Allan Kardec
Extraímos a seguinte passagem da
carta de um de nossos assinantes.
(...) Há alguns anos perdi uma esposa boa e virtuosa e,
malgrado me houvesse deixado seis filhos, sentia-me em completo isolamento,
quando ouvi falar das manifestações espíritas. Logo me encontrava no seio de um
pequeno grupo de bons amigos, que todas as noites se ocupavam desse assunto.
Nas comunicações obtidas, cedo aprendi que a verdadeira vida não está na Terra,
mas no mundo dos Espíritos; que minha Clémence lá era feliz e que, como os
outros, trabalhava pela felicidade dos que aqui havia conhecido. Ora, eis um
ponto sobre o qual desejo ardentemente ser por vós esclarecido.
Uma noite, dizia eu à minha Clémence:
-
Querida amiga, por que, apesar de todo o
nosso amor, acontecia que nem sempre nos púnhamos de acordo nas diferentes
circunstâncias de nossa vida comum, e por que muitas vezes éramos forçados a
nos fazer mútuas concessões para vivermos em boa harmonia?
Ela me respondeu isto:
-
Meu amigo, éramos pessoas honradas e
honestas; vivemos juntos, e poderíamos dizer, do melhor modo possível nesta
Terra de provas; mas não éramos nossas metades eternas. Tais uniões são
raras na Terra; podem ser encontradas, entretanto representam um grande favor
de Deus. Os que desfrutam dessa felicidade experimentam alegrias que te são
desconhecidas.
-
Podes dizer-me – repliquei – se vês tua
metade eterna?
-
Sim, diz ela, é um pobre coitado que vive na
Ásia; só poderá reunir-se a mim dentro de 175 anos, segundo a vossa maneira de
contar.
-
Reunir-vos-eis na Terra ou num outro mundo?
-
Na Terra. Mas escuta: não te posso descrever
bem a felicidade dos seres assim reunidos; rogarei a Heloísa e Abelardo que te
venham informar.
Então, senhor, esses dois seres felizes vieram
nos falar dessa indizível felicidade. “À nossa vontade”, disseram eles, “dois
não fazem mais que um; viajamos nos espaços; desfrutamos de tudo; amamo-nos com
um amor sem-fim, acima do qual só pode existir o amor de Deus e dos seres
perfeitos. Vossas maiores alegrias não valem um só de nossos olhares, um só de
nossos apertos de mão.
A ideia das metades eternas me alegra. Ao criar a
Humanidade, parece que Deus a fez dupla e, ao separar suas duas metades, teria
dito:
-
Ide por esse mundo e procurai encarnações. Se
fizerdes o bem, a viagem será curta e permitirei a vossa união; do contrário,
muitos séculos se passarão antes que possais desfrutar dessa felicidade.
Tal é, parece-me, a causa primeira do movimento
instintivo que leva a Humanidade a buscar a felicidade; felicidade que não
compreendemos e que não nos damos ao trabalho de compreender.
Desejo ardentemente, senhor, ser esclarecido sobre essa
teoria das metades eternas e ficaria feliz se encontrasse uma explicação sobre
o assunto em um dos vossos próximos números (...)
Abelardo e Heloísa, interrogados
sobre esse ponto, nos deram as seguintes respostas:
As almas foram criadas duplas?
- Se tivessem sido criadas duplas
as simples seriam imperfeitas.
É possível reunirem-se duas almas na eternidade e formarem
um todo?
- Não.
Tu e Heloísa formastes, desde a origem, dois seres bem
distintos?
- Sim.
Formai-vos ainda, neste momento, duas almas distintas?
- Sim; mas sempre unidas.
Todos os homens se encontram na mesma condição?
- Conforme sejam mais ou menos
perfeitos.
Todas as almas são destinadas a um dia se unirem a uma
outra alma?
- Cada Espírito tem a tendência de
procurar um outro Espírito que lhe seja afim; a isso chamas simpatia.
