Allan Kardec
Vários jornais reproduziram o seguinte fato:
O vilarejo de Saint-Urbain, nos
confins do Loire e do Ardèche, está em polvorosa. Escrevem-nos que ali se
passam coisas estranhas. Uns as imputam ao diabo, outros aí veem o dedo de
Deus, marcando com o selo da predestinação uma de suas criaturas privilegiadas.
Eis em poucas palavras, diz o Memorial
de la Loire, de que se trata:
Há cerca de quinze dias nasceu nesta aldeia uma criança
que, desde a sua entrada no mundo, tem manifestado as mais admiráveis virtudes,
os sábios diriam as mais singulares propriedades. Apenas batizada, tornou-se
impalpável e intangível! Intangível, não como a sensitiva, mas à maneira de uma
garrafa de Leyde carregada de eletricidade, que não se pode tocar sem sentir
uma viva comoção. E, depois, é luminosa! De suas extremidades escapam, por
momentos, eflúvios brilhantes, que a fazem assemelhar-se a uma lucíola.
À medida que o bebê se desenvolve e se fortifica, esses
curiosos fenômenos se acentuam com mais energia e intensidade. Até se produzem
novos. Conta-se, por exemplo, que em certos dias, quando se aproxima das mãos e
dos pés da criança algum objeto de pequeno volume, como uma colher, uma faca,
uma xícara, mesmo um prato, esses utensílios são tomados de um frêmito e de uma
vibração sutis, que nada pode explicar.
É particularmente à tardinha e à noite que esses fatos
extraordinários se acentuam, tanto em estado de sono, quanto em vigília. Por
vezes, então – e aqui raia ao prodígio – o berço parece encher-se de uma
claridade esbranquiçada, semelhante a essas belas fosforescências que tomam as
águas do mar na esteira dos navios, e que a Ciência ainda não explicou
perfeitamente.
E, contudo, o menino não parece absolutamente incomodado
com as manifestações de que sua minúscula pessoa é misterioso teatro. Mama,
dorme, passa muito bem e nem é menos chorão nem mais impaciente que os seus
semelhantes. Tem dois irmãozinhos de quatro e cinco anos, que nasceram e vivem
à maneira dos mais vulgares pequerruchos.
Acrescente-se que os pais, simples agricultores, o
marido com quase quarenta anos e a mulher chegando aos trinta, são os esposos
menos elétricos e menos luminosos do mundo. Só brilham por sua honestidade e o
cuidado com que criam a pequena família.
Chamaram o cura da comuna vizinha, que declarou, após
longo exame, não compreender absolutamente nada disso; depois o cirurgião, que
apalpou, tornou a apalpar, virou, revirou, ascultou e percutiu o paciente, sem
querer pronunciar-se claramente, mas que prepara um douto relatório à Academia,
do qual se falará no mundo médico.
Um astucioso da região, e os há em toda parte,
farejando aí uma boa especulaçãozinha, propôs alugar a criança à razão de 200
fr. por mês, para mostrá-la nas feiras. É um belo negócio para os pais. Mas,
naturalmente o pai e a mãe querem acompanhar um filho tão precioso – a 2
francos por dia – e esta condição ainda impede a conclusão do negócio.
O correspondente que nos dá esses estranhos detalhes
nos certifica, sobre a sua honra, que são a mais exata verdade e que teve o
cuidado de mandar subscrever sua carta pelos quatro maiores proprietários da
região.
Certamente nenhum espírita verá
neste fato algo de sobrenatural nem miraculoso. É um fenômeno puramente físico,
uma variante, quanto à forma, do que apresentam as pessoas ditas elétricas.
Sabe-se que certos animais, como o peixe-elétrico e o gimnoto, têm propriedades
análogas.
Eis a instrução dada a respeito
por um dos guias instrutores da Sociedade de Paris:
Como temos dito frequentemente, os mais singulares
fenômenos se multiplicam dia a dia, para atrair a atenção da Ciência. O menino
em questão é, pois, um instrumento, mas não foi escolhido para esse efeito
senão em virtude da situação criada em seu passado. Por mais excêntrico que
seja, em aparência, um fenômeno qualquer, produzido num encarnado, tem sempre
como causa imediata a situação inteligente e moral desse encarnado e uma
relação com seus antecedentes, já que todas as existências são solidárias. Sem
dúvida é um assunto de estudo para os que o testemunham, mas secundariamente.
É, sobretudo, para aquele que dele é objeto, uma provação ou uma expiação. Há,
pois, o fato material, que é da alçada da Ciência, e a causa moral, que
pertence ao Espiritismo.
Mas, objetareis, como semelhante estado pode ser uma
provação para uma criança dessa idade? Para a criança, não, seguramente, mas
para o Espírito, que não tem idade, a provação é certa.
Achando-se, como encarnado, numa situação excepcional,
cercado de uma auréola física, que não passa de uma máscara, mas que deveria
passar aos olhos de certa gente por um sinal de santidade ou de predestinação,
desprendido durante o sono, o Espírito se orgulha da impressão que produz. Era
um taumaturgo de uma espécie particular, que passou sua última existência a
representar uma santa personagem, em meio aos prodígios que se tinha exercitado
a realizar, e que quis continuar seu papel nesta existência. Para atrair o
respeito e a veneração, quis nascer, como criança, em condições excepcionais. Se
viver, será um falso profeta do futuro, e não será o único.
Quanto ao fenômeno em si, é certo que terá pouca
duração. A Ciência deve, pois, apressar-se, se o quiser estudar de visu;
mas nada fará, temerosa de encontrar dificuldades embaraçosas. Contentar-se-á
em considerar o menino como um peixe-elétrico humano.
Dr. Morel
Lavallée
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