C. Tschokke
(Artigo enviado de
São Petersburgo)
Entre os livros de alta piedade,
cujos autores, penetrados das verdadeiras ideias cristãs, tratam todas as
questões religiosas e abstratas com um zelo esclarecido, isento de preconceitos
e de fanatismo, um dos que gozam na Alemanha de maior estima, merecida em todos
os aspectos, é, sem contradita, o que tem por título Horas de Piedade (Stunden
der Andacht), por C. Tschokke, distinto escritor suíço, autor de muitas obras
literárias, escritas em língua alemã e muito apreciadas na Alemanha. Este livro
teve, desde 1815, mais de quarenta edições. Os supostos ortodoxos, mesmo
protestantes, em geral acham que o livro é muito liberal em suas ideias, em
matéria de religião, e que o autor não se apoia suficientemente nos dogmas e
nas decisões dos Concílios; mas os crentes esclarecidos, os que procuram as
consolações da religião e desejam adquirir as luzes necessárias para
compreender as suas verdades, depois de o terem lido e meditado, farão plena
justiça às luzes e à tocante piedade do autor.
Damos aqui a tradução de duas
meditações contidas nesse livro notável, porque encerram ideias inteiramente
espíritas, expostas com perfeita exatidão, há mais de cinquenta anos. Numa e
noutra se acham uma definição muito exata e admiravelmente elaborada do corpo
espiritual ou perispírito, ideias muito sãs e muito lúcidas sobre a
ressurreição e a pluralidade das existências, através das quais já se entrevê a
grande luz da sublime doutrina da reencarnação, esta pedra angular do
Espiritismo moderno.
W.
Foelkner
141ª − MEDITAÇÃO
DO NASCIMENTO E DA MORTE
O nascimento e a morte são ambos cercados de trevas
impenetráveis. Ninguém sabe de onde veio, quando Deus o chamou; ninguém sabe
aonde irá, quando Deus o chamará. Quem poderia dizer-me se eu já não existi,
antes de tomar o meu corpo atual? O que é esse corpo, que pertence tão pouco ao
meu eu, que, durante uma existência de cinquenta anos, eu o teria mudado
várias vezes como uma roupa? Eu não tenho mais a mesma carne e o mesmo sangue
que tinha quando era amamentado, nos anos de minha juventude e na maturidade;
as partes de meu corpo, que me pertenceram durante a primeira idade, já estão,
desde muito tempo, dissolvidas e evaporadas. Só o Espírito permanece o mesmo
durante todas as variações que sofre o seu invólucro terreno. Por que
necessitaria eu, para a minha existência, do corpo que possuía quando era
pequenino? Se existi antes dele, onde estava eu? E quando me desembaraçar de
minha roupa atual, onde estarei? Ninguém me responde. Vim aqui como que por
milagre e é por milagre que desaparecerei. O nascimento e a morte lembram ao
homem esta verdade tantas vezes esquecida, a de que ele se encontra sob o poder
de Deus.
Mas essa verdade é, ao mesmo tempo, uma consolação. O
poder de Deus é o poder da sabedoria, o encanto do amor. Se o começo e o fim de
minha vida são envoltos em trevas, devo pensar que deve ser um benefício para
mim, como tudo o que vem de Deus é benefício e graça. Quando tudo ao meu redor
proclama sua sabedoria suprema e sua bondade infinita, posso crer que as trevas
que cercam o berço e o ataúde são as únicas exceções? É possível que eu já
tenha existido uma vez, mesmo várias vezes? Quem conhece os mistérios da
natureza dos Espíritos?[2]
Minha presença não seria talvez uma fraca imagem da existência eterna? Já não
vejo aqui a minha passagem da eternidade à eternidade, como num espelho opaco?
