Camille Flammarion
Deixamos Lúmen em Capela,
ocupado em considerar a Terra, que acabava de deixar. Estando este mundo
situado a 170 trilhões e 392 bilhões de léguas da Terra, e percorrendo a luz
70.000 léguas por segundo, esta não pode chegar de um a outro senão em 71 anos,
8 meses e 24 dias, ou seja, cerca de 72 anos.
Disso resulta que o raio
luminoso que leva a imagem da Terra só chega aos habitantes de Capela ao cabo
de 72 anos. Tendo Lúmen morrido em 1864, e lançando o olhar sobre Paris, a viu
tal qual era 72 anos antes, isto é, em 1793, ano de seu nascimento.
De início ficou muito surpreso
por encontrar tudo diferente do que tinha visto, de ver ruelas, conventos,
jardins, campos, em lugar de avenidas, novos bulevares, estações ferroviárias
etc. Viu a Praça da Concórdia ocupada por uma imensa multidão e foi testemunha
ocular do advento de 21 de janeiro[2].
A teoria da luz lhe deu a chave deste estranho fenômeno.
Eis a solução de algumas
dificuldades que ele levanta[3].
Sitiens – Mas,
então, se o passado pode confundir-se com o presente; se a realidade e a visão
se casam do mesmo modo; se pessoas mortas há muito tempo ainda podem ser vistas
representando na cena; se as construções novas e as metamorfoses de uma cidade
como Paris podem desaparecer e deixar ver em seu lugar a cidade de outrora; enfim,
se o presente pode apagar-se para a ressurreição do passado, sobre que certeza,
de agora em diante, podemos confiar? Em que se tornam a Ciência e a observação?
Em que se tornam as deduções e as teorias? Em que se fundam os nossos
conhecimentos, que nos parecem os mais sólidos? E se essas coisas são
verdadeiras, não devemos, doravante, duvidar de tudo ou crer em tudo?
Lúmen – Estas considerações e muitas outras, meu
amigo, me absorveram e atormentaram, mas não impediram de ser a realidade que
eu observava. Quando tive a certeza de que tínhamos presente sob os olhos o ano
de 1793, pensei imediatamente que a própria Ciência, em vez de combater esta
realidade – porque duas verdades não podem opor-se entre si – devia me dar a
sua explicação. Então interroguei a física e esperei sua resposta. (Segue a
demonstração científica do fenômeno).
Sitiens –
Assim, o raio luminoso é como um correio, que nos traz notícias do estado do
país que o envia, e que, se levar 72 anos para nos chegar, dá-nos o estado
desse país no momento de sua partida, isto é, cerca de 72 anos antes do momento
em que nos chega.
Lúmen – Adivinhastes o mistério. Para falar mais
exatamente ainda, o raio luminoso seria um correio que nos trouxesse, não
notícias escritas, mas a fotografia, ou mais rigorosamente ainda, o próprio
aspecto do país de onde saiu. Quando, pois, examinamos ao telescópio a
superfície de um astro, ainda não vemos esta superfície tal qual é no momento
mesmo em que a observamos, mas tal qual era no momento em que a luz que nos chega
foi emitida por essa superfície.
Sitiens – De
sorte que se uma estrela cuja luz leva, suponhamos, dez anos para chegar até
nós, fosse subitamente aniquilada hoje, nós a veríamos ainda durante dez anos,
pois seu último raio só nos chegaria em dez anos.
Lúmen – É exatamente isto. Há, pois, aí, uma
surpreendente transformação do passado em presente. Para o astro observado é o
passado, já desaparecido; para o observador é o presente, o atual. O passado do
astro é rigorosa e positivamente o presente do observador.
Mais tarde Lúmen vê a si mesmo,
menino, com seis anos, brincando e discutindo com um grupo de outros meninos na
Praça do Panthéon.
Sitiens –
Confesso que me parece impossível que se possa ver assim a si mesmo. Não podeis
ser duas pessoas. Já que tínheis 72 anos quando morrestes, vosso estado de
infância tinha passado, desaparecido há muito tempo. Não podeis ver uma coisa
que não mais existe. Não se pode ver em duplicata, menino e velho.
Lúmen – Não refletis bastante, meu amigo.
Compreendestes muito bem o fato geral para admiti-lo; mas não observastes
suficientemente que este último fato particular entra absolutamente no
primeiro. Admitis que o aspecto da Terra leva 72 anos para vir a mim, não é? Que
os acontecimentos não me chegam senão com este intervalo de tempo depois de sua
atualidade? Numa palavra, que eu veja o mundo tal qual era naquela época.
Igualmente admitis
que, vendo as ruas daquela época, eu veja, ao mesmo tempo, os meninos que
corriam naquelas ruas? Pois bem! Desde que vejo este grupo de crianças, do qual
fazia parte, por que quereis que não me veja tão bem quanto vejo os outros?
