terça-feira, 15 de janeiro de 2019

UM DRAMA ÍNTIMO – Apreciação Moral[1]





O Monde illustré, de 7 de fevereiro de 1863, conta o seguinte drama de família que, com justa razão, comoveu a sociedade de Florença. Assim começa o autor a sua narração:

Eis a história. Ele era um velho de setenta e dois anos; ela, uma jovem de vinte. Haviam casado há três anos... Não vos revolteis! o velho conde, originário de Viterbo, era absolutamente sem família, o que é muito estranho para um milionário! Amália não era sem família, mas antes sem milhões. Para compensar as coisas, quase a tendo visto nascer, sabendo-a de bom coração e de espírito encantador, ele tinha dito à mãe: ‘Deixai-me paternalmente casar com Amália; durante alguns anos ela cuidará de mim; e depois... ‘.
Fez-se o casamento. Amália compreende os seus deveres; cerca o velho dos mais assíduos cuidados e lhe sacrifica todos os prazeres de sua idade. Tendo o conde ficado cego e quase paralítico, ela passava longas horas do dia a lhe fazer companhia, leituras, a lhe contar tudo quanto o podia distrair e encantar. ‘Como sois boa, minha cara filha! ’, exclamava ele muitas vezes, tomando-lhe as mãos e atraindo-a para depor sobre sua fronte o casto e doce beijo da ternura e do reconhecimento.
Entretanto, um dia notou que Amália se afasta de sua pessoa; que, embora sempre assídua e cheia de solicitude, parece temer sentar-se ao seu lado. Uma suspeita lhe atravessa o espírito.
Uma noite, quando ela fazia a leitura, ele lhe agarra o braço, a atrai para si e enlaça-lhe a cintura; então, soltando um grito terrível, cai desmaiado de emoção e de cólera aos pés da jovem! Amália perde a cabeça; lança-se para a escada, atinge o andar mais alto da casa, precipita-se pela janela e cai despedaçada. O velho não sobreviveu mais que seis horas a esta catástrofe.

