terça-feira, 18 de setembro de 2018

Manifestações Físicas Espontâneas - O padeiro de Dieppe[1]




Os fenômenos pelos quais os Espíritos podem manifestar sua presença são de duas naturezas, que se designam pelos nomes de manifestações físicas e manifestações inteligentes.
Pelas primeiras, os Espíritos atestam sua ação sobre a matéria; pelas segundas, revelam um pensamento mais ou menos elevado, conforme seu grau de depuração. Umas e outras podem ser espontâneas ou provocadas. São provocadas quando solicitadas pelo desejo e obtidas com o auxílio de pessoas dotadas de uma aptidão especial, isto é, dos médiuns. São espontâneas quando ocorrem naturalmente, sem nenhuma participação da vontade e, muitas vezes, na ausência de qualquer conhecimento e mesmo de qualquer crença espírita. É a esta ordem que pertencem certos fenômenos que não podem ser explicados pelas causas físicas ordinárias. Entretanto, não nos devemos apressar, como já temos dito, em atribuir aos Espíritos tudo quanto é insólito e não se compreende. Nunca insistiríamos demais neste ponto, a fim de nos precavermos contra os efeitos da imaginação e, muitas vezes, do medo.
Repetimos:
Quando um fenômeno extraordinário se produz, o primeiro pensamento deve ser o de que tenha uma causa natural, por ser a mais frequente e a mais provável; tais são, sobretudo, os ruídos e mesmo certos movimentos de objetos. O que se precisa fazer, neste caso, é buscar a causa, sendo provável que a encontremos muito simples e muito vulgar.
Dizemos mais:
O verdadeiro e, por assim dizer, único sinal de intervenção dos Espíritos é o caráter intencional e inteligente do efeito produzido, quando a impossibilidade de uma intervenção humana esteja perfeitamente demonstrada. Nessas condições, raciocinando conforme o axioma de que todo efeito tem uma causa, e que todo efeito inteligente deve ter uma causa inteligente, torna-se evidente que, se a causa não estiver nos agentes ordinários dos efeitos materiais, estará fora desses mesmos agentes; que se a inteligência que age não for humana, é preciso que se encontre fora da Humanidade. Haverá, então, inteligências extrahumanas?
Isso parece provável. Se certas coisas não são e não podem ser obra dos homens, devem ser obra de alguém. Ora, se esse alguém não for um homem, parece que, necessariamente, deve estar fora da Humanidade; se não o vemos deve ser invisível. É um raciocínio tão peremptório e de tão fácil compreensão quanto o do Sr. de La Palisse.
Quais são, então, essas inteligências? Anjos ou demônios? E de que modo inteligências invisíveis podem agir sobre a matéria visível?
– É o que sabem perfeitamente aqueles que se aprofundaram na ciência espírita, ciência que, como as outras, não é aprendida num piscar de olhos, nem pode ser resumida em algumas linhas. Aos que fazem tal pergunta, diremos apenas isto: Como o vosso pensamento, que é imaterial, move à vontade o vosso corpo, que é material? Acreditamos que eles não se embaraçarão na solução deste problema e que, se rejeitarem a explicação dada pelo Espiritismo desse fenômeno tão vulgar, é que têm outra muito mais lógica a opor. Mas até agora não a conhecemos.
Vamos aos fatos que motivaram estas observações.
Vários jornais, entre outros o Opinion Nationale, de 14 de fevereiro último, e o Journal de Rouen, de 12 do mesmo mês, relatam o seguinte fato, conforme o Vigie de Dieppe. Eis o artigo do Journal de Rouen:
O Vigie de Dieppe publica a seguinte carta, de seu correspondente de Grandes-Ventes. Em nosso número de sexta feira já assinalamos uma parte dos fatos hoje relatados neste jornal; mas a emoção provocada na comuna por esses extraordinários acontecimentos nos leva a dar novos detalhes, contidos nesta correspondência.
 Hoje sorrimos das histórias mais ou menos fantásticas dos velhos tempos que se foram, não desfrutando os pretensos feiticeiros da atualidade de grande veneração. Não são mais acreditados em Grandes-Ventes que alhures. Contudo, nossos velhos preconceitos ainda têm alguns adeptos entre os aldeões, de modo que a cena verdadeiramente extraordinária, que acabamos de testemunhar, é bem adequada para fortalecer a sua crença supersticiosa.