Sitiens – Mas
não estais mais naquele grupo.
Lúmen – Ainda uma vez, este grupo mesmo não mais
existe agora, mas eu o vejo tal qual existia no instante em que partia o raio
luminoso que hoje me chega e, já que distingo os quinze ou dezoito meninos que
o compunham, não há razão para que o menino que era eu desapareça, só porque
sou eu quem o olha.
Outros observadores
o veriam em companhia de seus camaradas.
Por que quereis que
haja exceção quando sou eu quem olha? Eu os vejo todos, e me vejo com eles.
Lúmen passa em revista a série
dos principais acontecimentos políticos, ocorridos desde 1793 até 1864, quando
ele próprio se vê em seu leito de morte.
Sitiens – Estes
acontecimentos passaram rapidamente sob os vossos olhos?
Lúmen – Eu não poderia apreciar a medida do tempo.
Mas todo esse panorama
retrospectivo se sucedeu certamente em menos de um dia... Talvez em algumas
horas.
Sitiens – Então
não compreendo mais. Se 72 anos terrestres passaram sob vossos olhos, deveriam
ter gasto exatamente 72 anos para vos aparecer, e não algumas horas. Se o ano
de 1793 só vos apareceu em 1864, em compensação o de 1864 não vos deveria
aparecer senão em 1936.
Lúmen – Vossa objeção é fundada e me prova que compreendestes
bem a teoria do fato. Por isso, vou explicar-vos por que não me foi necessário
esperar 72 novos anos para rever minha vida, e como, sob o impulso de uma força
inconsciente, de fato a revi em menos de um dia.
Continuando a seguir
minha existência, cheguei aos últimos anos, notáveis pela transformação radical
que sofreu Paris; vi meus últimos amigos e vós mesmo; minha família e meu
círculo de relações; enfim chegou o momento em que me vi deitado em meu leito
de morte e onde assisti à última cena. É dizer-vos que tinha voltado à Terra.
Atraída pela
contemplação que a absorvia, rapidamente minha alma tinha esquecido um montão
de velhos e Capela. Como se o sente por vezes em sonho, ela voava para o
objetivo de seus olhares. De início não me apercebi, tanto a estranha visão cativava
todas as minhas faculdades. Não vos posso dizer nem por que lei, nem por que
força as almas podem transportar-se tão rapidamente de um a outro lugar; mas a
verdade é que eu tinha voltado à Terra em menos de um dia, e que penetrava em
meu quarto no exato momento de meu enterro.
Porque, nesta viagem
de volta, eu ia à frente dos raios luminosos, eu diminuía incessantemente a
distância que me separava da Terra, a luz tinha cada vez menos caminho a
percorrer e abreviava assim a sucessão dos acontecimentos. Em meio do caminho,
não me mostravam mais a Terra de 72 anos antes, mas de 36. Aos três quartos do
caminho, os aspectos eram atrasados apenas 18 anos. Na metade do último quarto,
chegavam-me apenas após passados 9 anos, e assim por diante; de sorte que a
série inteira de minha existência se achou condensada em menos de um dia, devido
à rápida volta de minha alma, indo à frente dos raios luminosos.
Quando Lúmen chegou em Capela,
viu um grupo de velhos ocupados em considerar a Terra, e dissertando sobre o
acontecimento de 1793.
Um deles disse aos companheiros:
De joelhos, meus
irmãos! Peçamos indulgência ao Deus universal. Esse mundo, essa nação, essa
cidade estão manchados por um grande crime; a cabeça de um rei inocente acaba
de cair.
Aproximei-me do ancião, diz Lúmen, e lhe pedi que me
fizesse o relato de suas observações.
Informou-me que, pela intuição de que são dotados os Espíritos
do grau dos que habitam este mundo, e pela faculdade íntima de percepção que
receberam em partilha, possuem uma espécie de relação magnética com as estrelas
vizinhas. Estas estrelas são em número de doze ou quinze; são as mais próximas;
fora dessa região a percepção torna-se confusa. Nosso Sol é uma dessas estrelas
vizinhas[4].
Eles conhecem, pois, vagamente mas sensivelmente, o estado das humanidades que
habitam os planetas dependentes desse sol e o seu relativo grau de elevação
intelectual e moral.
Além disso, quando uma grande perturbação atravessa uma
dessas humanidades, quer na ordem física, quer na ordem moral, eles sofrem uma
espécie de comoção íntima, como se vê uma corda vibrante fazer entrar em vibração
uma outra corda situada a distância.
Há um ano – o ano
deste mundo é igual a dez dos nossos – eles se tinham sentido atraídos por uma
emoção particular para o planeta terrestre, e os observadores tinham seguido
com interesse e inquietude a marcha deste mundo.
