terça-feira, 22 de dezembro de 2020

O ESPIRITISMO SÓ PEDE PARA SER CONHECIDO[1]

 


Allan Kardec

 

É um fato comprovado que desde que a crítica se voltou contra o Espiritismo, mostrou a mais completa ignorância de seus princípios, mesmo daqueles mais elementares. Ela o provou superabundantemente, fazendo-o dizer precisamente o contrário do que ele diz, atribuindo-lhe ideias diametralmente opostas às que ele professa. Como, para ela, o Espiritismo é considerado uma fantasia, disse consigo mesma: Ele deve dizer e pensar tal coisa.

Numa palavra, ela o julgou pelo que imaginou pudesse ele ser, e não pelo que é realmente. Sem dúvida, lhe era muito fácil esclarecer-se; mas, para isto, era preciso ler, estudar aprofundar uma doutrina toda filosófica, analisar o pensamento, sondar o alcance das palavras. Ora, eis aí um trabalho sério, que não é do gosto de todo o mundo, muito fatigante mesmo para alguns. A maioria dos escritores, encontrando nos escritos de alguns de seus confrades um julgamento acabado, de acordo com suas ideias cépticas, aceitou o fundo sem maior exame, limitando-se a lhes fantasiar algumas variantes na forma. Foi assim que as mais falsas ideias se propagaram, quais ecos na imprensa, e daí a uma parte do público.

Isto, entretanto, não poderia ter senão um tempo. A Doutrina Espírita, que nada tem de oculto, que é clara, precisa, sem alegorias nem ambiguidades, sem fórmulas abstratas, deveria acabar sendo mais bem conhecida. A própria violência com a qual era atacada devia provocar o seu exame. Foi o que aconteceu e provoca a reação que hoje se nota. Isto não quer dizer que todos os que a estudam, mesmo seriamente, devam tornar-se seus apóstolos; não, certamente. Mas é impossível que um estudo atento, feito sem ideia preconcebida, ao menos não atenue a prevenção que se tinha concebido, se não a dissipar completamente. Era evidente que a hostilidade de que era objeto o Espiritismo deveria levar a esse resultado. É por isto que jamais nos preocupamos a tal respeito.

Porque o Espiritismo faz menos ruído neste momento, algumas pessoas imaginam que há uma estagnação em sua marcha progressiva; mas não levam elas em nenhuma conta a reviravolta que se opera na opinião pública? Será uma conquista insignificante ser visto com menos maus olhos? Desde o começo o Espiritismo congregou rodos aqueles em que essas ideias estavam, a bem dizer, em estado de intuição; teve apenas que se mostrar para ser aceito com entusiasmo. É o que explica seu rápido crescimento numérico.

Hoje, que colheu o que estava maduro, age sobre a massa refratária; o trabalho é mais demorado; os meios de ação são diferentes e apropriados à natureza das dificuldades, mas, pelas flutuações da opinião, sente-se que essa massa se abala sob os golpes dos Espíritos, que a ferem incessantemente de mil maneiras. Por ser menos aparente, o progresso não é menos real; é como o de um edifício que se eleva com rapidez e que parece parar quando se trabalha no interior.

Quanto aos espíritas, o primeiro momento foi o do entusiasmo. Mas um estado de superexcitação não pode ser permanente; ao movimento expansivo exterior, sucedeu um estado mais calmo; a fé também é viva, mas é mais fria, mais racional e, por isto mesmo, mais sólida. A efervescência deu lugar a uma satisfação íntima mais suave, cada dia mais bem apreciado, pela serenidade que proporciona a inabalável confiança no futuro.

Hoje, pois, o Espiritismo começa a ser julgado de outro ponto de vista. Não o acham mais tão estranho e tão ridículo, porque o conhecem melhor; os espíritas já não são apontados com o dedo, como animais curiosos; se muitas pessoas ainda repelem o fato das manifestações, que podem conciliar com a ideia que fazem do mundo invisível, não mais contestam o alcance filosófico da doutrina; nova ou velha a sua moral, não deixa de ser uma doutrina moral, que não pode senão estimular ao bem os que a professam.

É o que reconhece quem quer que julgue com conhecimento de causa. Agora, tudo quanto censuram nos espíritas é a crença destes na comunicação dos Espíritos; mas lhes relevam essa pequena fraqueza em favor do resto. Sobre este ponto os Espíritos se encarregarão de mostrar se existem.

O artigo do Sr. Bertram, de Bruxelas, acima citado, parece-nos a expressão do sentimento que tende a se propagar no mundo dos zombadores e se desenvolverá à medida que o Espiritismo for mais conhecido. O artigo seguinte é no mesmo sentido, mas revela uma convicção mais completa. É o extrato do Soleil de 5 de maio:

 

“Ao mesmo tempo em que apareciam Os Apóstolos, do Sr. Ernest Renan, o Sr. J.B. Roustaing, adepto esclarecido do Espiritismo, publicava na livraria central uma obra considerável, intitulada Os Quatro Evangelhos, seguidos dos mandamentos explicados em espírito e em verdade pelos evangelistas, assistidos pelos apóstolos.

 “A massa dos parisienses quase não conhece, em matéria de Espiritismo, senão as falcatruas de alguns escamoteadores, que em vão tentaram abusar da credulidade de um público incrédulo. Esses charlatães foram vaiados, o que é muito bem feito; mas os espíritas, cheios de ardor e de fé, não deixaram de continuar suas experiências e sua rápida propaganda.

