sábado, 25 de janeiro de 2020

OS DOIS LADOS[1]



Paulo Roberto Gaefke

Pedro parou seu carrão na calçada imunda daquela rua ao perceber que um homem de tão bêbado que estava, havia caído e batido a cabeça no poste.
Desmaiado e com a cabeça ensanguentada, o pobre não teria chance nenhuma de vida, não fosse a pronta intervenção do Pedro, que do seu celular acionou o sistema de resgate, e rasgando um pedaço de sua camisa de puro linho, enfaixou a cabeça daquele homem na tentativa de estancar o sangue.
Já havia uma considerável multidão em volta deles, mas como sempre, só comentários e murmúrios, não havia uma só pessoa que se aproximasse para acudir o homem.
O que chamava a atenção mesmo era aquele jovem bem vestido, com a camisa rasgada amparando aquele "bebum"...
Uns diziam que o rico havia atropelado o pobre, por isso estava ali, e boatos e histórias se formavam com velocidade, até que a ambulância chegou e foi abrindo espaço para o médico e enfermeiros fazerem o trabalho de resgate.
Pedro entregou seu cartão para o enfermeiro e pediu que ligasse para dar notícias do pobre infeliz.
Dias depois, Pedro recebeu um telefonema do Hospital Central, era o enfermeiro Márcio que atendeu o indigente na rua, dizendo que o mesmo já estava bom e receberia alta naquele dia.
Descobriram que o nome dele era José Carlos, mas não tinha familiares na cidade.
Pedro ainda não sabia por que, mas dirigiu-se para o Hospital Central, e procurou pelo homem que havia socorrido, mas nem conhecia.
Ao entrar no quarto onde haviam mais quatro camas, foi direto para aquela cama do canto onde um homem ainda jovem, mas muito magro e com expressão vazia olhava pela janela para o dia lá fora.
- José Carlos?
O jovem se virou e estranhou aquela pessoa bem vestida chamando-o pelo seu nome.
Nas ruas ele era conhecido como "zé podre", pela ausência de higiene que impera nos moradores de rua, ele causava repulsa nas pessoas pelo cheiro que exalava.
- Sim, sou eu, e o senhor, quem é?
- Meu nome é Pedro, e eu o socorri no dia em que o senhor caiu na rua após bater a cabeça no poste.
- Puxa! Muito obrigado, eu senti a ajuda, mas não consegui identificar quem me ajudou.
Deus lhe pague...
Mal terminou de falar, as lágrimas tomaram conta dos seus olhos.
Começaram devagar e foram aumentando e se transformando em um choro convulsivo.
Pedro ficou ali parado, esperando aquele ser humano dar vazão a toda aquela dor que deveria estar reprimida dentro dele.
Depois de alguns minutos, José Carlos pediu desculpas pelo ocorrido e silenciou-se.
Pedro então pediu para ele contar a sua história, se assim desejasse.
José Carlos falou da vida miserável da infância, do pai alcoólatra que só batia nele e no irmão, que apanhavam até pelo que não fizeram.
Lembrava da mãe que cansada das surras, abandonou a família, deixando ele e o irmão nas mãos do pai, que nunca trabalhou, vivia de bicos para pagar o vício.
Passara muita fome e lembrava-se de várias vezes ter roubado uma fruta na feira, e lembrando do irmão em casa, que era menorzinho, levava a fruta mesmo tendo a maior vontade de comê-la, para que o irmãozinho não passasse tanta fome.
- Um dia, após uma surra violenta do pai, que parecia mais atormentado naquele dia, eu sai de casa arrastando meu irmãozinho pela mão, decidido a nunca mais voltar.
Depois de muito andar, meu irmãozinho estava muito cansado, com marcas do chinelo pelas perninhas e com muita fome, pediu para eu parar para que ele descansasse.
Olhei para suas condições e achei que ele não iria resistir e morreria ali mesmo.
Eu tinha 11 anos seu doutor, e bati palmas numa casa bonita e uma mulher de cabelos brancos muito bonita me atendeu e vendo o sofrimento nos meus olhos, me atendeu e recebeu meu irmãozinho na sua casa.
Deu-nos comida e roupas dos seus filhos que já haviam crescido e ela guardava como recordação.
Nunca havia estado num lugar tão lindo, nem comido uma comida tão gostosa, e aquela senhora bondosa, além de tudo o que nos fez, permitiu que dormíssemos na sua casa naquela noite.
Sabe o que é sentir uma cama com lençóis limpos, cobertores para aquecer e uma coisa que eu nunca esqueci, aquela senhora nos cobriu carinhosamente e fez uma oração com a gente, falava de uma mãe que era bendita entre todas as mulheres.
Para mim, naquela noite, aquela mulher era essa mãe...
José Carlos chorou mais um pouco, as lembranças pareciam-lhe vivas na memória, nem percebeu as lágrimas do Pedro...
- Pois bem seu doutor, no meio da noite, ao ver meu irmãozinho dormindo naquela cama boa, aquecido e protegido, eu pensei que no dia seguinte ela nos mandaria embora, e eu não saberia para onde ir com ele, mas se eu fosse embora antes, talvez ela ficasse com ele, pois seria apenas uma criança, uma despesa menor.
Assim, levantei-me no meio da noite abri a janela do quarto e sai pela noite fria, levando comigo apenas um pé da meia do meu irmãozinho, que serviria de lembrança para minha vida e que carrego até hoje nas minhas poucas coisas...
Durante o dia passei pela casa, para ver se o meu irmãozinho seria expulso, mas nada aconteceu.
Pela tarde, escondido atrás de um muro, vi aquela senhora levar meu irmãozinho até um parque que havia na esquina e brincou com ele.
Por alguns dias voltei lá e vi que ele estava sendo bem cuidado, então me afastei, e durante anos, vivi apenas da miséria das ruas.
Um dia voltei ao velho endereço, e soube que a família havia se mudado e nunca mais soube nada do meu irmãozinho, mas sei que ele deve estar bem.
Foi ai, que entre lágrimas, José Carlos olhou para o Pedro que também chorava e em suas mãos, numa carteira de couro ele reconheceu o pé de meia do seu irmão, aquele que fazia par com aquele que ele carregava até hoje, como lembrança do seu irmãozinho...
Sem falar nada, se abraçaram, e todos que ali passavam, se emocionaram, e quando souberam da história, choravam de alegria e naquele hospital, ainda hoje se fala da história de amor de um irmão que renunciou a tudo pela vida do irmãozinho.
Hoje, os dois dirigem um orfanato que abriga mais de 100 crianças, que hoje tem a oportunidade de receber o carinho que faltou na infância deles.
O orfanato funciona naquela casa bonita, onde um dia José Carlos deixou seu irmão Pedro, na esperança de que pelo menos ele pudesse ter o que ele nunca teve: amor de mãe, bem maior que qualquer tesouro na vida de qualquer pessoa.
Se você tem uma família, lute por ela, se não tem, construa a sua e dedique-se a ela como quem recebeu uma missão divina, assim, construiremos na Terra, o paraíso que Jesus prometeu no céu.

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