Maria Antonieta sendo levada para sua execução, 1794
Allan Kardec
Lê-se no Petit Journal de 14 de maio de 1866:
O Sr. Émile Gaboriau, comentando
o fato atribuído àquele marido que teria assassinado a esposa sonhando, conta
no Pays o dramático episódio que se
vai ler:
Mas eis que é mais
forte e devo dizer que acredito no fato, cuja autenticidade me foi afirmada sob
juramento, pelo herói em pessoa.
O herói, meu
camarada de colégio, é um engenheiro de cerca de trinta anos, homem de espírito
e de talento, de caráter metódico e temperamento frio.
Como percorresse a
Bretanha há dois anos, teve de passar a noite num albergue isolado, a algumas
centenas de metros de uma mina, que pretendia visitar no dia seguinte.
Estava cansado. Foi
cedo para a cama e não custou a dormir.
Logo sonhou.
Acabavam de o pôr à frente da exploração dessa mina vizinha.
Vigiava os
operários, quando chegou o proprietário.
Esse homem, brutal e
mal-educado, o censurou por ficar fora e de braços cruzados, quando devia estar
no interior, ocupado em traçar o plano.
– Está bem! Eu
desço, respondeu o jovem engenheiro.
Com efeito, desceu,
percorreu as galerias e elaborou uma planta.
Terminada a tarefa,
entrou num cesto que o devia trazer para fora. Um cabo enorme servia para içar
esse cesto.
A mina era
extraordinariamente profunda e o engenheiro calculou que a ascensão duraria bem
um quarto de hora; assim, instalou-se o mais comodamente possível.
Já subia há dois ou
três minutos quando, erguendo os olhos por acaso, julgou ver que o cabo ao qual
estava suspensa a sua vida, estava cortado a alguns pés acima de sua cabeça,
muito alto para que pudesse alcançar a ruptura.
Logo de início seu
pavor foi tal que quase desmaiou. Depois tentou recompor-se, tranquilizar-se.
Não se teria enganado, visto mal? Foi preciso apelar energicamente a toda a sua
coragem para ousar olhar novamente.
Não; não se tinha
enganado. O cabo se havia rompido por alguma lasca de rocha e, lentamente, mas
visivelmente, se desembaraçava. Naquele ponto não tinha espessura maior que uma
polegada.
O infortunado
sentiu-se perdido. Um frio mortal o gelou até a medula. Quis gritar;
impossível. Aliás, para quê? Agora estava na metade do caminho.
No fundo, numa
profundidade vertiginosa, percebia menos brilhantes que vermes luzindo na
grama, as lâmpadas dos operários.
No alto, a abertura
do poço se lhe afigurava tão estreita que parecia não ter o diâmetro do gargalo
de uma garrafa.
E subia sempre, e um
a um, os fios de cânhamo rebentavam-se.
E nenhum meio de
evitar a queda horrível, porque – ele o via e sentia perfeitamente – o cabo se
romperia antes que o cesto atingisse o alto.
Tal era a sua
angústia mortal, que teve a ideia de abreviar o suplício, precipitando-se.
Hesitava, quando o
cesto chegou à flor do solo. Estava salvo. Foi soltando um grito formidável que
saltou em terra.
Este grito o
despertou. A horrível aventura não passara de um sonho. Mas estava num estado
lamentável, banhado de suor, respirando com dificuldade, incapaz do menor
movimento.
Enfim, pôde tocar a
campainha e vieram socorrê-lo. Mas as pessoas do albergue quase se recusavam a
reconhecê-lo. Seus cabelos negros estavam grisalhos.
Ao pé da cama se achava, desenhado por ele, a
planta dessa mina que ele não conhecia. A planta era de exatidão maravilhosa.
Não temos outra garantia da
autenticidade desse fato senão o relato acima. Sem nada prejulgar a respeito,
diremos que tudo quanto relata está dentro do possível. A planta da mina,
traçada pelo engenheiro durante o sono, não é mais surpreendente que os
trabalhos que executam certos sonâmbulos.
Para fazê-la exata, foi preciso
que a visse. Já que não a viu com os olhos do corpo, viu-a com os olhos da
alma. Durante o sono, seu Espírito explorou a mina: a planta é a prova
material.
Quanto ao perigo, é evidente que
nada havia de real; não passou de um pesadelo. O que é mais singular é que, sob
a impressão de um perigo imaginário, seus cabelos se tenham tornado brancos.
