sexta-feira, 8 de maio de 2020

FÉ: A SUBSTÂNCIA DA ESPERANÇA[1],[2]



Hermínio C. Miranda

Quando a fé racional explodiu com todo o seu impacto na Doutrina dos Espíritos, embora com ligeiras variações, tanto Mateus como Lucas narram, em substância, a mesma história do centurião romano, um dos mais tocantes episódios dos tempos evangélicos. Ambos colocam o incidente logo após o famoso Sermão do Monte, quando Jesus entrava em Cafarnaum.
Mateus conta que o centurião foi pessoalmente ao Mestre, enquanto Lucas diz que o romano enviou-lhe uma delegação de anciãos judeus para formularem o pedido. Ambos, porém, deixam entrever que o soldado não estava preocupado com a perda do seu criado e sim realmente penalizado diante da dor que o pobre estava sofrendo com a sua paralisia. Jesus prontamente sentiu a sinceridade do homem e se propôs a curar o servo doente:
Eu irei e o curarei — diz, segundo Mateus.
Lucas narra que ele se achava a caminho da casa do centurião quando este lhe mandou a mensagem que constitui a essência do episódio:
Senhor, eu não sou digno de que entres em minha casa. Por isso, nem mesmo me achei digno de ir procurar-te. Dize, porém, uma só palavra e meu criado ficará bom.
Contam os evangelistas que o romano prosseguiu dizendo que, como soldado, ele tinha superiores hierárquicos a quem obedecia, tanto quanto subordinados, aos quais bastava dar uma ordem para que a cumprissem.
A leitura de Lucas nos esclarece que, embora fazendo parte do exército invasor que trazia a Palestina subjugada a César, o centurião era estimado entre os judeus — “é amigo de nossa gente e ele mesmo nos fundou uma sinagoga”, disseram os velhos. Extraordinário homem, esse bom centurião, tolerante para com os oprimidos ao ponto de granjear-lhes a simpatia e até fundar-lhes uma sinagoga.
Na sua aguda percepção, Jesus deve ter notado de imediato os méritos do homem tanto quanto a sinceridade do seu pedido em favor do criado doente. Mas, o que mais fundo tocou o coração do Mestre foi a fé que ele demonstrou no jovem profeta de Israel e no seu Deus, tão diferente dos deuses pagãos.
Vale a pena desenhar mais nitidamente o quadro para alcançarmos bem toda a grandeza do incidente.
A Palestina sempre foi uma espécie de encruzilhada do mundo. Por ali passaram com frequência os grandes conquistadores, em busca das riquezas lendárias do oriente. Por isso, Will Durant escreve que o povo judeu teve a sua história tumultuada, por tentar viver no meio de uma estrada movimentada.
Depois de Alexandre, cujo vulto já desaparecera na poeira dos séculos, vieram os romanos que, desde o ano 63 antes do Cristo, começaram a interferir nos negócios políticos dos judeus, ao tempo de Pompeu. A dominação total não tardaria, com a invasão e a ocupação e todo o seu cortejo de pressões e crueldades, que eram duros os tempos e o coração dos homens.
Emmanuel nos conta — em ‘‘Paulo e Estêvão” — as aflições que delegados romanos prepotentes impuseram à família daquele que seria o primeiro mártir do Cristianismo.
Não é de admirar-se, pois, que o povo de Israel suspirasse pelo Messias que, segundo a letra das profecias, viria em todo o seu poder e majestade, para expulsar os romanos e restabelecer na terra sagrada o governo livre do estado judaico.
Roma era onipresente na Palestina, na figura dos soldados quase sempre impiedosos, agentes do Cesar distante, temido e odiado. Eram eles o símbolo daquele poder esmagador que extraía impostos elevados de um povo empobrecido, sufocava em sangue e lágrimas os anseios de liberdade, confiscava bens e profanava as ruas e até os templos com imagens e figuras que os livros sagrados proibiam taxativamente.
É, pois, digno de respeito, um comandante romano que tenha conquistado as boas graças do povo esmagado.
E mais notável ainda que tenha tido a corajosa humildade de solicitar a ajuda de Jesus para salvar um servo modesto, figura social que naqueles tempos ásperos se colocava pouco acima do mendigo. E surpreendente que tenha levado tão alto o seu respeito pelo jovem pregador que nem mesmo a sua casa achou-a digna de recebê-lo. Podemos presumir que sua residência fosse bem melhor que a maioria das casas ocupadas pelos próprios judeus. Os invasores sempre tomam para si o que há de melhor. Acima de tudo, porém, o que ressalta deste episódio, tão profundamente humano, é a fé que o romano demonstrou em Jesus, a ponto de não achar nem mesmo necessário que ele viesse ver o servo doente; bastaria — como bastou — o poder do pensamento e da vontade daquele doce profeta da paz.
Até mesmo Jesus se admirou daquela demonstração inesperada. Voltou-se para os que o seguiam para exaltar o gentio, pois que “nem em Israel” achara tamanha fé. Segundo Mateus, Jesus aproveitou mesmo a oportunidade para conclamar a universalidade do seu pensamento, exatamente porque se baseava em conceitos que atraíam tanta gente, mesmo fora dos círculos judaicos:
“Digo-vos, porém, que virão muitos do oriente e do ocidente e se assentarão à mesa com Abraão e Isaac e Jacó no reino dos céus, mas os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mat. 7: 11 e 12).