Eu ousaria embalar-me em estranhos pressentimentos? Esta
vida seria realmente uma imagem em miniatura da existência eterna? Que seria se
eu já tivesse tido várias existências, se cada uma delas fosse uma hora de
vigília da infância de meu Espírito e cada mudança de seu envoltório, de suas relações
ou o que se chama morte, uma letargia para um despertar com forças novas? É
verdade que me é impossível saber quantas vezes e como existi, antes que Deus
me tivesse chamado à existência atual; mas a criança de peito sabe mais do que
eu de suas primeiras horas? Então perdeu tanto que não possa lembrar-se de seu
primeiro sorriso e de suas primeiras lágrimas? Quando tiver mais idade não se
recordará mais, muito certamente, mas saberá o que foi nos seus primeiros anos;
saberá que sorriu, chorou, velou, dormiu, sonhou, absolutamente como os outros.
Se aqui é possível, por que seria impossível que um dia, depois de uma viagem
mais elevada de meu Espírito imortal, pudesse este lembrar-se e analisar a
carreira percorrida, as diversas circunstâncias em que se encontrou durante sua
viagem e os mundos em que habitou? Em que degrau de idade estou agora colocado?
Assemelho-me ainda à criança que, uma hora depois, já esqueceu os
acontecimentos da hora precedente e não está em condição de guardar a lembrança
de um sonho que, tendo-a transportado à vida exterior, a separou da vigília
precedente; mas me pareço com uma criança que, todavia, já sabe reconhecer os
seus pais. Esquece os prazeres e os desgostos do momento decorrido; mas, a cada
despertar, reconhece novamente suas feições queridas. Assim se dá comigo:
também reconheço meu Pai, meu Deus no Todo-Eterno. Eu o teria procurado com os
olhos, tê-lo-ia chamado, mesmo que ninguém me tivesse falado d’Ele; porque a
lembrança do Pai celeste é, ao que se diz, inata em cada homem. Todos os povos
guardam essa lembrança, mesmo os mais selvagens, cujas ilhas solitárias,
banhadas pelo oceano, jamais foram abordadas por viajantes civilizados. Dizem inata;
talvez se devesse dizer herdada, transportada de uma vida anterior,
exatamente como a criancinha, de um sonho anterior a outro posterior, se refere
à lembrança de sua mãe.
Mas eu caio nos sonhos! Quem está em condições de
aprová-los ou rejeitá-los? Eles se assemelham às primeiras lembranças, muito
vagas e muito fracas que uma criança tem de algo que lhe parece ter ocorrido em
seus momentos de passadas vigílias. Nossas mais audaciosas suposições, mesmo
quando as julgamos verdadeiras, não passam do reflexo fugidio e confuso de
nossos sentimentos que datam de um passado esquecido. Aliás, eu não me censuro
por isso. Mesmo supondo-as quiméricas, elas levantam o meu Espírito, porquanto,
encarando a nossa vida terrena como uma hora de uma criança de peito, que vasta
e incomensurável perspectiva da eternidade se desdobra à minha frente! Qual
será, então, a juventude mais avançada, a plena maturidade de meu Espírito
imortal, quando, ainda muitas vezes, eu tiver velado, dormido e subido um maior
número de degraus da escada espiritual?
O dia da morte terrena tornar-se-á, então, meu novo dia
de nascimento para uma vida mais elevada e mais perfeita, o começo de um sono
que será seguido de um agradável despertar. A graça divina me sorrirá com um
amor maior que a afeição com que uma mãe terrena sorri ao filhinho ao
despertar, no momento em que este abre os olhos.
143ª MEDITAÇÃO − DA TRANSFIGURAÇÃO APÓS A MORTE
Se tenho o direito de burguesia nos dois mundos, se
pertenço não só à vida terrena, mas também à vida espiritual, penso que seja
muito perdoável ocupar-me algumas vezes do que me espera nesta última, para a
qual um vago ardor me atrai incessantemente... Entretenho-me com muito boa
vontade, em lembrança, com os que me foram caros e que a morte nos arrebatou,
quanto com os que, neste mundo, me cumulam de alegria por sua presença, porque
os primeiros não deixaram de existir, embora privados de um corpo material. A
destruição do corpo não leva à destruição do Espírito. Continuo a vos querer, meus
amigos ausentes, meus caros defuntos! Posso temer não ser mais o objeto de
vossa afeição? Não, certamente; nenhum mortal tem o poder de separar Espíritos
unidos por Deus, como nenhum túmulo tem esse poder.