Este fenômeno se explica pelos
laços fluídicos que transmitem ao corpo as impressões da alma, quando esta dele
está afastada. A alma não se dava conta dessa separação; seu corpo
perispiritual lhe fazia o efeito de seu corpo material, como acontece muitas
vezes após a morte com certos Espíritos que ainda se julgam vivos e se imaginam
entregues às suas ocupações habituais.
Não obstante vivo, o Espírito do
engenheiro se achava numa situação análoga; tudo era tão real em seu pensamento
como se estivesse em seu corpo de carne e osso. Daí o sentimento de pavor que
experimentou, vendo-se prestes a ser precipitado no abismo.
De onde veio esta imagem
fantástica? Ele mesmo criou, pelo pensamento, um quadro fluídico, uma cena da
qual era o ator, exatamente como a Sra. Cantianille e a Irmã Elmérich [ver Criações Fantásticas da Imaginação,
publicado neste blog em 24.11.2020] , das quais falamos em nosso número
precedente. A diferença provém da natureza das preocupações habituais.
Naturalmente o engenheiro pensava nas minas, ao passo que a Sra. Cantianille,
em seu convento, pensava no inferno. Por certo ela se julgava em estado de
pecado mortal, por alguma infração à regra, cometida por instigação dos
demônios; exagerava-lhe as consequências e já se via em seu poder. Estas
palavras: “Eu apenas consegui muito bem merecer a sua confiança” provam que sua
consciência não estava tranquila. Aliás, a descrição que ela faz do inferno tem
algo de sedutor para certas pessoas, pois os que consentem em blasfemar Deus,
louvar o diabo e têm a coragem de afrontar o medo das chamas, são recompensados
por prazeres inteiramente mundanos.
Nesse quadro foi possível
notar-se um reflexo das provas maçônicas, que sem dúvida lhe tinham sido
mostradas como o vestíbulo do inferno. Quanto à Irmã Elmérich, suas
preocupações são mais suaves; ela se compraz na beatitude e na veneração das
coisas santas. Por isso suas visões são a sua reprodução.
Na visão do engenheiro, há,
pois, duas partes distintas: uma, real e positiva, constatada pela exatidão da
planta da mina; outra, puramente fantástica: a do perigo que correu. Esta
talvez seja efeito da lembrança de um acidente real dessa natureza, do qual
teria sido vítima em sua precedente existência. Pôde ser provocada como
advertência para tomar as precauções necessárias. Estando encarregado da
direção da mina, depois de semelhante alerta, não negligenciará as medidas de
prudência.
Eis um exemplo da impressão que
se pode conservar das sensações experimentadas numa outra existência. Não
sabemos se já o citamos noutra parte; não tendo tempo para verificar,
recordamo-lo com risco de fazer uma repetição, porque vem em apoio do que
acabamos de dizer.
Uma senhora do nosso
conhecimento pessoal tinha sido educada num pensionato de Ruão. Quando as
alunas saíam para ir à igreja ou para passear, essa senhora era tomada, num
certo ponto da rua, por uma comoção e por uma apreensão extraordinárias;
parecia-lhe que ia ser precipitada num abismo. Isto se repetia cada vez que
passava por aquele lugar e por todo o tempo em que esteve naquele pensionato.
Havia deixado Ruão há mais de vinte anos, mas, tendo ali retornado há poucos
anos, teve a curiosidade de ir rever a casa que tinha habitado; ao passar pela
mesma rua experimentou a mesma sensação. Mais tarde, tendo-se tornado espírita,
o fato lhe voltou à memória, pediu a sua explicação e lhe foi respondido que,
outrora, naquele lugar, havia muralhas com fossos profundos, cheios de água;
que ela fazia parte de um grupo de senhoras que concorreram para a defesa da
cidade contra os ingleses e que todas tinham sido precipitadas nos fossos e ali
perecido. O fato é relatado na história de Ruão.
Assim, depois de séculos, a
terrível impressão dessa catástrofe ainda não se havia apagado de seu Espírito.
Se ela não tinha mais o mesmo corpo carnal, tinha sempre o mesmo corpo fluídico
ou perispiritual, que havia recebido a primeira impressão e reagia sobre seu
corpo atual. Assim, um sonho poderia lhe retraçar a imagem e produzir uma
emoção semelhante à do engenheiro.
Quantas coisas nos explica o
grande princípio da perpetuidade do Espírito e do laço que une o Espírito à
matéria!
Talvez jamais os jornais,
negando o Espiritismo, relataram tantos fatos em apoio das verdades que ele
proclama.
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