terça-feira, 12 de janeiro de 2021

CABELOS ESBRANQUIÇADOS SOB A IMPRESSÃO DE UM SONHO[1]

 

Maria Antonieta sendo levada para sua execução, 1794


Allan Kardec

 

Lê-se no Petit Journal de 14 de maio de 1866:

O Sr. Émile Gaboriau, comentando o fato atribuído àquele marido que teria assassinado a esposa sonhando, conta no Pays o dramático episódio que se vai ler:

 

Mas eis que é mais forte e devo dizer que acredito no fato, cuja autenticidade me foi afirmada sob juramento, pelo herói em pessoa.

O herói, meu camarada de colégio, é um engenheiro de cerca de trinta anos, homem de espírito e de talento, de caráter metódico e temperamento frio.

Como percorresse a Bretanha há dois anos, teve de passar a noite num albergue isolado, a algumas centenas de metros de uma mina, que pretendia visitar no dia seguinte.

Estava cansado. Foi cedo para a cama e não custou a dormir.

Logo sonhou. Acabavam de o pôr à frente da exploração dessa mina vizinha.

Vigiava os operários, quando chegou o proprietário.

Esse homem, brutal e mal-educado, o censurou por ficar fora e de braços cruzados, quando devia estar no interior, ocupado em traçar o plano.

– Está bem! Eu desço, respondeu o jovem engenheiro.

Com efeito, desceu, percorreu as galerias e elaborou uma planta.

Terminada a tarefa, entrou num cesto que o devia trazer para fora. Um cabo enorme servia para içar esse cesto.

A mina era extraordinariamente profunda e o engenheiro calculou que a ascensão duraria bem um quarto de hora; assim, instalou-se o mais comodamente possível.

Já subia há dois ou três minutos quando, erguendo os olhos por acaso, julgou ver que o cabo ao qual estava suspensa a sua vida, estava cortado a alguns pés acima de sua cabeça, muito alto para que pudesse alcançar a ruptura.

Logo de início seu pavor foi tal que quase desmaiou. Depois tentou recompor-se, tranquilizar-se. Não se teria enganado, visto mal? Foi preciso apelar energicamente a toda a sua coragem para ousar olhar novamente.

Não; não se tinha enganado. O cabo se havia rompido por alguma lasca de rocha e, lentamente, mas visivelmente, se desembaraçava. Naquele ponto não tinha espessura maior que uma polegada.

O infortunado sentiu-se perdido. Um frio mortal o gelou até a medula. Quis gritar; impossível. Aliás, para quê? Agora estava na metade do caminho.

No fundo, numa profundidade vertiginosa, percebia menos brilhantes que vermes luzindo na grama, as lâmpadas dos operários.

No alto, a abertura do poço se lhe afigurava tão estreita que parecia não ter o diâmetro do gargalo de uma garrafa.

E subia sempre, e um a um, os fios de cânhamo rebentavam-se.

E nenhum meio de evitar a queda horrível, porque – ele o via e sentia perfeitamente – o cabo se romperia antes que o cesto atingisse o alto.

Tal era a sua angústia mortal, que teve a ideia de abreviar o suplício, precipitando-se.

Hesitava, quando o cesto chegou à flor do solo. Estava salvo. Foi soltando um grito formidável que saltou em terra.

Este grito o despertou. A horrível aventura não passara de um sonho. Mas estava num estado lamentável, banhado de suor, respirando com dificuldade, incapaz do menor movimento.

Enfim, pôde tocar a campainha e vieram socorrê-lo. Mas as pessoas do albergue quase se recusavam a reconhecê-lo. Seus cabelos negros estavam grisalhos.

 Ao pé da cama se achava, desenhado por ele, a planta dessa mina que ele não conhecia. A planta era de exatidão maravilhosa.

 

Não temos outra garantia da autenticidade desse fato senão o relato acima. Sem nada prejulgar a respeito, diremos que tudo quanto relata está dentro do possível. A planta da mina, traçada pelo engenheiro durante o sono, não é mais surpreendente que os trabalhos que executam certos sonâmbulos.

Para fazê-la exata, foi preciso que a visse. Já que não a viu com os olhos do corpo, viu-a com os olhos da alma. Durante o sono, seu Espírito explorou a mina: a planta é a prova material.

Quanto ao perigo, é evidente que nada havia de real; não passou de um pesadelo. O que é mais singular é que, sob a impressão de um perigo imaginário, seus cabelos se tenham tornado brancos.

