Em nossa reunião da noite de 7
de Junho de 1956, nossos Benfeitores trouxeram-nos ao recinto o Espírito de A.
C., que nos contou a sua significativa experiência, aqui transcrita.
Oxalá possa ela acordar-nos para
mais ampla exatidão, no desempenho de nossos compromissos, na esfera da
caridade que, realmente, seja onde for e com quem for, é nosso simples dever.
Espiritismo... Sou espírita... Fora da caridade não há salvação... Maravilhosas
palavras!...
Contudo, quase sempre chegamos a perceber-lhes o divino significado
depois da morte, com o desapontamento de uma pessoa que perdeu o trem para uma
viagem importante, guardando, inutilmente, o bilhete na mão.
Utilizei-me de um corpo físico durante cinquenta e cinco anos, na
derradeira romagem física.
Era casado. Residia no Rio de Janeiro. Mantinha a esposa e duas filhas.
Desempenhava a função de operoso corretor de imóveis. E era espírita à maneira
de tantos...
Nunca me interessei por qualquer meditação evangélica. Não cheguei a
conhecer patavina da obra de Allan Kardec. Entretanto, intitulava-me
espírita...
Frequentava sessões. Aplaudia conferencistas. Acompanhava as orações
dos encarnados e as preleções dos desencarnados, com a cabeça pendida em
reverência.
Todavia, encerrados os serviços espirituais, tinha sempre afeiçoados no
recinto, a quem oferecer terras e casas, a quem vender casas e terras...
E o tempo foi passando.
Cuidava devotadamente do meu conforto doméstico. Meu rico dinheiro era
muito bem empregado. Casa bem posta, mesa farta, tudo do bom e do melhor...
Às vezes, um companheiro mais persistente na fé convidava-me a atenção
para o culto do Evangelho no lar. Mas eu queria lá saber disso?... A meu ver,
isso daria imenso trabalho.
Minha mulher dedicava-se à vida que lhe era própria.
Minhas filhas deveriam crescer tão livremente como desejassem, e
qualquer reunião de ordem moral, em minha casa, era indiscutivelmente um
tropeço ao meu bem-estar.
E o tempo foi passando...
Fui detentor de uma bronquite que me recebia a melhor enfermagem. Era o
dodói de meus dias.
Se chamado a qualquer atividade de beneficência, era ela o meu grande
escolho.
No verão, estimava a sombra e a água fresca. No inverno, preferia o
colchão de mola e o cobertor macio.
E o tempo foi passando...
Sessões semanais bem frequentadas... Orações bem ouvidas...
Negócios bem feitos...
Aos cinquenta, e cinco anos, porém, um edema do pulmão arrebatou-me o
corpo. Francamente, a surpresa foi grande. Apavorado, compreendi que eu não
merecia o interesse de quem quer que fosse, a não ser das entidades galhofeiras
que me solicitaram a presença em atividades criminosas que não condiziam com a
minha vocação.
Entre o Centro Espírita e o lar, minha mente conturbada passou a viver
uma experiência demasiado estranha...
Em casa, outros assuntos não surgiam a meu respeito que não fossem o
inventário para a indispensável partilha dos bens.
E, no Centro, as entidades elevadas e amigas surgiam tão intensivamente
ocupadas aos meus olhos, que de todo não me era possível qualquer
interferência, nem mesmo para fazer insignificante petitório.
Para ser verdadeiro, não havia cultivado a oração com sentimento e, por
isso mesmo, passei a ser uma espécie de estrangeiro em mim próprio, ilhado no
meu grande egoísmo.
Ausentando-me do santuário de minha suposta fé, interiormente
desapontado, encontrava o circulo doméstico, e, por vezes, ensaiava, na calada
da noite, surpreender a companheira com meus apelos ; entretanto, nos primeiros
tentames senti tamanha repulsão da parte dela, a exprimir-se na gritaria mental
com que me induzia a procurar os infernos, que eu, realmente, desisti da
experiência.
Minhas filhas, visitadas por minha presença, não assinalavam, de modo
algum, qualquer pensamento meu, porquanto se encontravam profundamente
engolfadas na ideia da herança.
Não havia outra recordação para o carinho paterno que não fosse à
herança... A herança... A herança... Passei a viver, assim, dentro de casa, a
maneira de um cão batido por todos, porque, francamente, não dispunha de outro
clima que me atraísse.
Apenas o calor de meu lar sossegava-me as ânsias.
Alguns meses decorreram sobre a difícil posição em que me encontrava.
Alimentava-me e dormia nas horas certas, copiando os meus antigos
hábitos.
Certa noite, porém, tive tanta sede de espiritualidade, tanto anseio de
confraternização que, vagueando na rua, procurei o Alto da Tijuca para meditar,
chorar e penitenciar-me... Minha lágrimas, contudo, eram dessa vez tão sinceras
que alguém se compadeceu de mim. Surgiu-me à frente um irmão dos infortunados
e, com muita bondade, reconduziu-me ao velho templo espírita a que antigamente
me afeiçoara.
Era noite avançada, mas o edifício estava repleto. Um mensageiro do
Plano Superior dirigia grande assembleia. E o enfermeiro que, paciente, me
encaminhara, esclareceu-me que ali se verificava o encontro de um benfeitor do
Alto com os desencarnados que se caracterizavam por mais ampla sede de luz.
Esse Instrutor penetrava-nos a consciência, anotando o mérito ou o
demérito de que éramos portadores para demandar a suspirada renovação de clima.
