Humberto de Campos
Benício Fernandes era assíduo
frequentador de um grupo espiritista, mas, nunca se furtara à enorme
contrariedade por não participar da visão direta dos quadros movimentados da
esfera invisível. Desejava, ardentemente, os dons mediúnicos mais avançados.
Fazia inúmeros exercícios para obtê-los. Iniciavam-se os trabalhos habituais e
lá estava o nosso amigo em profunda concentração, ansioso por surpreender as
visões reveladoras. Tudo, porém, em torno do seu mundo sensorial, era
expectação e silêncio. Terminada a reunião, ouvia, velando a própria mágoa,
certas descrições de alguns companheiros. Este observara a presença de
Espíritos amigos, aquele contemplara maravilhoso quadro simbólico. Falava-se de
mensagens, de painéis, de luzes entre vistas. Dentre os visitantes comuns, de
passagem pelo grupo, surgiam preciosos casos de fatos vividos. Havia sempre
alguém a comentar um acontecimento inesquecível, de sabor doutrinário, ocorrido
no seio da família.
Benício não conseguia disfarçar
a inveja e o desgosto e despedia-se, quase bruscamente, nervoso, fisionomia
estranha e taciturna, para entregar-se em casa a pensamentos angustiosos.
Por que razão não conseguia
perceber as manifestações do plano espiritual? Seria justo acompanhar o esforço
dos companheiros, quando, a seu ver, se sentia desatendido em suas
necessidades?
A coisa ia assumindo caráter de
terrível obsessão. Nosso amigo não mais ocultava o mal-estar íntimo. Se alguém,
depois de uma prece, o interrogava sobre as observações próprias, esclarecia em
tom desabrido: “Nada vi, nada sinto. Acredito que sou uma pedra”!
Aquelas atitudes revelavam
profunda desesperação aos companheiros preocupados. A situação agravava-se cada
vez mais, quando, uma noite, Benício sonhou que aportava ao mundo espiritual,
convocado por um amigo desejoso de receber suas notícias diretas. Na paisagem
de intraduzível beleza, o desvelado mentor abraçou-o e cogitou das suas
amarguras. O pobre homem estava deslumbrado com o que via, sem encontrar meio
de expressar a sensação de gozo que lhe ia na alma; toda via, respondeu sem
hesitação:
‒ Meu grande
benfeitor, não me posso queixar das minhas lutas terrenas, mas não devo ocultar
minha grande mágoa.
A respeitável entidade fez um
gesto interrogativo, enquanto Benício continuava:
‒ Desgraçadamente,
para mim, embora participe dos esforços de uma nobre agremiação de estudos
evangélicos, nunca vi os Espíritos!
‒ Mas não estás com a luta temporária da cegueira! Objetou
o amigo venerando, afavelmente. Esqueces, acaso, que teu plano de trabalho está
igualmente povoado de Espíritos em diversos graus da ascensão evolutiva?! Crês,
porventura, que, os habitantes da Terra sejam personalidades, estranhas à
comunidade universal?
Benício Fernandes experimentou
imenso choque. Aquela interpretação inesperada lhe desnorteava os pensamentos.
Como desejasse retificar o engano de suas cogitações, acentuou com algum
desapontamento:
‒ Sinto ânsia
ardente de contemplar os Espíritos protetores, beijar-lhes as mãos todos os
dias, manifestando-lhes meu reconhecimento.
‒ Esqueceste tua velha mãezinha? - perguntou o mentor
solícito.
‒ Há quanto tempo não te recordas de orar com ela,
osculando-lhe as mãos carinhosas? Acreditas, talvez, que os cabelos brancos
dispensam os carinhos? E teu tio; esgotado nos trabalhos mais grosseiros do
mundo, por ajudar tua mãe, na viuvez? Olvidaste, Benício, esses Espíritos
protetores de tua vida?
O discípulo da Terra
experimentou frio cortante na alma; no entanto, prosseguiu:
‒ Compreendo... Mas
não me posso furtar ao desejo de entrar em contato com as nobres entidades que
dirigem ali tarefas e conhecer-lhes os superiores desígnios.
‒ Não recordas teu chefe de trabalho diário? Interrogou o benfeitor
venerável.
‒ Ele é um bom Espírito dirigente. Supões que a tua
oficina e a sua administração estivessem no mundo, a esmo? Não desdenhes a
possibilidade de integrares elevados programas de ação do teu diretor de
trabalhos terrestres. Auxilia-o com a boa-vontade sincera. Antes de
examinar-lhe as decisões com pruridos de crítica, procura algum meio de
contribuir com o teu esforço, honrando-lhe os propósitos.
E como o interlocutor estivesse,
agora, profundamente emocionado, o amoroso mensageiro continuou:
‒ Olvidaste os diretores da instituição doutrinária onde
buscas benefícios? Aqueles irmãos muitas vezes são caluniados e
incompreendidos. Considera-lhes os sacrifícios. Quase sempre sofrem os ataques
da malícia humana e necessitam de companheiros abnegados para a obra generosa
de suas fundações fraternais. É justo que não sejas apenas mero sócio
contribuinte de despesas, materiais, e sim participante ativo do trabalho
evangélico, isto é, sincero sócio de Jesus-Cristo.
O aprendiz da Terra sentia-se
extremamente envergonhado. Suas ideias modificavam-se em ritmo vertiginoso.
Entretanto, na sua feição de homem do mundo, pouco inclinado a ceder das
próprias opiniões, redarguiu em tom 'de mágoa:
‒ Sim, meu bondoso
amigo, reconheço a justiça e a grandeza das vossas observações; entretanto, nas
minhas atividades terrenas, queria ver, pelo menos, algum Espírito sofredor,
alguma entidade necessitada, ou ignorante. . .
Valendo-se da pausa que se
fizera espontânea com os derradeiros argumentos, o carinhoso emissário voltou a
dizer:
‒ Almas desalentadas, entre feridas e angústias? Seres
necessitados de assistência e de luz? Não te lembras mais dos filhinhos que o
Céu te concedeu? Penetras cegamente os portais da tua instituição, a ponto de
não veres os enfermos e derrotados da sorte que ali procuram o socorro do
Evangelho de Jesus-Cristo? Nunca viste os que se aproximam da fonte das
bênçãos, tomados de intenções mesquinhas e criminosas, terríveis obsessores dos
operários fiéis?
Benício estava agora extático,
demonstrando haver afinal compreendido.
‒ Andas assim tão esquecido da vidência preciosa que Deus
te confiou? - prosseguia o mentor espiritual, solicitamente. Se ainda não
pudeste contemplar os Espíritos benfeitores, ou malfeitores, que te rodeiam na
Terra, como queres conhecer e classificar as potências do Céu? Volta para casa
e procura ver!...
Nesse instante, Benício
sentiu-se perturbado pela explosão de um ruído imenso.
Era o relógio que o despertava.
Acordou, esfregou os olhos e preparou-se para tomar o trem suburbano, dentro de
alguns minutos.
Nessa manhã, Benício Fernandes
levantou-se, tomou o café, abraçou mais afetuosamente a esposa e os filhinhos.
Cada coisa da sua modesta habitação apresentava, agora, aos seus olhos, uma
expressão diferente e mais preciosa. Antes de sair foi beijar as mãos de sua
mãe paralítica, o que há muito não fazia; perguntou pelo velho tio que saíra
mais cedo, e, engolfado em grandiosos pensamentos, dirigiu-se para o trabalho,
meditando na Providência Divina que lhe havia permitido receber uma lição para
o resto da vida.
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