Ao que parece, o Mestre previa, nessa passagem, que incontáveis multidões não-israelitas haveriam de aderir à sua doutrina, enquanto que os judeus que não cumprissem a lei de Deus seriam precipitados nas trevas de suas próprias angústias. Sua doutrina era, assim, para todos, como muito bem o entendeu Paulo, pouco depois. Não seria mais uma seita judaica; era uma nova filosofia de vida para todos os povos da Terra. O suporte básico dessa pregação era a fé.
Vai — disse ao centurião — e faça-se segundo tu creste.
Os séculos escorreram lentamente sobre a cena de Cafarnaum e o conceito singelo e profundo da fé passou por muitas alterações e distorções. Achava Paulo que a fé salvava o justo (Epístola aos Romanos). Entendeu Lutero, apoiado nesse mesmo pensamento pauliniano, que somente a fé era capaz de salvar, de nada adiantando as nossas intenções e as nossas obras. A fé sozinha cobriria as nossas iniquidades e imperfeições, levando-nos sãos e salvos ao reino de Deus.
Na Idade Média, trágica época de obscurantismo e intolerâncias, a fé adquirira a rigidez cadavérica dos dogmas, esquecida de suas origens e da sua finalidade. Quiseram proclamar que somente um caminho havia para Deus e quem não quisesse trilhar aquela vereda deveria morrer o quanto antes, para não contaminar o resto do rebanho.
As primeiras tentativas de racionalizar a fé, na altura do século 12, levaram Abelardo à desgraça e ao opróbrio, quando se levantou em defesa da Igreja a voz de Bernardo. A fé não era para ser discutida, nem racionalizada, nem submetida aos esquemas frios da filosofia e da lógica. Tudo a ela se subordinava, até mesmo a filosofia. Qualquer raciocínio que contrariasse uma questão de fé era imediatamente rotulado de heresia e tenazmente combatido. Os homens tinham de renunciar à tentativa de reconciliar razão e fé. Nada tinha a ver uma com a outra; eram ramos autônomos do pensamento e nos pontos em que se chocavam tinham de predominar, necessariamente, sem discussão, os postulados da fé, tal como a entendiam os teólogos. O homem tinha que crer não só quando o dogma era absurdo, mas exatamente porque era absurdo, pois a fé alcançava onde a razão se recusava a chegar.
Mas que era a fé? Paulo tentara a sua definição. Diz o grande apóstolo, no capítulo 11, versículo l, da “Epístola aos Hebreus”, que a fé é a substância das coisas que se esperam e a evidência das coisas que não a veem.
Muito se tem dito depois de Paulo a respeito da fé, mas acho que jamais se disse tão bem e tão belo. Substância da esperança, evidência daquilo que não podemos ver… Que melhor maneira de conceituar algo tão diáfano como a fé?
Tocaria, porém, ao Espiritismo de Kardec o coroamento da tarefa: não apenas conciliar razão e fé, mas, ainda além, declarar que a fé somente é legítima quando passar pelo teste da razão. Chegara, afinal, a era do Consolador. Viera no tempo certo, porque antes disso os homens não estavam prontos para a renovação dos conceitos esclerosados da teologia milenar. Por outro lado, a sofisticação científica e filosófica, que a civilização trouxera no seu bojo, retirava do homem a simplicidade indispensável à aceitação daquela fé tão pura e firme que Jesus identificara no centurião. Os homens haviam começado a inquirir o porquê das coisas e a buscarem os suportes da fé. Quando a fé surgia desapoiada na razão, era rejeitada e não havia mais o que colocar no lugar dela, até que explodiu, com todo o seu impacto, a Doutrina dos Espíritos.
Por tudo isso, nós, que hoje estamos nesta posição, podemos olhar com tranquilidade o nosso futuro espiritual e o futuro da Humanidade a que pertencemos. Estamos bem equipados para enfrentar a desorientação que predomina no mundo em que vivemos. A nossa fé é estruturada naquela substância da esperança de que nos falava Paulo, uma esperança que o ensino dos mentores espirituais converteu em certeza. Quanto à evidência do que não vemos, ela salta à nossa visão espiritual, no trato quase que diário com tantos irmãos espirituais invisíveis que, antes de nós, partiram para a outra margem da vida.
Se o centurião podia crer sem discutir e sem racionalizar, por que haveremos nós, espiritas, de temer pelo futuro da Humanidade se já nos foi dado crer ao mesmo tempo com a cabeça e o coração?
Deus abençoe a Kardec, instrumento bendito dessa mensagem de paz e de amor. Até que chegássemos a esse patamar do pensamento filosófico-religioso, toda uma legião de bons trabalhadores lutaram e sofreram para nos legar aquilo a que Paulo chamou substância da esperança.

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