Julgamento das Bruxas de Salem
Allan Kardec
O fato seguinte nos foi
assinalado por um dos nossos correspondentes. Por conveniência, calamos o nome
do lugar onde se passou, mas, se necessário, temos em mãos a peça justificativa.
O cura de..., tendo sabido que
uma de suas paroquianas havia recebido O Livro dos Espíritos, veio à sua
casa e lhe fez uma cena escandalosa, apostrofando-a com epítetos muito pouco
evangélicos; além disso, ameaçou-a de não a enterrar, quando morresse, se ela
não acreditasse no diabo e no inferno; depois, apoderando-se do livro, levou-o.
Alguns dias mais tarde aquela
senhora, que pouco se abalara com aquela altercação, foi à casa do padre lhe
reclamar o seu livro, dizendo a si mesma que se ele não o devolvesse, não lhe
seria difícil adquirir outro e que saberia pô-lo em lugar seguro.
O livro foi devolvido, mas num
estado que provava que uma santa cólera se havia descarregado sobre ele. Estava
manchado de rasuras, de anotações, de refutações, nas quais os Espíritos eram
tratados de mentirosos, de demônios, de estúpidos etc. A fé daquela senhora,
longe de ficar abalada, fortaleceu-se ainda mais.
Dizem que se apanham mais moscas
com mel do que com vinagre.
O padre lhe apresentou vinagre;
ela preferiu o mel, e disse: Perdoai-lhe, Senhor, porque ele não sabe o que
faz. De que lado estava o verdadeiro Cristianismo?
Cenas desta natureza eram muito frequentes
há sete ou oito anos, e por vezes tinham um caráter de violência que raiava o
burlesco. Recorde-se aquele missionário que escumava de raiva pregando contra o
Espiritismo, e se agitava com tanto furor que temiam que de uma hora para outra
caísse do púlpito. E aquele outro pregador que convidava todos os detentores de
obras espíritas para que lhes trouxessem, a fim de serem queimadas em praça
pública. Infelizmente para ele não lhe trouxeram uma só, contentando-se em
queimar no pátio do seminário todos os volumes que puderam comprar nas
livrarias. Hoje que se reconheceu sua inutilidade e inconveniência, essas
demonstrações excêntricas são muito raras; a experiência provou que elas
desviaram mais fiéis da Igreja do que do Espiritismo.
O fato relatado acima tem um
caráter de particular gravidade. Em sua igreja, o padre está em sua casa, no
seu terreno; dar ou recusar preces, conforme a sua consciência, está no seu
direito; usa-o, sem dúvida, de maneira mais prejudicial que útil à causa que
defende, mas, enfim, está no seu direito e achamos ilógico que pessoas que
estão, por pensamento, se não de fato, separadas da Igreja, que não cumprem
nenhum dos deveres que esta impõe, tenham a pretensão de constranger um padre a
fazer o que, com ou sem razão, ele considera como contrário à sua regra.
Se não credes na eficácia de
suas preces, porque lhes exigir? Mas, pela mesma razão, ele ultrapassa o seu
direito, quando se impõe aos que não o pedem.
No caso de que se trata, com que
direito aquele padre ia violentar a consciência daquela senhora em seu próprio
domicílio, ali fazer uma visita inquisitorial e apoderar-se do que não lhe
pertencia? Que ganha a religião com esse excesso de zelo? Os amigos inábeis são
sempre prejudiciais.
O fato em si é de pouca
importância e não é, em última análise, senão uma pequena pirraça, que prova a
estreiteza das ideias de seu autor; dele não teríamos falado se não se ligasse
a fatos mais graves, às perseguições propriamente ditas, cujas consequências
são mais sérias.