Embora a sorte que me aguarda num outro mundo me seja
oculta, penso que me seja permitido meditar algumas vezes sobre este assunto, e
procurar adivinhar, pelo que aqui vejo, o que lá me poderia acontecer. Se na
Terra nos é recusado ver, devemos procurar alimentar em nós a fé que tudo
vivifica. Jesus-Cristo falou muitas vezes, em alegorias elevadas, do estado da
alma depois da morte do corpo, e seus discípulos também gostavam de entreter-se
sobre este assunto com os seus confidentes, bem como com os que duvidavam da
possibilidade da ressurreição dos mortos.
A doutrina da ressurreição dos corpos era uma das mais antigas
da religião judaica. Os fariseus a ensinavam, mas de maneira grosseira e
material, pretendendo que todos os corpos sepultados nos túmulos deveriam
necessariamente tornar-se, um dia, o invólucro e o instrumento dos Espíritos
que os tinham animado durante a vida terrena, opinião que foi plenamente
refutada por outro partido religioso judaico, os saduceus. Exortado um dia a
pronunciar-se entre estas duas opiniões contrárias, o Cristo demonstrou que os
dois partidos religiosos judeus haviam chegado, à força de aberrações, a erros
completamente opostos; que a imortalidade da alma, isto é, a continuação de sua
existência no outro mundo, ou a ressurreição dos mortos, poderia se dar e se
daria infalivelmente, sem dever ser uma ressurreição grosseiramente material
dos corpos, providos de todas as exigências e de todos os sentidos terrestres
necessários à sua conservação e à sua reprodução. Os saduceus reconheceram a verdade
de suas palavras: “Mestre, respondestes muito bem!” disseram[3].
O que Jesus não discutia em público senão muito raramente,
em detalhe, tornava-se assunto de suas conversas íntimas com os discípulos.
Estes tinham as mesmas ideias que ele sobre o estado da alma após a morte e
sobre a doutrina judaica concernente à ressurreição. “Insensatos! – diz o
apóstolo Paulo – não vedes que o que semeais não nasce, se antes não
morrer? E quando semeais, não semeais o corpo da planta que deve nascer, mas o
simples grão, como de trigo ou de qualquer outra coisa. O corpo, como uma
semente, agora é posto em terra cheio de corrupção e ressuscitará
incorruptível. Semeia-se corpo animal, ressuscita-se corpo espiritual. Se há
corpo animal, há também corpo espiritual. A carne e o sangue não podem
possuir o reino de Deus e a corrupção não possuirá esta herança incorruptível[4]”.
O corpo humano, composto de elementos terrestres, voltará
à terra e entrará nos elementos que compõem os corpos das plantas, dos animais
e dos homens. Esse corpo é incapaz de uma vida eterna; sendo corruptível, não
pode herdar a incorruptibilidade. Um corpo espiritual nascerá da morte,
isto é, o eu espiritual se elevará como transfigurado acima das
partes do corpo feridas pela morte, numa liberdade maior e provido de um invólucro
espiritual.
Esta doutrina do Evangelho, tal como saiu das revelações
de Jesus e de seus discípulos, corresponde admiravelmente ao que agora já
sabemos da natureza do homem. É irrecusável que o Espírito ou alma, além de seu
corpo terrestre, é, na realidade, revestido de um corpo espiritual, o qual,
exatamente como a reprodução da flor de uma semente apodrecida, se liberta pela
morte do corpo material.