“Em Paris as coisas mais sérias são tratadas do mesmo modo que as coisas mais fúteis. É aqui que, na maioria dos casos, se pergunta se se trata de um deus, de uma mesa, ou de uma bacia. As experiências primárias tentadas entre duas xícaras de chá, por algumas mulheres adúlteras e alguns jovens pretensiosos, bastaram à curiosidade dos parisienses. Se a mesa fingia que girava, riam muito; se, ao contrário, a mesa não se movia, riam ainda mais. E é assim que a questão era aprofundada. A coisa se dava de outra maneira entre a população mais sensata da província. O menor resultado animava os prosélitos, excitava-lhes o ardor. O Espírito de seus parentes correspondia à sua expectativa, e cada um deles, conversando com a alma de seu pai e de seu irmão defuntos, estava convencido de haver levantado o véu da morte que, doravante, não lhes podia aterrorizar.

“Se alguma vez houve uma doutrina consoladora, certamente é esta: a individualidade conservada além do túmulo, a promessa formal de uma outra vida, que é realmente a continuação da primeira. A família subsiste, a afeição não morre com a pessoa; não há separação. Cada noite, no sul e no oeste da França, as reuniões espíritas atentas tornam-se mais numerosas. Oram, evocam, creem. Gente que não sabe escrever, escreve; sua mão é dirigida pelo Espírito.

“O Espiritismo não representa um perigo social, razão por que o deixam espalhar-se sem lhe opor barreiras. Se o Espiritismo fosse perseguido, teria os seus mártires, como o babismo na Pérsia.

 “Ao lado das respostas mediúnicas mais sérias, encontram-se indicações e conselhos que provocam riso. O autor de Os Quatro Evangelhos, Sr. Roustaing, advogado na corte imperial de Bordeaux, antigo bastonário, nem é um ingênuo, nem um brincalhão; contudo, no seu prefácio se encontra a seguinte comunicação:

 

É chegado o momento em que te deves pôr em condição de entregar esta obra à publicidade. Não te fixamos limites; emprega com sabedoria e medida as tuas horas, a fim de poupar tuas forças... A publicação pode ser começada a partir do mês de agosto próximo; a partir desta data, trabalha o mais prontamente possível, mas sem ultrapassar as forças humanas, de tal maneira que a publicação esteja terminada no mês de agosto de 1866.

Assinados: Moisés, Mateus, Marcos, Lucas, João Assistidos pelos Apóstolos

 

“O leitor fica surpreendido por não ver Moisés, Mateus, Lucas e João levar seu conselho até ao fim e acrescentar: Mandarás imprimir a obra na casa Lavertujon, 7, Rue des Treilles, em Bordeaux, e a exporás na Librairie Centrale, 24, boulevard des Italiens, em Paris.

“A gente também pára um instante nessa passagem que diz ao autor para não ultrapassar as forças humanas. Então o autor as teria ultrapassado, sem essa palavra paternal dos senhores Moisés, Mateus, Marcos e João?

“O Sr. Renan, sem tocar inicialmente no Espiritismo, faz numerosas alusões a essa nova doutrina, cuja importância parece não desconhecer. O autor dos Apóstolos lembra (pág. 8) uma passagem capital de São Paulo que estabelece: 1º – a realidade das aparições;  2º – a longa duração das aparições. Só uma vez, no curso de sua obra, o Sr. Renan dá um tranco nos espíritas. Diz ele à página 22, segunda nota:

 

 Para conceber a possibilidade de semelhantes ilusões, basta lembrar as cenas de nossos dias, em que pessoas reunidas reconhecem unanimemente ouvir ruídos sem realidade, e isto com perfeita boa-fé. A espera, o esforço da imaginação, a disposição a crer, por vezes complacências inocentes, explicam alguns desses fenômenos que não são produto direto da fraude. Essas complacências, em geral, vêm de pessoas convictas, animadas de um sentimento de benevolência, que não querem que a sessão acabe mal e desejosas de tirar do embaraço os donos da casa.

Quando se crê no milagre, sempre se ajuda sem o perceber. A dúvida e a negação são impossíveis nessas espécies de reuniões.

Seria penoso para os que creem e para os que vos convidaram. Eis por que tais experiências, que dão resultado diante de um pequeno grupo, geralmente falham perante um público pagante e falham sempre ante as comissões científicas.

 

“Aqui, como alhures, faltam boas razões ao livro do Sr. Renan. De estilo suave e encantador, substituindo a lógica pela poesia, os Apóstolos deveriam intitular-se os Últimos Abencérages. As referências a documentos inúteis, as falsas provas de que a obra está sobrecarregada lhe dão todas as aparências da puerilidade com a qual foi concebida. Não há com que se enganar.

“Conta o Sr. Renan que Maria de Magdala, chorando junto ao túmulo, teve uma visão, uma simples visão.  – Quem lhe disse? – Ela acreditou ouvir uma voz. – Como sabe que realmente não a ouviu? – Todas as afirmações contidas na obra têm mais ou menos a mesma força.

“Se os espíritas não têm a oferecer como explicação senão sua boa-fé, o Sr. Renan nem mesmo tem esse recurso.

“Aqui não podemos expor o livro do Sr. Roustaing; não temos o direito de discuti-lo, nem o de ver onde ele nos conduz.

Aliás, não seria o lugar para entrar em considerações que o leitor não busca em nossas colunas. A obra é séria, o estilo é claro e firme.

O autor não cometeu a asneira ordinária dos comentadores, que muitas vezes são mais obscuros que o próprio texto que querem esclarecer.

“O Espiritismo, que tinha o seu catecismo, terá de agora em diante seus códigos anotados e seu curso de jurisprudência. Só lhe faltará a prova do martírio.”

Aurélien Scholl



[1] Revista Espírita – Setembro/1866 – Allan Kardec

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