Estranha anomalia! Seja qual for
a posição de um homem, oficial ou subordinada a um título qualquer, não lhe
contestam o direito de ser protestante, judeu ou mesmo absolutamente nada; pode
ser abertamente incrédulo, materialista ou ateu; pode preconizar tal ou qual
filosofia, mas não tem o direito de ser espírita. Se for suspeito de
Espiritismo, como outrora se era suspeito de jansenismo, é suspeito; se a coisa
é confessada, é olhado de soslaio por seus superiores, quando estes não pensam
como ele, considerado como perturbador da sociedade, ele que abjura toda ideia
de ódio e de vingança, que tem como regra de conduta a caridade cristã na sua
mais rigorosa acepção, a benevolência para com todos, a tolerância, o
esquecimento e o perdão das injúrias, numa palavra, todas as máximas que são a
garantia da ordem social, e o maior freio das más paixões. Pois bem! O que, em
todos os tempos e em todos os povos civilizados, é um título à estima das pessoas
honestas, torna-se um sinal de reprovação aos olhos de certa gente, que não
perdoa a um homem ter-se tornado melhor pelo Espiritismo! Sejam quais
forem as suas qualidades, os seus talentos, os serviços prestados, se não for
independente, se sua posição não for invulnerável, uma mão, instrumento de uma
vontade oculta, o oprime e fere, se puder, nos seus meios de subsistência, em
suas afeições mais caras, e até em sua consideração.
Que semelhantes coisas se passem
em regiões onde a fé exclusiva erige a intolerância em princípio, como a sua
melhor salvaguarda, nada tem de surpreendente; mas que ocorram em países onde a
liberdade de consciência está inscrita no código das leis como um direito natural,
é mais difícil de compreender. É preciso, então, que se tenha muito medo desse
Espiritismo, embora o apresentem como uma ideia oca, uma quimera, uma utopia,
uma bagatela que um sopro da razão pode abater! Se esta luz fantástica ainda
não está extinta, não é, entretanto, por não a terem soprado.
Soprai, pois, soprai sempre: há
chamas que são atiçadas soprando, em vez de serem apagadas.
Alguns, contudo, perguntarão: o
que se pode censurar àquele que não quer e não pratica senão o bem? Que cumpre
os deveres de seu cargo com zelo, probidade, lealdade e devotamento? Que ensina
a amar a Deus e ao próximo? Que prega a concórdia e convida todos os homens a
se tratarem como irmãos, sem acepção de cultos nem de nacionalidades? Não
trabalha ele para o apaziguamento das dissensões e dos antagonismos que
causaram tantos desastres? Não é o verdadeiro apóstolo da paz? Unindo por seus
princípios o maior número possível de aderentes, por sua lógica, pela
autoridade de sua posição e, sobretudo, por seu exemplo, não evitará conflitos
lamentáveis? Se, em lugar de um, forem dez, cem, mil, sua influência salutar
não será tanto maior?
Tais homens são auxiliares
preciosos; nunca são bastantes; não se deveria encorajá-los, honrá-los? A
doutrina que faz penetrar esses princípios no coração do homem pela convicção
apoiada numa fé sincera, não é um penhor de segurança? Aliás, onde se viu que
os espíritas fossem provocadores de perturbações? Ao contrário, não são eles
sempre e por toda parte assinalados como gente pacífica e amiga da ordem? Todas
as vezes que foram provocados por atos de malevolência, em vez de usar
represálias não evitaram com cuidado tudo quanto pudesse ter sido uma causa de
desordem? Alguma vez a autoridade já os castigou por algum ato contrário à tranquilidade
pública? Não, porque um funcionário, encarregado da manutenção da ordem, há
pouco dizia que se todos os seus administrados fossem espíritas, ele poderia
fechar a sua repartição. Haverá homenagem mais característica, prestada aos
sentimentos que os animam? E a que palavra de ordem obedecem? Unicamente à de
sua consciência, pois não denotam nenhuma personalidade patente ou oculta na
sombra. Sua doutrina é sua lei, e essa lei lhes prescreve fazer o bem e evitar
o mal; por seu poder moralizador ela conduziu à moderação homens exaltados,
nada temendo, nem Deus, nem a justiça humana, e capazes de tudo. Se ela fosse
popular, com que peso não se apresentaria nos momentos de efervescência e nos centros
turbulentos? Em que, então, pode esta doutrina ser um motivo de reprovação?
Como pode chamar a perseguição sobre aqueles que a professam e a propagam?
Admirai-vos de que uma doutrina
que não produz senão o bem tenha adversários! Mas, então, não conheceis a cegueira
do espírito de partido? Alguma vez ele já considerou o bem que pode fazer uma
coisa, quando contrária às suas opiniões e aos seus interesses materiais? Não
esqueçais que certos oponentes o são por sistema, muito mais que por
ignorância. Seria em vão que esperaríeis atraí-los a vós pela lógica de
vossos raciocínios e pela perspectiva dos efeitos salutares da Doutrina; eles
sabem isto tão bem quanto vós, e é precisamente porque o sabem que não o querem;
quanto mais rigorosa e irresistível é essa lógica, mais ela os exaspera, porque
lhes fecha a boca. Quanto mais lhes demonstram o bem que produz o Espiritismo,
mais se irritam, porque sentem que aí está a sua força; por isso, ainda que ele
devesse salvar o país dos maiores desastres, mesmo assim o repeliriam.