Muitas vezes se diz, por alegoria, que o sono é irmão da
morte; e o é na realidade. O sono não é senão a retirada do Espírito ou da
alma, o abandono provisório feito por ela das partes exteriores e mais
grosseiras do corpo. Dá-se o mesmo no momento da morte. Durante o sono,
nessas partes de nosso corpo, abandonadas por algum tempo por nossa
personalidade mais elevada, não reside senão a vida vegetativa. O homem fica
num estado de insensibilidade, mas seu sangue circula nas veias, sua respiração
continua; todas as funções da vida vegetativa estão em plena atividade,
assemelhando-se às da vida inconsciente das plantas. Essa retirada passageira
do elemento espiritual do homem parece necessária, de vez em quando, para o
elemento material, porque este último acaba por se destruir, a bem dizer, a si
mesmo, por um desgaste muito prolongado, e se enfraquece ao serviço do
Espírito. A vida vegetativa, abandonada a si mesma, e deixada em repouso pela
atividade do Espírito, pode então continuar a trabalhar sem entraves na sua
restauração, conforme as leis de sua natureza. Eis por que, depois de um sono
saudável, sentimos nosso corpo como repousado, com o que se alegra o nosso
Espírito; mas, depois da morte, a vida vegetativa também abandona os elementos
materiais do corpo, que lhe deviam sua ligação, e eles se desagregam.
O corpo abandonado pelo Espírito ou alma pode, em certos
casos, nos parecer com vida, mesmo quando a morte verdadeira já está consumada,
isto é, quando o elemento espiritual já o deixou. O cadáver abandonado
por seu Espírito continua a respirar, seu pulso a bater; diz-se: “Ele ainda
vive.” Por outro lado, por vezes pode acontecer que a força vital, tendo
positivamente abandonado algumas partes do corpo, estas estão verdadeiramente mortas,
enquanto o Espírito e o corpo ficam unidos nas outras partes do corpo onde
ainda reside a força vital.
O sono, um dos maiores segredos da existência humana,
merece as nossas observações mais constantes e mais atentas; mas a dificuldade
que apresentam essas observações tornam-se tanto maior quanto, para as fazer, o
Espírito observador é forçado a submeter-se às leis da natureza material e de a
deixar agir, para lhe dar a faculdade de se prestar mais facilmente ao seu uso
e às suas experiências. Todo sono é o alimento da força vital. O Espírito aí em
nada participa, porque o sono é também completamente independente do Espírito,
como a digestão, a transformação dos alimentos em sangue, o crescimento dos cabelos,
ou a separação do corpo dos líquidos inúteis. O estado de vigília é um consumo
da força vital, sua expansão fora do corpo e sua ação exterior; o sono é uma
assimilação, uma atração dessa mesma força de fora. Eis por que achamos o sono,
não só nos homens e nos animais, mas também nas plantas que, à aproximação da
noite, fecham as corolas de suas flores ou deixam pender suas folhas, depois de
as haver plissado.
Qual é, pois, o estado de nosso elemento espiritual, durante
a sua retirada de nossos sentidos exteriores? Ele não é mais apto a receber as
impressões de fora, pelo uso dos olhos, dos ouvidos, pelo paladar, pelo olfato
e pelo tato; mas, poder-se-ia dizer que durante esses momentos o nosso nós
se aniquilasse? Se assim fosse, nosso corpo receberia todas as manhãs um outro
Espírito, uma outra alma, em lugar daquela que estaria destruída.
Tendo-se o Espírito retirado de seus sentidos, continua a viver e agir, embora não
podendo manifestar-se senão imperfeitamente, tendo renunciado por algum tempo aos
instrumentos de que tem o hábito de se servir ordinariamente.
Os sonhos são outras tantas provas da continuação da atividade
do Espírito. O homem desperto lembra-se de ter sonhado, mas essas lembranças
geralmente se tornam vagas ou obscuras pelas vivas impressões que se precipitam
subitamente para o Espírito ao despertar, por intermédio dos sentidos. Se mesmo
nesse momento ignora de que visões se havia ocupado durante o sono, conserva,
não obstante, no momento de um despertar súbito, a consciência de que sua
atenção se destacou de alguma coisa que o tinha preocupado, até então dentro de
si mesmo.
