Marco Milani
Ao longo de seu discurso à comunidade de
espíritas das cidades francesas de Lyon e Bordeaux, em 1862, Kardec[2]
categorizou os adeptos em três grandes grupos:
I.
Os que creem pura e simplesmente nos
fenômenos das manifestações, mas que deles não deduzem qualquer consequência
moral;
II.
Os que percebem o alcance moral, mas o
aplicam aos outros e não a si mesmos;
III.
Os que aceitam pessoalmente todas as
consequências da doutrina e que praticam ou se esforçam por praticar sua moral.
O verdadeiro espírita, portanto,
aplica em si mesmo o que muitos apenas manifestam em discursos normativos
carregados de lições enobrecedoras, mas vazios de ações.
Entre cada uma dessas categorias
poderiam ser apontadas múltiplas subcategorias, proporcionais à maturidade
moral e intelectual dos indivíduos. Uma delas seria formada por aqueles que
apresentam-se como adeptos, porém adequam os ensinos aos próprios interesses e
não raramente procuram legitimar suas opiniões particulares sobre diversos
assuntos polêmicos alegando essas estarem embasadas no Espiritismo. Tal é o
espírita por conveniência, que customiza a fé conforme seus interesses e
ambições.
A fé customizada é adotada em
detrimento da coerência doutrinária por novos sofistas que distorcem a
realidade para moldar a aparência da verdade. Tal distorção decorre, muitas
vezes, das paixões que o suposto adepto carrega e direcionam sua cosmovisão e
consequente argumentação. Ao invés de servir-se das premissas doutrinárias para
se autoconhecer, aprimorar-se e repensar suas crenças anteriores com natural
mudança de atitudes, ele faz o inverso, partindo de arraigadas convicções
ideológicas para encaixar o Espiritismo nessas propostas. O que não couber ou
for divergente, simplesmente ignora-se ou reinterpreta-se.
Assim ocorre com as paixões políticas. Em um
mundo de expiações e provas, não faltam antigas propostas revolucionárias
sociais que prometem a concretização do reino de justiça na Terra desde que
seguida determinada cartilha já idealizada por intérpretes da história e
planejadores do comportamento coletivo. Quase a totalidade dessas receitas
utópicas de felicidade desconhecem o processo interexistencial de
desenvolvimento e pregam a imposição de relações econômicas artificiais e
coletivistas como aquelas que transformariam moralmente o indivíduo, mas que
acabam por sufocá-lo. Para esses, o Espírito Erasto[3]
assim se manifesta:
Acabo de pronunciar a palavra igualitária. Julgo útil
deter-me um pouco nela, porque absolutamente não vimos pregar, em vosso meio, utopias
impraticáveis, e também porque, ao contrário, repelimos com energia tudo quanto
pareça ligar-se às prescrições de um comunismo antissocial; antes de tudo,
somos essencialmente propagandistas da liberdade individual, indispensável ao
desenvolvimento dos encarnados; por conseguinte, inimigos declarados de tudo
quanto se aproxime dessas legislações conventuais, que aniquilam brutalmente os
indivíduos.
Fruto de ilusões utópicas, muitos espíritas
por conveniência selecionam e reinterpretam conceitos doutrinários para
legitimar o modelo político que carregam de sistemas de relações
socioeconômicas que dependem da perfeição moral de todos.
As questões transitórias sociais
recorrentemente estavam presentes nos diálogos de Allan Kardec com os Espíritos
e o respectivo ensino doutrinário contém os elementos fundamentais para a
construção de uma sociedade terrena mais justa e fraterna, lastreada no
conhecimento da realidade espiritual e da finalidade da reencarnação.
A contribuição primordial do
Espiritismo no progresso social evidencia-se na condição de um poderoso agente
de transformação moral da humanidade, sem qualquer enquadramento em concepções
político-ideológicas já concebidas.
Como filosofia
interexistencialista, o Espiritismo não se limita às relações do mundo
material, pois expande a compreensão da realidade e desloca a finalidade última
do ser para a conquista do verdadeiro Reino de Deus em si mesmo. As misérias
humanas são reflexos do nível moral dos indivíduos, confrontando-os com as
chagas do orgulho e do egoísmo, incentivando-os a exercitar a inteligência e
praticar a caridade em seu verdadeiro sentido, em harmonia com as leis divinas.
