terça-feira, 11 de outubro de 2022

UM SONHO[1]

 

Félix Auvray (1800-1833) - Le rêve d’Enée


Allan Kardec

 

Extrato do Figaro de 12 de abril de 1868:

 

Por mais extraordinário que pareça o relato seguinte, o autor, declarando tê-lo recebido do próprio vice-presidente do Corpo Legislativo (o barão Jérôme David), dá às suas palavras uma autoridade incontestável.

Durante sua estada em Saint-Cyr, David foi testemunha de um duelo entre dois de seus camaradas de promoção, Lambert e Poirée. Este último recebeu uma estocada e foi curar-se na enfermaria, onde seu amigo David subia para vê-lo todos os dias.

Uma manhã Poirée lhe pareceu singularmente perturbado; crivou-o de perguntas e acabou por lhe arrancar a confissão de que sua emoção provinha de um simples pesadelo.

– Eu sonhava que estávamos à beira de um rio, recebia uma bala na testa, acima do olho, e tu me sustentavas em teus braços; eu sofria muito e me sentia morrer; recomendava-te minha mulher e meus filhos, quando despertei.

– Meu caro, estás com febre, respondeu-lhe David sorrindo; refaze-te; estás no teu leito, não és casado e não tens bala acima do olho; é um sonho muito estúpido; não te atormentes assim, se queres curar-te depressa.

– É singular, murmurou Poirée, jamais acreditei em sonhos, neles não creio e, contudo estou abalado.

Dez anos depois, o exército francês desembarcava na Criméia; os saint-cyrianos se tinham perdido de vista. David, oficial ajudante, ligado à divisão do príncipe Napoleão, recebeu ordem de ir descobrir um vau[2] a montante do Alma[3]. Para impedir que os russos o fizessem prisioneiro, apoiaram esse reconhecimento por uma companhia de fuzileiros, tomada do regimento mais próximo. Os russos faziam cair uma chuva de balas sobre os homens da escolta, que se desdobraram no contra-ataque.

Não se tinham passado dez minutos quanto um dos nossos oficiais rolou por terra, mortalmente ferido. O capitão David saltou do cavalo e correu para o levantar; ele apoiou a cabeça em seu braço esquerdo e, desprendendo o cantil da cintura, aproximou-o dos lábios do ferido. Um grande buraco acima do olho ensanguentava-lhe o rosto; um soldado trouxe um pouco de água e o derrabou sobre a cabeça do moribundo, que já agonizava.

David olhou com atenção os traços, que parecia reconhecer; um nome foi pronunciado ao seu lado; nada de dúvida: era ele, era Poirée! Chama-o; seus olhos se abrem, o agonizante por sua vez reconhece o camarada de Saint-Cyr... “– David! Tu aqui?... O sonho... minha mulher...

Estas palavras entrecortadas não tinham acabado e já a cabeça caía inerte no braço de David. Poirée estava morto, deixando sua mulher e seus filhos à lembrança e à amizade de David.

Eu não ousaria contar semelhante história se eu mesmo não a tivesse ouvido do honrado vice-presidente do Corpo Legislativo.

“Vox populi.”

Com que propósito o narrador acrescenta as palavras vox populi? Poder-se-ia entendê-las assim: Os fatos desta natureza são de tal modo frequentes que são atestados pela voz do povo, isto é, por um assentimento geral.



[1] Revista Espírita – Maio/1868 – Allan Kardec

[2] Um vau é um lugar onde se pode atravessar um curso de água a pé, no lombo de um animal ou em um veículo no fundo, em pedras ou em uma jangada ou um passadiço submerso construído pelo homem, sem atolar ou ser varrido afastado pela corrente. É também o local que os animais selvagens ou domésticos utilizam para atravessar os cursos de água.

[3] Almaz  é um rio na Rússia, fluido através da região de Perm. A foz do rio está localizada a 28 km ao longo da margem esquerda do rio Ater. O cumprimento do rio e de 13 km.

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