O sono se compõe sempre de visões, de desejos e de sentimentos,
mas que se formam de maneira independente dos objetos exteriores, já que os
sentidos exteriores do homem ficam inativos; é por isso que raramente deixam
uma impressão viva e durável na memória. Então o Espírito devia estar ocupado,
embora não possamos, depois do sono, recordar dos resultados de sua atividade.
Mas qual o homem que está em condição de se recordar dos milhares dessas
rápidas visões que se apresentam ao seu Espírito, mesmo em estado de vigília,
em tal ou qual hora do dia? Tem, por isso, o direito de pretender que seu
Espírito não teve visões, justo no momento em que, antes de tudo, estava ativo
e refletindo?
Durante o sono, o Espírito conserva o sentimento de sua
existência, tão bem quanto em vigília. Mesmo durante o sono, sabe distinguir-se
perfeitamente dos objetos de suas visões. Cada vez que nos lembramos de um
sonho, achamos que era o nosso próprio eu que, com um sentimento muito
imperfeito de sua individualidade, flutuava entre as imagens de sua própria
fantasia. Podemos esquecer os acessórios dos sonhos que não produzem entre nós
senão uma fraca impressão, e durante os quais o nosso Espírito não reagiu
fortemente por seus desejos e sentimentos. Por conseguinte, poderíamos também
esquecer que então tínhamos o sentimento de nossa existência, mas isto não é
uma razão para supor que este último tenha sido suspenso um só instante, pelo
fato de dele não mais nos lembrarmos!
Há homens que, preocupados com graves reflexões, não
sabem, mesmo em estado de vigília, o que se passa em torno deles. Seu Espírito,
tendo-se retirado das partes exteriores do corpo e dos órgãos dos sentidos, concentra-se
e não se ocupa senão consigo mesmo e, exteriormente, parecem sonhar ou dormir
com os olhos abertos. Mas quem poderá negar que hajam guardado plenamente o
sentimento de sua existência, durante esses momentos de profunda meditação,
embora não vejam com os olhos e não escutem com os ouvidos? Uma outra prova da continuação
incessante do sentimento de nossa existência e de nossa identidade, é o
poder que possui o homem de despertar por si mesmo, numa hora por ele fixada
previamente.
Consequentemente, não se pode dizer que um homem mergulhado
num sono mais ou menos profundo tenha perdido a consciência de si mesmo,
quando, ao contrário, traz em si o sentimento de sua existência, mas sem poder
no-lo manifestar. É justamente o caso dos desfalecimentos, quando o elemento espiritual
do homem se retira em si mesmo, por efeito de uma perturbação passageira e
parcial de sua vida vegetativa, porque o Espírito foge a tudo o que é morto, e
não se prende senão à força vital, àquilo que, por si mesmo, não passa de
matéria inerte. O homem desmaiado não dá nenhum sinal exterior de vida, mas
desta não está privado, como não o está durante o sono. Muitas pessoas desmaiadas,
assim como os adormecidos, muitas vezes conservam a lembrança de algumas das visões
que tiveram durante este estado, que tanto se avizinha do da morte; outras não
as esquecem. Há desmaios durante os quis o corpo fica lívido, frio, privado de respiração
e de movimento e parece inteiramente um cadáver, enquanto o Espírito,
achando-se ainda em comunicação com alguns sentidos, compreende tudo o que se
passa à sua volta, sem poder, como nos casos de catalepsia, dar qualquer sinal
exterior de vida e de conhecimento. Quantas pessoas foram enterradas vivas desta
maneira, com plena consciência de tudo quanto ordenavam para o seu enterro, por
parentes ou amigos enganados por uma aparência fatal! [5]
Um outro estado deveras notável do homem nos dá a prova
da atividade ininterrupta do Espírito e do conhecimento de si mesmo, que jamais
se perde, mesmo quando, depois, não mais se recorda. É o estado de