O Espiritismo, ao demonstrar a
responsabilidade de cada sobre suas ações e respectivas consequências durante o
processo reencarnatório em plena conformidade com as leis naturais, afasta-se
da míope perspectiva materialista histórica que concebe o homem como produto de
seu meio e ignora sua bagagem reencarnatória, suas tendências e necessidades
evolutivas para a realização espiritual. A expressão “a cada um segundo suas
obras” resume a essência meritocrática do esforço individual na jornada
interior em busca da verdadeira felicidade, segundo o Espiritismo.
A confiança e a crença racional
na justiça divina e no futuro pautado pelos benefícios consequentes da prática
da caridade, aqui entendida como a ação benevolente, indulgente e voltada ao
perdão das ofensas, deveriam nortear a conduta equilibrada do adepto,
promovendo conforto e coragem para superar os desafios materiais. A conduta do
espírita espelha o seu próprio progresso moral nas obras realizadas e faz-se
reconhecido como coerente aos princípios de paz e solidariedade que professa.
A fé raciocinada, sob esse
ângulo, analisa criticamente e admite a consistência do conjunto de ensinos
apresentados por Allan Kardec, convidando o adepto da filosofia espírita a agir
conforme os princípios doutrinários, reduzindo e atenuando hábitos e posturas
orgulhosas e egoístas. Certamente, em um mundo de expiações e provas, não se deve
exigir a súbita perfeição e o progresso moral é paulatino e proporcional aos
esforços e maturidade de cada um.
A transformação social, para
Kardec, não ocorrerá de maneira impositiva e totalitária ao indivíduo, mas de
maneira oposta, decorrente da melhoria do indivíduo, respeitando-se a liberdade
de consciência de cada um. Conforme se afirma na edição de fevereiro de 1862 da
Revista Espírita[4],
o essencial é buscar no Espiritismo aquilo que nos pode melhorar e, quando os
homens forem melhores, as reformas sociais realmente úteis serão uma
consequência natural.
Ao crer somente naquilo que está
em concordância com suas paixões político-ideológicas e rejeitar tudo o que na
doutrina espírita as contrarie, o adepto por conveniência exemplifica a postura
egoísta e orgulhosa que leva à insensatez doutrinária. A militância política,
com o intuito de ocupar espaços e disseminar suas propostas para convencer o
maior número de pessoas, desrespeita a liberdade de pensamento e livre-arbítrio
do próximo nas instituições espíritas e provoca cismas.
Allan Kardec, dirigindo-se aos
espíritas lioneses em 1862, já alertava sobre a armadilha preparada por
adversários do Espiritismo que objetivavam levar aos grupos espíritas a
discussão política[5].
Devo ainda assinalar-vos outra
tática dos nossos adversários, a de procurar comprometer os espíritas,
induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que é o da
moral, para abordarem questões que não são de sua alçada e que, a justo título,
poderiam despertar suscetibilidades e desconfianças. Não vos deixeis cair nessa
armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quando se refere à
política e a questões irritantes; a tal respeito, as discussões apenas
suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quanto esta
for boa.
Atuando como promotores de
cizânia em nome de paixões políticas variadas, os supostos adeptos que
customizam a fé lançam-se com entusiasmo ao proselitismo de suas convicções
pessoais camuflando-as de assuntos doutrinários, fomentando as discussões
contra ou a favor de governantes, defendendo ou atacando condutas alheias, ou
ainda, tentando fazer crer que só quem compartilha de suas paixões
político-ideológicas poderia ser considerado um espírita legítimo.
Que nesses tempos agitados pela
polarização política, consigamos entender o alerta de Kardec sobre os cuidados
no trato das paixões e o respeito à liberdade de pensamento, exemplificarmos em
nós mesmos o comportamento que gostaríamos que outros tivessem.
[2] Livro Viagem Espírita em 1862. Discursos
pronunciados nas reuniões gerais dos espíritas de Lyon e Bordeaux. Discurso I
[3] Trecho extraído da epístola de Erasto aos espíritas
lioneses - 1861. Um alerta contra as utopias materialistas. Revista Espírita,
out/1861.
[4] Trecho extraído do texto Resposta dirigida aos
espíritas lioneses por ocasião do Ano-Novo, Revista Espírita, Revista
Espírita, fev/1862.
[5] Ibidem.
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