Este fenômeno se explica pelos laços fluídicos que transmitem ao corpo as impressões da alma, quando esta dele está afastada. A alma não se dava conta dessa separação; seu corpo perispiritual lhe fazia o efeito de seu corpo material, como acontece muitas vezes após a morte com certos Espíritos que ainda se julgam vivos e se imaginam entregues às suas ocupações habituais.

Não obstante vivo, o Espírito do engenheiro se achava numa situação análoga; tudo era tão real em seu pensamento como se estivesse em seu corpo de carne e osso. Daí o sentimento de pavor que experimentou, vendo-se prestes a ser precipitado no abismo.

De onde veio esta imagem fantástica? Ele mesmo criou, pelo pensamento, um quadro fluídico, uma cena da qual era o ator, exatamente como a Sra. Cantianille e a Irmã Elmérich [ver Criações Fantásticas da Imaginação, publicado neste blog em 24.11.2020] , das quais falamos em nosso número precedente. A diferença provém da natureza das preocupações habituais. Naturalmente o engenheiro pensava nas minas, ao passo que a Sra. Cantianille, em seu convento, pensava no inferno. Por certo ela se julgava em estado de pecado mortal, por alguma infração à regra, cometida por instigação dos demônios; exagerava-lhe as consequências e já se via em seu poder. Estas palavras: “Eu apenas consegui muito bem merecer a sua confiança” provam que sua consciência não estava tranquila. Aliás, a descrição que ela faz do inferno tem algo de sedutor para certas pessoas, pois os que consentem em blasfemar Deus, louvar o diabo e têm a coragem de afrontar o medo das chamas, são recompensados por prazeres inteiramente mundanos.

Nesse quadro foi possível notar-se um reflexo das provas maçônicas, que sem dúvida lhe tinham sido mostradas como o vestíbulo do inferno. Quanto à Irmã Elmérich, suas preocupações são mais suaves; ela se compraz na beatitude e na veneração das coisas santas. Por isso suas visões são a sua reprodução.

Na visão do engenheiro, há, pois, duas partes distintas: uma, real e positiva, constatada pela exatidão da planta da mina; outra, puramente fantástica: a do perigo que correu. Esta talvez seja efeito da lembrança de um acidente real dessa natureza, do qual teria sido vítima em sua precedente existência. Pôde ser provocada como advertência para tomar as precauções necessárias. Estando encarregado da direção da mina, depois de semelhante alerta, não negligenciará as medidas de prudência.

Eis um exemplo da impressão que se pode conservar das sensações experimentadas numa outra existência. Não sabemos se já o citamos noutra parte; não tendo tempo para verificar, recordamo-lo com risco de fazer uma repetição, porque vem em apoio do que acabamos de dizer.

Uma senhora do nosso conhecimento pessoal tinha sido educada num pensionato de Ruão. Quando as alunas saíam para ir à igreja ou para passear, essa senhora era tomada, num certo ponto da rua, por uma comoção e por uma apreensão extraordinárias; parecia-lhe que ia ser precipitada num abismo. Isto se repetia cada vez que passava por aquele lugar e por todo o tempo em que esteve naquele pensionato. Havia deixado Ruão há mais de vinte anos, mas, tendo ali retornado há poucos anos, teve a curiosidade de ir rever a casa que tinha habitado; ao passar pela mesma rua experimentou a mesma sensação. Mais tarde, tendo-se tornado espírita, o fato lhe voltou à memória, pediu a sua explicação e lhe foi respondido que, outrora, naquele lugar, havia muralhas com fossos profundos, cheios de água; que ela fazia parte de um grupo de senhoras que concorreram para a defesa da cidade contra os ingleses e que todas tinham sido precipitadas nos fossos e ali perecido. O fato é relatado na história de Ruão.

Assim, depois de séculos, a terrível impressão dessa catástrofe ainda não se havia apagado de seu Espírito. Se ela não tinha mais o mesmo corpo carnal, tinha sempre o mesmo corpo fluídico ou perispiritual, que havia recebido a primeira impressão e reagia sobre seu corpo atual. Assim, um sonho poderia lhe retraçar a imagem e produzir uma emoção semelhante à do engenheiro.

Quantas coisas nos explica o grande princípio da perpetuidade do Espírito e do laço que une o Espírito à matéria!

Talvez jamais os jornais, negando o Espiritismo, relataram tantos fatos em apoio das verdades que ele proclama.



[1] Revista Espírita – Setembro/1866 – Allan Kardec

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