terça-feira, 3 de dezembro de 2019

TEORIA DOS SONHOS[1]



Allan Kardec

É realmente estranho que um fenômeno tão vulgar quanto o dos sonhos tenha sido objeto de tanta indiferença da parte da Ciência, e que ainda se esteja a perguntar a causa dessas visões. Dizer que são produtos da imaginação não é resolver a questão; é uma dessas palavras com o auxílio da qual querem explicar o que não compreendem e que nada explicam. Em todo o caso, a imaginação é um produto do entendimento. Ora, como não se pode admitir entendimento nem imaginação na matéria bruta, é preciso que se creia que a alma nisto entra em alguma coisa. Se os sonhos ainda são um mistério para a Ciência, é que ela se obstinou em fechar os olhos para a causa espiritual.
Procura-se a alma nos refolhos do cérebro, enquanto ela se ergue a cada instante à nossa frente, livre e independente, numa imensidão de fenômenos inexplicáveis tão-só pelas leis da matéria, notadamente nos sonhos, no sonambulismo natural e artificial e na dupla vista a distância; não nos fenômenos raros, excepcionais, sutis, que exigem pacientes pesquisas do sábio e do filósofo, mas nos mais vulgares; lá está ela, parecendo dizer: Olhai e me vereis; estou aos vossos olhos e não me vedes; vistes-me muitas e muitas vezes; vedes-me todos os dias; até as crianças me veem; o sábio e o ignorante, o homem de gênio e o idiota me veem, e não me reconheceis.
Mas há pessoas que parecem ter medo de olhá-la de frente, e de adquirir a prova de sua existência. Quanto aos que a procuram de boa-fé, até hoje lhes faltou a única chave com a qual a teriam reconhecido. Esta chave o Espiritismo acaba de dar pela lei que rege as relações entre o mundo corporal e o mundo espiritual. Auxiliado por esta lei e pelas observações sobre que se apoia, ele dá dos sonhos a mais lógica explicação jamais fornecida; demonstra que o sonho, o sonambulismo, o êxtase, a dupla vista, o pressentimento, a intuição do futuro, a penetração do pensamento não passam de variantes e de graus de um mesmo princípio: a emancipação da alma, mais ou menos desprendida da matéria.
Em relação aos sonhos, dá ele conta precisa de todas as variedades que apresentam? Não, ainda não; possuímos o princípio, e já é muito; os que podemos explicar pôr-nos-ão no caminho dos outros; sem dúvida ainda nos faltam alguns conhecimentos, que adquiriremos mais tarde. Não há uma única ciência que, de um salto, tenha desenvolvido todas as suas consequências e aplicações; elas não poderão completar-se senão por observações sucessivas.
Ora, nascido ontem, o Espiritismo está como a Química nas mãos dos Lavoisier e dos Berthollet, seus primeiros criadores; estes descobriram as leis fundamentais. As primeiras balizas fincadas puseram na via de novas descobertas.
Entre os sonhos uns há que têm um caráter de tal modo positivo que, racionalmente, não poderiam ser atribuídos apenas a um jogo da imaginação; tais são aqueles nos quais se adquire, ao despertar, a prova da realidade do que se viu, e em que absolutamente não se pensava. Os mais difíceis de explicar são os que nos apresentam imagens incoerentes, fantásticas, sem realidade aparente. Um estudo mais aprofundado do singular fenômeno das criações fluídicas sem dúvida nos porá no caminho.
Esperando, eis uma teoria que parece avançar um passo na questão. Não a damos como absoluta, mas como fundada na lógica e podendo ser objeto de estudo. Ela nos foi dada por um dos nossos melhores médiuns, em estado de sonambulismo muito lúcido, por ocasião do fato seguinte:
Instado pela mãe de uma jovem a lhe dar notícias da filha, que estava em Lyon, ele a viu deitada e adormecida, e descreveu com exatidão o apartamento em que se achava. Essa jovem, de dezesseis anos, era médium escrevente; a mãe perguntou se ela tinha aptidão para tornar-se médium vidente. Esperai, disse o sonâmbulo, é preciso que eu siga o rasto de seu Espírito, que neste momento não está no corpo. Ela está aqui, na Villa Ségur, na sala onde estamos, atraída pelo vosso pensamento; ela vos vê e vos escuta. Para ela é um sonho, do qual não se recordará ao despertar.
Pode-se, acrescenta ele, dividir os sonhos em três categorias, caracterizadas pelo grau da lembrança que resta no estado de desprendimento no qual se acha o Espírito. São:
1º – Os sonhos provocados pela ação da matéria e dos sentidos sobre o Espírito, isto é, aqueles em que o organismo representa um papel preponderante pela união mais íntima entre o corpo e o Espírito. Deles nos lembramos claramente e, por pouco desenvolvida que seja a memória, conservamos uma impressão durável.
2º – Os sonhos que podem ser chamados mistos, participam ao mesmo tempo da matéria e do Espírito. O desprendimento é mais completo. Deles nos lembramos ao acordar, para os esquecer quase que instantaneamente, a menos que alguma particularidade venha despertar a sua lembrança.
3º – Os sonhos etéreos ou puramente espirituais, são produzidos apenas pelo Espírito, que está desprendido da matéria, tanto quanto o pode estar durante a vida do corpo. Deles não nos recordamos; ou, se restasse uma vaga lembrança do que sonhamos, nenhuma circunstância poderia trazer à memória os incidentes do sono.