Nessa união há uma condição de sexo?
- As almas não têm sexo.
Tanto para satisfazer o desejo
de nosso assinante quanto para nossa própria instrução, dirigimos ao Espírito
São Luís as seguintes perguntas:
As almas que devem unir-se estão, desde suas origens,
predestinadas a essa união e cada um de nós tem, nalguma parte do Universo, sua
metade, a que fatalmente um dia se reunirá?
– Não; não há união particular e fatal, de duas almas.
A união que há é a de todos os Espíritos, mas em graus diversos, segundo a
categoria que ocupam, isto é, segundo a perfeição que tenham adquirido. Quanto
mais perfeitos, tanto mais unidos. Da discórdia nascem todos os males humanos;
da concórdia resulta a completa felicidade.
Em que sentido se deve entender a palavra metade, de
que alguns Espíritos se servem para designar os Espíritos simpáticos?
– A expressão é inexata. Se um Espírito fosse a metade
do outro, separados os dois, estariam ambos incompletos.
Se dois Espíritos perfeitamente simpáticos se reunirem,
estarão unidos para todo o sempre, ou poderão separar-se e se unirem a outros
Espíritos?
– Todos os Espíritos estão reciprocamente unidos. Falo
dos que atingiram a perfeição. Nas esferas inferiores, desde que um Espírito se
eleva, já não simpatiza, como dantes, com os que lhe ficaram abaixo.
4. Dois Espíritos simpáticos são complemento um do outro,
ou a simpatia entre eles existente é resultado de identidade perfeita?
– A simpatia que atrai um Espírito a outro resulta da
perfeita concordância de seus pendores e instintos. Se um tivesse que completar
o outro, perderia a sua individualidade.
A identidade necessária à existência da simpatia perfeita
apenas consiste na analogia dos pensamentos e sentimentos, ou também na
uniformidade dos conhecimentos adquiridos?
– Na igualdade dos graus de elevação.
Podem tornar-se simpáticos futuramente Espíritos que no
momento não o são?
– Todos o serão. Um Espírito, que hoje está numa esfera
inferior, ascenderá, aperfeiçoando-se, à em que se acha tal outro Espírito. E
ainda mais depressa se dará o encontro dos dois, se o mais elevado, suportando
mal as provas a que se submeteu, demorou-se no mesmo estado.
Podem deixar de ser simpáticos um ao outro, dois Espíritos
que já o sejam?
– Certamente, se um deles for preguiçoso.
Essas respostas resolvem
perfeitamente a questão. A teoria das metades eternas encerra uma simples
figura, representativa da união de dois Espíritos simpáticos. Trata-se de uma
expressão usada até na linguagem vulgar e que se não deve tomar ao pé da letra.
Não pertencem, decerto, a uma ordem elevada os Espíritos que a empregaram.
Sendo necessariamente limitado o campo de suas ideias, exprimiram seus
pensamentos com os termos de que se teriam utilizado na vida corporal. Não se
deve, pois, aceitar a ideia de que, criado um para o outro, dois Espíritos
tenham fatalmente de reunir-se um dia na eternidade, depois de estarem
separados por tempo mais ou menos longo[2].
[1] Revista Espírita – maio/1858 – Allan Kardec
[2] N. do T.: Esse
assunto não foi abordado na primeira edição de O Livro dos Espíritos,
dada a lume por Allan Kardec a 18 de abril de 1857, e que continha somente 501
perguntas, divididas em três partes. Aparece na segunda edição – definitiva –
de 1860. As sete questões acima correspondem às perguntas de números 298 a 303
a, do referido livro, acrescidas dos comentários com que o Codificador as
enriqueceu.
Vide Nota à questão 324,
inserta no final do livro O Consolador, do Espírito Emmanuel, editado pela FEB
e psicografado pelo médium Francisco Cândido Xavier, a respeito da teoria das
almas gêmeas
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