Laboraríamos em erro se
inferíssemos do que precede que os habitantes das diferentes esferas, do ponto
de vista onde estão, lançam um olhar investigativo sobre o que se passa nos outros
mundos, e que os acontecimentos que aí se realizam passam sob seus olhos como
no campo de uma luneta. Aliás, cada mundo tem suas preocupações especiais, que
cativam a atenção de seus habitantes, conforme suas próprias necessidades, seus
costumes completamente diferentes e seu grau de adiantamento. Quando os Espíritos
encarnados num planeta têm motivos pessoais para se interessarem pelo que se
passa em outro mundo, ou por alguns dos que o habitam, sua alma para lá se
transporta, como fez a de Lúmen, em estado de desprendimento, e então se tornam
momentaneamente, a bem dizer, habitantes espirituais desse mundo, ou aí se
encarnam em missão. Eis, pelo menos, o que resulta do ensinamento dos
Espíritos.
Esta última parte do relato de
Lúmen carece, pois, de exatidão; mas não se deve perder de vista que esta
história não passa de uma hipótese, destinada a tornar mais acessíveis à inteligência
e, de certo modo, palpáveis pela entrada em ação, da demonstração de uma teoria
científica, como fizemos observar em nosso artigo precedente.
Chamamos a atenção para o
parágrafo acima, no qual é dito que:
As
grandes perturbações físicas e morais de um mundo produzem sobre os mundos
vizinhos uma espécie de comoção íntima, como uma corda vibrante faz vibrar uma
outra corda colocada a distância.
O autor, que em matéria de ciência não fala levianamente,
anuncia aí um princípio que um dia bem poderia ser convertido em lei. A Ciência
já admite, como resultado da observação, a ação recíproca material dos astros.
Se, como se começa a suspeitar, esta ação, aumentada pelo fato de certas circunstâncias,
pode ocasionar perturbações e cataclismos, nada haveria de impossível que essas
mesmas perturbações tivessem seu contragolpe. Até o presente a Ciência
considerou apenas o princípio material; mas, se se levar em conta o princípio
espiritual como elemento ativo do Universo, e se se pensar que esse princípio é
tão geral e tão essencial quanto o princípio material, conceber-se-á que uma
grande efervescência deste elemento e as modificações que ele sofre num ponto
dado possam ter sua reação, por força da correlação necessária que existe entre
a matéria e o espírito. Há certamente nesta ideia o germe de um princípio fecundo
e de um estudo sério para o qual o Espiritismo abre caminho.
[1] Revista Espírita
– Maio/1867 – Allan Kardec
[2] N. do T.: Flammarion se refere à execução de Luís XVI,
ocorrida em 21 de janeiro de 1793.
[3] Segundo o cálculo, e em razão da distância do Sol, que
é de 38 milhões e 230 mil léguas de 4 quilômetros, a luz desse astro nos chega
em 8 minutos e 13 segundos. Disso resulta que um fenômeno que se passasse em
sua superfície só nos chegaria 8 minutos e 13 segundos mais tarde, e se tal
fenômeno fosse instantâneo, já não existiria mais quando o víssemos. Sendo a
distância da Lua de apenas 85.000 léguas, sua luz nos chega mais ou menos em um
segundo e um quarto; por conseguinte, as perturbações que aí pudessem acontecer
nos apareceriam pouco depois do momento em que ocorressem. Se Lúmen estivesse
na Lua, teria visto a Paris de 1864, e não de 1793. Se estivesse num mundo duas
vezes mais afastado do que Capela, teria visto a Regência.
[4] 170 trilhões e 392 bilhões de léguas! Pela distância
que separa as estrelas vizinhas pode-se julgar a extensão ocupada pelo conjunto
das que, entretanto, nos parecem à vista tão perto umas das outras, sem contar
o número infinitamente maior das que só são perceptíveis com o auxílio do
telescópio e que não são, elas próprias, senão uma ínfima fração das que,
perdidas nas profundezas do infinito, escapam a todos os nossos meios de
investigação. Se se considerar que cada estrela é um sol, centro de um turbilhão
planetário, compreender-se-á que o nosso próprio turbilhão não passa de um
ponto nessa imensidade.
Que é, pois, nosso globo
de 3.000 léguas de diâmetro, entre esses bilhões de mundos? Que são seus
habitantes, que durante muito tempo acreditaram que seu pequeno mundo era o
ponto central do Universo, e eles próprios se crerem os únicos seres vivos da
criação, concentrando apenas em si as preocupações e a solicitude do Eterno e
crendo de boa-fé que o espetáculo dos céus não tinha sido feito senão para lhes
recrear a vista? Todo esse sistema egoísta e mesquinho, que, durante longos
séculos, constituiu o fundamento da fé religiosa, desmoronou-se diante das
descobertas de Galileu.
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