O sonho atual dessa jovem pertence à terceira categoria. Ela não se lembrará dele. Foi conduzida aqui por um Espírito muito conhecido do mundo espírita lionês e, mesmo, do mundo espírita europeu (o sonâmbulo-médium descreve o Espírito Cárita). Ele a trouxe com o objetivo de que ela conserve, se não uma lembrança precisa, um pressentimento do bem que se pode haurir de uma crença firme, pura e santa, e do bem que se pode fazer aos outros, fazendo-o a si mesmo.
Ela diz à mãe que, caso se lembrasse tão bem em seu estado normal quanto se lembra agora de suas encarnações precedentes, não demoraria muito tempo no estado estacionário em que está, pois vê claramente e pode avançar sem hesitação, ao passo que no estado ordinário temos uma venda sobre os olhos.
Ela diz aos assistentes: Obrigado por vos terdes ocupado de mim. Depois beija sua mãe. Como é feliz! acrescenta o médium, terminando, como é feliz com este sonho, do qual não se lembrará, mas que, nem por isso, deixará de lhe causar uma impressão salutar!
São esses sonhos inconscientes que proporcionam essas sensações indefiníveis de contentamento e felicidade, de que não nos damos conta, e que são um antegozo daquilo de que desfrutam os Espíritos felizes.
Deduz-se daí que o Espírito encarnado pode sofrer transformações que modificam suas aptidões. Um fato que talvez não tenha sido suficientemente observado vem em apoio da teoria acima. Sabe-se que o esquecimento ao acordar é um dos caracteres do sonambulismo. Ora, do primeiro grau de lucidez o Espírito passa, por vezes, a um grau mais elevado, que é diferente do êxtase, e no qual adquire novas ideias e percepções mais sutis. Saindo deste segundo grau para entrar no primeiro, não se lembrará do que disse, nem do que viu; depois, passando deste grau para o estado de vigília, há um novo esquecimento. Uma coisa a notar é que há lembrança do grau superior ao grau inferior, enquanto há esquecimento do grau inferior para o superior.
É, pois, bem evidente que entre os dois estados sonambúlicos de que acabamos de falar, passa-se algo análogo ao que ocorre entre o estado de vigília e o primeiro grau de lucidez; que o que se passa influi sobre as faculdades e as aptidões do Espírito. Dir-se-ia que do estado de vigília ao primeiro grau o Espírito é despojado de um véu; que do primeiro ao segundo grau é despojado de um segundo véu. Não mais existindo esses véus nos graus superiores, o Espírito vê o que está abaixo e se lembra; descendo a escala, os véus se refazem sucessivamente e lhe ocultam o que está acima, fazendo que deles perca a lembrança. Às vezes a vontade do magnetizador pode dissipar esse véu fluídico e restituir a lembrança.
Como se vê, há uma grande analogia entre esses dois estados sonambúlicos e as diversas categorias de sonhos descritos acima. Parece-nos mais que provável que, num caso e noutro, o Espírito se ache numa situação idêntica. A cada degrau que sobe, eleva-se acima de uma camada de névoa; sua visão e suas percepções são mais claras.




[1] Revista Espírita – Julho/1865 – Allan Kardec

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