sonambulismo. O homem adormece em seu sono ordinário. Não ouve, não vê e nada
sente; mas, subitamente, tem o ar de despertar, não de seu sono, mas em si
mesmo. Ouve, mas não com os ouvidos; vê, mas não com os olhos; sente, mas
não pela epiderme. Anda, fala, faz muitas coisas e exerce várias funções, para o
espanto geral dos assistentes, com a maior circunspeção e com mais perfeição do
que em vigília. Nesse estado lembra-se, muito distintamente, dos acontecimentos
passados quando em vigília, mesmo dos que esquece quando está acordado, ocasião
em que está de posse de todos os sentidos. Depois de haver ficado nesse estado durante
algum tempo, o sonâmbulo cai de novo no sono ordinário e quando é tirado deste,
não se recorda absolutamente de nada do que se passou. Esqueceu tudo quanto
disse e fez e muitas vezes se nega em acreditar o que dele contam os
espectadores. Poder-se-ia, entretanto, negar a seu Espírito o conhecimento de
si mesmo, assim como sua admirável atividade durante o sono sonambúlico? Quem o
ousaria? O sonâmbulo, caindo novamente no sono que constitui seu despertar
interior, lembra-se perfeitamente, nesse estado incompreensível para si
próprio, de tudo o que fez e pensou antes num estado semelhante, e do qual
havia perdido completamente a lembrança durante o estado de vigília de seus
sentidos exteriores.
Como explicar este fenômeno? Como é que um homem que
dorme não apenas pode ver e ouvir com os seus sentidos exteriores inativos, mas
isto mais positivamente, mais perfeitamente do que em vigília? Porque sabemos
que o corpo não é senão o vaso ou o envoltório exterior da alma; porque, sem
esta, nada pode experimentar, e porque o olho de um cadáver vê tanto quanto o
olho de uma estátua. É, pois, a alma e unicamente a alma que sente, vê e ouve o
que se passa fora dela. O olho, o ouvido etc., não passam de instrumentos e
dispositivos favoráveis do envoltório exterior, para proporcionar à alma as
impressões de fora. Mas há circunstâncias nas quais esse envoltório grosseiro,
achando-se partido ou estragado, a alma, por assim dizer, o atravessa e
continua sua ação, sem por isto necessitar de seus sentidos exteriores. Então ela
reage com um acréscimo de vigor, mas completamente diverso de quando em seu
estado ordinário ou de vigília, contra o que não está morto no homem.
É, pois, mesmo a alma que é o ser que sente, e não o corpo;
consequentemente, é ela quem forma o verdadeiro corpo do Espírito, e o corpo
material não é senão o seu arcabouço exterior, sua cobertura, seu
envoltório. A experiência e inumeráveis exemplos nos provam suficientemente
que o Espírito nunca perde a sua atividade e a consciência de seu eu,
mesmo quando não pode lembrar-se minuciosamente de cada momento particular de
sua existência. Sabendo que o Espírito, absorvido em profundas reflexões, perde
de vista seu próprio corpo e tudo o que o cerca; que, em certas doenças, pode
achar-se na absoluta impossibilidade de agir sobre as partes exteriores de seu
corpo e, algumas vezes, delas prescindir completamente (como no estado de sonambulismo),
para a execução de seus desígnios, devemos compreender claramente como o
Espírito imortal, tendo deixado o seu invólucro material e perecível, conserva,
depois de sua morte terrestre, a consciência e o sentimento de sua existência,
embora se achando fora do estado de poder manifestá-lo aos vivos, por meio do
cadáver, já que este não lhe pertence mais. Ao mesmo tempo, compreendemos o que
é o corpo espiritual, de que fala o apóstolo Paulo; o que devemos
entender por corpo imperecível, que deve renascer do corpo perecível[6];
como a fraqueza se abate e é semeada no túmulo, e como a força se eleva e se
lança para o céu, madura para uma vida melhor[7].
