendo que o Espiritismo propagou-se sem o apoio da imprensa, queríamos nos referir à imprensa geral, que se dirige a todos, àquela cuja voz impressiona diariamente milhões de ouvidos, que penetra nos mais obscuros recantos; àquela que permite ao anacoreta, na solidão do deserto, estar tão perfeitamente a par do que se passa no mundo quanto os habitantes das cidades; enfim, da que semeia ideias a mancheias. Que jornal espírita pode vangloriar-se de fazer ressoar os ecos do mundo? Fala às pessoas que têm convicção; não atrai a atenção dos indiferentes. Falamos, pois, a verdade, quando dizemos que o Espiritismo foi entregue às próprias forças; se, por si mesmo, já deu tão grandes passos, que será quando dispuser da poderosa alavanca da grande publicidade! Enquanto aguarda esse momento, vai plantando balizas por toda parte; seus ramos acharão pontos de apoio em todos os lugares e, finalmente, em toda parte encontrará vozes cuja autoridade imporá silêncio aos detratores.

A qualidade dos adeptos do Espiritismo merece uma atenção particular. São recrutados nas camadas inferiores da sociedade, entre pessoas iletradas? Não; estes, pouco ou nada se preocupam; talvez apenas tenham ouvido falar do Espiritismo. As próprias mesas girantes neles encontraram poucos adeptos. Até o momento, os seus prosélitos pertencem às primeiras fileiras da sociedade, entre pessoas esclarecidas, homens de saber e de raciocínio; e, coisa notável, os médicos, que durante muito tempo promoveram uma guerra encarniçada ao magnetismo, aderem sem dificuldade a essa doutrina; entre nossos assinantes, contamos com um grande número deles, tanto na França quanto no estrangeiro, como os há também em grande maioria entre homens superiores sob todos os aspectos, notabilidades científicas e literárias, altos dignitários, funcionários públicos, oficiais generais, negociantes, eclesiásticos, magistrados, e outros, todos gente bastante séria para tomar como passatempo um jornal que, como o nosso, não prima por ser divertido e, principalmente, se acreditarem nele não encontrar senão fantasias. A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas não é uma prova menos evidente dessa verdade, pela escolha das pessoas que reúne; suas sessões são acompanhadas com interesse constante, uma atenção religiosa e, podemos dizer, até mesmo com avidez; entretanto, só se ocupa de estudos graves, sérios, frequentemente abstratos, e não de experiências destinadas a excitar a curiosidade.

Falamos do que se passa sob os nossos olhos, não podendo, sob esse ponto de vista, dizer o mesmo de todos os centros que se ocupam do Espiritismo, porquanto, quase por toda parte, como haviam anunciado os Espíritos, o período de curiosidade alcança o seu declínio. Esses fenômenos nos fazem penetrar numa ordem de coisas tão grande, tão sublime que, ao lado dessas graves questões, um móvel que gira ou que dá pancadas é um brinquedo de criança: é o á-bê-cê da Ciência.

Sabemos, aliás, a que nos atermos agora, no que concerne à qualidade dos Espíritos batedores e, em geral, dos que produzem efeitos materiais. Foram muito apropriadamente nomeados de saltimbancos do mundo espírita; eis por que nos ligamos menos a eles do que aos que nos podem esclarecer.

Podemos distinguir, na propagação do Espiritismo, quatro fases ou períodos distintos:

 

1.       O da curiosidade, no qual os Espíritos batedores hão desempenhado o papel principal para chamar a atenção e preparar os caminhos.

2.       O da observação, no qual entramos, e que podemos chamar também de período filosófico. O Espiritismo é aprofundado e se depura, tendendo à unidade de doutrina e constituindo-se em Ciência.

Virão em seguida:

3.       O período de admissão, no qual o Espiritismo ocupará uma posição oficial entre as crenças oficialmente reconhecidas.

4.       O período da influência sobre a ordem social. A Humanidade, então sob a influência dessas ideias, entrará num novo caminho moral. Desde hoje essa influência é individual; mais tarde agirá sobre as massas, para a felicidade geral.

 

Assim, de um lado, eis uma crença que, por si mesma, espalha-se pelo mundo inteiro, a pouco e pouco e sem os meios usuais de propaganda forçada; por outro lado, essa mesma crença finca raízes não nos estratos inferiores da sociedade, mas na sua parte mais esclarecida. Não haveria, nesse duplo fato, algo de muito característico e que devia fazer refletir todos quantos ainda consideram o Espiritismo um sonho vazio? Ao contrário de muitas outras ideias que vêm de baixo, informes ou desnaturadas, não penetrando senão com dificuldade nas camadas superiores, onde se depuram, o Espiritismo parte de cima e só chegará às massas desembaraçado das ideias falsas, inseparáveis das coisas novas.

É preciso convir, entretanto, que, entre muitos adeptos, existe somente uma crença latente. O temor do ridículo entre uns, e noutros o receio de melindrar certas susceptibilidades os impedem de proclamarem alto e bom som as suas opiniões; isso é sem dúvida pueril; entretanto, nós os compreendemos perfeitamente. Não se pode pedir a certos homens aquilo que a Natureza não lhes deu: a coragem de desafiar o “que dirão disso?” Porém, quando o Espiritismo estiver em todas as bocas – e esse tempo não está longe – tal coragem virá aos mais tímidos. Sob esse aspecto uma mudança notável já vem se operando desde algum tempo; fala-se dele mais abertamente; já se arriscam, e isso faz abrir os olhos dos próprios antagonistas, que se interrogam se é prudente, no interesse de sua própria reputação, combater uma crença que, por bem ou por mal, infiltra-se por toda parte e encontra apoio no ápice da sociedade. Assim, o epíteto de loucos, tão largamente prodigalizado aos adeptos, começa a tornar-se ridículo; é um lugar-comum que se torna trivial, pois em breve os loucos serão mais numerosos que as pessoas sensatas, havendo mais de um crítico que já se colocou do seu lado.

Finalmente, é o cumprimento do que anunciaram os Espíritos, ao dizerem:

Os maiores adversários do Espiritismo tornar-se-ão seus mais ardorosos partidários e propagandistas.



[1] Revista Espírita – setembro/1858 – Allan Kardec

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