Haverão de perguntar que relação pode ter esta história com o Espiritismo. Vê-se aí a intervenção de alguns Espíritos maliciosos? Essas relações estão nas deduções que o Espiritismo ensina a tirar das coisas aparentemente mais vulgares da vida.
Enquanto o céptico ou o indiferente não vê num fato senão uma oportunidade para exercitar sua verve zombeteira, ou passa ao lado sem o notar, o espírita o observa e dele tira instrução, remontando às causas providenciais, sondando-lhes as consequências para a vida futura, conforme os exemplos que as relações de além-túmulo lhe oferecem da Justiça de Deus.
No fato acima relatado, em vez de simples anedota divertida, entre o velho ele e a jovem ela, o Espiritismo vê duas vítimas. Ora, como o interesse pelos infelizes não se detém no limiar da vida presente, mas os segue na vida porvindoura, na qual acredita, ele pergunta se aí não há um duplo castigo para uma dupla falta e se ambos não foram punidos por onde pecaram. Vê um suicídio; e como sabe que esse crime é sempre punido, pergunta qual o grau de responsabilidade em que incorre aquele que o cometeu.
Vós que acreditais que o Espiritismo só se ocupa de duendes, de aparições fantásticas, de mesas girantes e de Espíritos batedores, se vos désseis ao trabalho de estudá-lo, saberíeis que ele toca em todas as questões morais. Esses Espíritos, que vos parecem tão ridículos, e que, entretanto, não passam das almas dos homens, dão a quem observa as suas manifestações a prova de que ele próprio é Espírito, momentaneamente ligado a um corpo; vê na morte não o fim da vida, mas a porta da prisão que se abre ao prisioneiro para restituí-lo à liberdade. Aprende que as vicissitudes da vida corporal são as consequências de suas próprias imperfeições, isto é, das expiações pelo passado e pelo presente, e provações para o futuro. Daí é naturalmente conduzido a não ver o cego acaso nos acontecimentos, mas a mão da Providência. Para ele a reta sentença: A cada um segundo as suas obras não só acha a sua aplicação no além-túmulo, mas, também, até mesmo na Terra.
Eis por que tudo o que se passa à sua volta tem o seu valor, a sua razão de ser; ele o estuda para dele tirar proveito e regular sua conduta com vistas ao futuro que, para ele, é uma realidade demonstrada. Remontando às causas dos infortúnios que o afligem, aprende a não mais acusar a sorte ou a fatalidade por tais desgraças, mas a si mesmo.
Não tendo esta digressão outro objetivo a não ser mostrar que o Espiritismo se ocupa de algo mais que de Espíritos batedores, voltemos ao nosso assunto. Já que o fato foi tornado público, é permitido apreciá-lo, levando-se em conta que não designamos ninguém nominalmente.
Se se examinar a coisa do ponto de vista puramente mundano, a maioria só verá nele a consequência muito natural de uma união desproporcionada e atirará no velho a pedra do ridículo como oração fúnebre; outros acusarão de ingratidão a jovem mulher que enganou a confiança do homem generoso que queria enriquecê-la.
Mas, para o espírita, ela tem um lado mais sério, pois aí busca um ensinamento. Então perguntaremos se, na ação do velho, não haveria mais egoísmo que generosidade ao submeter uma moça, quase criança, à sua caducidade, por laços indissolúveis, numa idade em que, antes, deveria pensar no recolhimento, e não nos prazeres da vida? Se, impondo-lhe esse duro sacrifício, não era fazê-la pagar bem caro a fortuna que ele lhe prometera? Não há verdadeira generosidade sem desinteresse. Quanto à jovem, não podia aceitar esses laços senão com a perspectiva de vê-los rompidos em breve, já que nenhum motivo de afeição a ligava ao velho. Havia, pois, cálculo de ambos os lados e esse cálculo foi frustrado; Deus não permitiu que nenhum deles o aproveitasse, infligindo a desilusão a um e a vergonha ao outro, que os mataram a ambos.
Resta a responsabilidade do suicídio, que jamais fica impune, mas que, muitas vezes, encontra circunstâncias atenuantes.
A mãe da moça, para encorajá-la a aceitá-lo, havia dito: “Com esta grande fortuna farás a felicidade do homem pobre que amares. Enquanto esperas, honra e respeita esse grande coração que quis fazer-te sua herdeira, durante o tempo que lhe restar de vida.”
Era tomá-la pelo lado sensível; mas, para fruir dos benefícios desse grande coração, que teria sido muito maior se a tivesse dotado sem interesse, era preciso especular sobre a duração de sua vida. A jovem errou ao ceder, mas a mãe errou mais em excitá-la e certamente é ela que incorrerá na maior parte da responsabilidade do suicídio da filha. Assim, aquele que se mata para escapar à miséria é culpado da falta de coragem e de resignação, mas, muito mais culpado ainda, é o causador primário desse ato de desespero.
Eis o que o Espiritismo ensina, pelos exemplos que põe aos nossos olhos e aos daqueles que estudam o mundo invisível. Quanto à mãe, sua punição começa nesta vida: primeiro pela morte horrível da filha, cuja imagem talvez venha persegui-la e torturá-la de remorsos; depois, pela inutilidade do sacrifício que provocou, uma vez que a fortuna do marido, morto seis horas depois de sua mulher, vai para os colaterais afastados, e ela não a aproveitará.
Os jornais estão cheios de casos de todos os gêneros, louváveis ou censuráveis, que, como este que acabamos de referir, podem oferecer assuntos para estudos morais sérios; para os espíritas é uma mina inesgotável de observações e instruções. O Espiritismo lhes dá os meios de aí descobrir o que se passa despercebido para os indiferentes e, mais ainda, para os cépticos, que só veem os fatos picantes, sem lhes procurar nem as causas, nem as consequências. Para os grupos, é um elemento fecundo de trabalho, no qual os Espíritos protetores não deixarão de auxiliá-los, dando a sua apreciação.




[1] Revista Espírita – Fevereiro/1864 – Allan Kardec

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