Eis a verdadeira ressurreição da morte, a ressurreição espiritual. O que em nós
é pó deve voltar ao pó e às cinzas; mas o Espírito, vestido num corpo transfigurado,
leva daí em diante a imagem do céu, exatamente como até agora tinha levado a
imagem da Terra[8].
O corpo terrestre, apodrecendo no túmulo, nada mais sente, mas também jamais
sentiu por si mesmo. Era, pois, o corpo espiritual, a alma, que percebia e
sentia tudo. Assim ela continuará a fazê-lo, livre de seu vaso partido, mas
apenas de uma maneira infinitamente mais delicada e mais pronta. Tendo o
Espírito consciência de si mesmo em seu envoltório espiritual, poderia
perfeitamente e infinitamente melhor ainda, admirar a glória de Deus em suas criações,
e ao mesmo tempo possuir as faculdades de ver e amar os que lhes são caros; mas
não mais experimentará necessidades materiais e sensuais, não terá mais
lágrimas. Tornar-se-á a imagem do céu, que é a sua verdadeira pátria.
Que sentirei no momento em que me chamares a ti, meu
Criador, meu Pai! No momento de minha transfiguração, quando, cercado de meus
bem-amados, chorando em volta de mim e vendo meus bem-amados que me
precederam aproximar-se de mim, eu os bendirei a todos com igual amor! E
quando, santificado por Jesus-Cristo, participando de seu reino, eu me apresentar
diante de ti, ó meu Deus! Adorando-te com o mais vivo reconhecimento, com a
mais profunda veneração, com a admiração sem limites! Que meu Espírito imortal
esteja então bastante maduro para gozar esta felicidade suprema! Amém.
[1][1] Revista Espírita – Outubro/1868 – Allan Kardec
[2] É preciso lembrar que estas linhas foram escritas cinquenta
anos antes das revelações dos Espíritos recolhidas pelo Espiritismo. (Nota
do tradutor para o francês)
[3] Lucas, 20:27-39.
[4] I Coríntios, 15:37 a 50.
[5] O célebre fisiologista alemão Dr. Buchner, publicou em
1859, no 349 do Disdascalia, jornal científico que aparecia em
Darmstadt, um artigo sobre o uso do clorofórmio, no fim do qual acrescenta
estas palavras muito notáveis na boca do autor de Força e Matéria: “A
descoberta do clorofórmio e de seus efeitos extraordinários é não só de grande
significação para a ciência médica, mas também para duas de nossas principais
ciências: a fisiologia e – não se espantem muito – a filosofia”.
O que leva o doutor materialista a dizer que, mesmo sob o aspecto psicológico,
o uso do clorofórmio tem algum peso, é que os pacientes, durante as operações
sofridas, achando-se num estado de semi-atordoamento, produzido pelo efeito do
clorofórmio, várias vezes declararam, depois de despertar, que durante a
operação não haviam sentido dor, nem sentimento de angústia ou de medo, mas que
sempre ouviam perfeitamente tudo o que se passava e se dizia em seu redor, sem,
contudo, estar em condição de fazer qualquer movimento, nem mexer um só de seus
membros.
Esse fato não vem provar positivamente a possibilidade da existência do
Espírito fora da matéria, que morre desde que o Espírito que a vivificava a
deixa definitivamente?
O magnetismo também não oferece provas, a bem dizer palpáveis, da
existência da alma independente da matéria? E como é tratado pelos sábios e
pelas academias? Em vez de lhe prestar toda a atenção e de se aplicar em
estudá-lo seriamente, limitam-se a negá-lo, o que certamente é mais cômodo, mas
não honra as nossas corporações científicas. (Nota do tradutor para o
francês)
[6] I Cor., 15:4.
[7] I Cor., 15:43.
[8] I Cor., 15:49.
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