Muitos irmãos eram ouvidos pessoalmente.
Após duas horas de expectativa, chegou minha vez.
Pelo olhar daquele Espírito extremamente lúcido, deduzi que nenhum
pensamento meu lhe seria ocultado. Aqueles olhos varriam os mais fundos
escaninhos do meu ser. Anotei meu problema. Desejava mudança. Ansiava melhorar
minha triste situação.
Perguntou-me o Instrutor qual havia sido o meu modo de vida.
Creio que ele não tinha necessidade de indagar coisa alguma, no
entanto, a casa acolhia numerosos necessitados e, a meu ver, a lição
administrada a qualquer de nós deveria servir a outrem.
Aleguei, preocupado, que havia protegido corretamente a família terrestre
e que havia preservado a minha saúde com segurança. Ele sorriu e respondeu que
semelhantes misteres eram comuns aos próprios animais.
Pediu que, de minha parte, confessasse algum ato que pudesse enobrecer
as minhas palavras, algo que lhe fosse apresentado como justificativa de
auxilio às minhas pretensões de trabalho, melhoria e ascensão.
Minha memória vasculhou os anos vividos, inutilmente... Não encontrei
um ato sequer, capaz de alicerçar-me a esperança. Não que o serviço de corretor
de imóveis seja indigno, mas é que eu capitalizava o dinheiro haurido em minhas
lides profissionais, qual terra seca coletando a água da chuva: chupava... Chupava...
Chupava... Sem restituir gota alguma. Depois de agoniados instantes, lembrei-me
de que em certa ocasião encontrara três amigos de nosso templo, na Praça da
Bandeira, a insistirem comigo para que lhes acompanhasse a jornada caridosa até
um lar humilde, na Favela do esqueleto.
Fiz tudo para desvencilhar-me do convite que me pareceu aborrecido e
imprudente. Mas o grupo, que se constituía de uma senhora e dois companheiros,
desenvolveu sobre mim tamanho constrangimento afetivo, que não tive outro
recurso senão atender à carinhosa exigência.
Dai a alguns minutos, varávamos estreita choupana de lata velha, onde
fomos defrontados por um quadro desolador. Pobre mulher tuberculosa agonizava. Nosso
conjunto, entretanto, logo à chegada, fragmentou-se, pois a companheira foi
convocada pelo esposo ao retorno imediato e o outro amigo deu-se pressa em
voltar, pretextando serviço urgente. Não pude, todavia, imitar-lhes a decisão.
Os olhos da enferma eram de tal modo suplicantes que uma força
irresistível me fez dobrar os joelhos para socorrê-la no leito, mal amanhado no
chão.
Perguntei-lhe o nome. Gaguejou... Gaguejou... E informou chamar-se
Maria Amélia da Conceição.
Seus familiares, uma velha e dois meninos que se assemelhavam a
cadáveres ambulantes, não lhe podiam prestar auxílio. Inclinei-me e
coloquei-lhe a cabeça suarenta nos braços, tentando suavizar-lhe a dispneia ;
no entanto, depois de alguns minutos, a infeliz, numa golfada de sangue,
entregou-se à morte. Senti-me sumamente contrafeito.
Mas para ver-me livre de quadro tão deprimente, pela primeira vez
arranquei da bolsa uma importância mais farta, transferindo-a para as mãos da
velhinha, com vistas aos funerais. Afastei-me, irritadiço.
E, antes da volta a casa, procurei um hotel para um banho de longo
curso, com desinfetante adequado. E, no outro dia, consultei um médico sobre o
assunto, com receio de contágio...
O painel que o tempo distanciara assomou-me à lembrança, mas tentei
sufocá-la na minha imaginação, pois aquele era um ato que eu havia levado a
efeito constrangidamente, sem mérito algum, de vez que o socorro a Maria Amélia
da Conceição fora simplesmente para mim um aborrecimento indefinível...
Contudo, enquanto a minha mente embatucada não conseguia resposta,
desejando asfixiar a indesejável reminiscência, alguém avançou da assembleia e
abraçou-me. Esse alguém era a mesma mulher da triste vila do Esqueleto. Maria
Amélia da Conceição vinha em meu socorro.
Pediu ao benfeitor que nos dirigia recompensasse o meu gesto,
notificando que eu lhe havia ofertado pensamentos de amor na extrema hora do
corpo e que lhe havia doado, sobretudo, um enterro digno com o preço de minha
dedicação fraternal, como se a fraternidade, algum dia, houvesse andado em
minhas cogitações...
As lágrimas irromperam-me dos olhos e, desde aquela hora, para
felicidade minha, retornei ao trabalho, sendo investido na tarefa de amparar os
agonizantes, tarefa essa em cujo prosseguimento venho encontrando abençoadas
afeições, reerguendo-me para luminoso porvir.
Bastou um simples ato de amor, embora constrangidamente praticado, para
que minha embaraçosa inquietação encontrasse alívio.
É por isso que, trazido à vossa reunião de ensinamento e serviço, sou
advertido a contar-vos minha experiência dolorosa e simples, para reafirmar-vos
o imperativo de sermos espíritas pelo coração e pela alma, pela vida e pelo
entendimento, pela teoria e pela prática, porque em verdade, como espíritas, à
luz do Espiritismo Cristão, podemos e devemos fazer muito na construção sublime
do bem.
Por esse motivo, concluo reafirmando:
Espiritismo... Sou espírita... Fora da caridade não há salvação... Maravilhosas
palavras!...
Que Jesus nos abençoe.
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