Triunfais de um incrédulo, de um ateu de boa-fé, de uma alma viciosa e
corrompida, mas nunca de gente de ideias preconcebidas!
Que esperam, pois, da
perseguição? Deter o impulso das ideias novas pela intimidação? Vejamos, em
algumas palavras, se tal objetivo pode ser atingido.
Todas as grandes ideias, todas
as ideias renovadoras, assim na ordem científica como na ordem moral, receberam
o batismo da perseguição, e isto era inevitável, porque elas ferem os interesses
dos que viviam velhas ideias, preconceitos e abusos. Mas, desde que essas ideias
constituem verdades, já se viu alguma vez a perseguição deter o seu curso? Não
está aí a história de todos os tempos para provar que, ao contrário, elas
cresceram, consolidaram-se, propagadas pelo efeito mesmo da perseguição? A perseguição
foi o estimulante, o aguilhão que as impeliu para frente e fez avançar mais
depressa, superexcitando os espíritos, de sorte que os perseguidores
trabalharam contra si mesmos e não ganharam senão ser estigmatizados pela
posteridade. Só se perseguiram as ideias nas quais se via o futuro; as que
julgaram sem consequência deixaram que morressem de morte natural.
O Espiritismo, ele também, é uma
grande ideia; devia, pois, receber seu batismo como seus precursores, porque o
espírito dos homens não mudou, e lhe acontecerá o que aconteceu aos outros: um
acréscimo de importância aos olhos da multidão e, por conseguinte, maior
popularidade. Quanto mais em evidência estiverem as vítimas por sua posição,
maior repercussão haverá em razão da extensão de suas relações.
A curiosidade é tanto mais
superexcitada quanto mais a pessoa é cercada de mais estima e consideração;
cada um quer saber o porquê e o como; conhecer o fundo dessas opiniões, que despertam
tanta cólera; interrogam, leem, e eis como uma porção de gente, que talvez
jamais se teria ocupado de Espiritismo, é levada a conhecê-lo, a julgá-lo, a
apreciá-lo e a adotá-lo. Tal foi, como se sabe, o resultado das declamações
furibundas, das interdições pastorais, das diatribes de toda sorte. Tal será o
das perseguições.
Estas fazem mais: elevam o
Espiritismo ao nível das crenças sérias, porque diz o bom-senso que não se
combatem quimeras.
A perseguição contra as ideias
falsas, errôneas, é inútil, porque estas se desacreditam e caem por si mesmas.
Tem como efeito criar partidários e defensores, e retardar a sua queda, porque muitos
as consideram como boas, precisamente porque são perseguidas. Quando a
perseguição se ataca a ideias verdadeiras, vai diretamente contra o seu
objetivo, porque lhe favorece o desenvolvimento; é, pois, em todos os casos,
uma inabilidade que se volta contra os que a cometem.
Um escritor moderno lamentava
que não tivessem queimado Lutero, a fim de destruir o protestantismo em sua
raiz; mas como não poderiam tê-lo queimado senão após a emissão de suas ideias,
se o tivessem feito o protestantismo talvez estivesse duas vezes mais espalhado
do que está. Queimaram João Huss; que ganhou com isso o concílio de Constança? Cobrir-se
com uma nódoa indelével. Mas as ideias do mártir não foram queimadas com ele: foram
um dos fundamentos da Reforma. A posteridade conferiu a glória a João Huss e a
vergonha ao concílio. (Revista Espírita, agosto de 1866).
Hoje já não queimam, mas perseguem de outras maneiras.
Sem dúvida, quando desaba uma
tempestade, muitos se põem ao abrigo. As perseguições podem, pois, impedir momentaneamente
a livre manifestação do pensamento; os perseguidores, crendo tê-la abafado,
adormecem numa segurança enganadora; mas o seu pensamento não subiste menos, e
as ideias reprimidas são como as plantas em estufa: crescem mais depressa.
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