Ontem pela manhã, o Sr. Goubert, um dos padeiros da nossa vila, seu pai, que lhe serve de operário, e um jovem aprendiz de dezesseis a dezessete anos, iam começar o trabalho rotineiro, quando perceberam que vários objetos deixavam espontaneamente seu lugar para se lançarem na masseira. Tiveram, assim, que refugar sucessivamente a farinha que trabalhavam, vários pedaços de carvão, dois pesos de tamanhos diversos, um cachimbo e uma vela. Apesar de sua extrema surpresa, continuaram a tarefa e tinham chegado a virar o pão, quando, de repente, uma porção de massa de dois quilos, escapando das mãos do jovem auxiliar, foi lançada a alguns metros de distância. Isto foi o prelúdio e como que a senha da mais estranha desordem. Então eram cerca de nove horas e, até o meio-dia, foi positivamente impossível ficar no forno e no aposento vizinho. Tudo foi posto em grande desordem, derrubado e quebrado. Os pães, atirados no meio da sala com as pranchas que lhes serviam de base, entre restos de toda sorte, foram completamente perdidos. Mais de trinta garrafas repletas de vinho quebraram-se sucessivamente e, enquanto o bolinete da cisterna rodava sozinho com extrema velocidade, as brasas, as pás, os cavaletes e os pesos saltavam no ar e executavam as mais diabólicas evoluções.
Em torno do meio-dia o tumulto cessou pouco a pouco e, algumas horas depois, quando tudo entrou em ordem e os utensílios repostos em seus lugares, o chefe da casa pôde retomar os trabalhos habituais.
Este bizarro acontecimento causou ao Sr. Goubert um prejuízo de no mínimo 100 francos.
A este mesmo relato o Opinion Nationale acrescenta as seguintes reflexões:
Reproduzindo esta história singular, seria uma injúria aos nossos leitores preveni-los contra os fatos sobrenaturais que ela relata. Sabemos perfeitamente não se tratar de uma história do nosso tempo e que poderá escandalizar alguns dos doutos leitores do Vigie. No entanto, por mais inverossímil que pareça, não é menos verdadeira e, se necessário, cem pessoas poderão certificar-lhe a exatidão.
Confessamos não compreender bem as reflexões do jornalista, que parece contradizer-se. Por um lado, diz aos leitores que se previnam contra os fatos sobrenaturais que a carta relata, e termina dizendo que “por mais inverossímil que pareça, essa história não é menos verdadeira e, se necessário, cem pessoas poderiam certificar-lhe a exatidão”. De duas, uma: ou é verdadeira, ou é falsa. Se falsa, tudo está dito; mas se é verdadeira, como atesta o Opinion Nationale, o fato revela uma coisa muito grave para ser tratada um tanto levianamente. Ponhamos de lado a questão dos Espíritos e nela não vejamos senão um fenômeno físico. Não é bastante extraordinária para merecer a atenção de observadores sérios? Que, pois, os sábios se ponham à obra e, perscrutando os arquivos da Ciência, nos deem uma explicação racional, irrefutável, apontando a razão de todas as circunstâncias. Se não o podem, somos obrigados a admitir que não conhecem todos os segredos da Natureza. E se apenas a ciência espírita dá a solução, é preciso optar entre a teoria que explica e a que nada explica.
Quando fatos desta natureza são relatados, nosso primeiro cuidado, antes mesmo de inquirir da realidade, é o de examinar se são ou não possíveis, conforme o que conhecemos da teoria das manifestações espíritas. Citamos alguns, demonstrando-lhes a absoluta impossibilidade, notadamente a história que narramos no número de fevereiro de 1859, segundo o Journal des Débats, sob o título de Meu amigo Hermann, à qual certos pontos da Doutrina Espírita poderiam ter dado uma aparência de probabilidade. Sob este ponto de vista, os fenômenos que se passaram com o padeiro dos arredores de Dieppe nada têm de mais extraordinário que muitos outros, perfeitamente verificados, cuja solução completa é dada pela ciência espírita. Aos nossos olhos, portanto, se o fato não fosse verdadeiro, seria possível. Pedimos a um de nossos correspondentes de Dieppe, em quem temos plena confiança, que verificasse a realidade do fato. Eis o que nos responde:
Hoje posso vos dar todas as informações que desejais, pois me informei em boa fonte. O relato do Vigie é a exata verdade; inútil relatar todos os fatos. Parece que vários homens de ciência vieram de muito longe para se darem conta desses fatos extraordinários, que não poderão explicar se não tiverem nenhuma noção da ciência espírita. Quanto aos nossos camponeses, estão confusos. Uns dizem que são feiticeiros; outros, que é porque o cemitério mudou de lugar e sobre o antigo sítio fizeram construções; e os espertalhões, que passam entre os seus por tudo saber, sobretudo se são militares, terminam dizendo: “Palavra de honra! Não sei como isso pode acontecer”. Inútil dizer que não falta quem atribua grande parte de tudo isso ao diabo. Para fazer com que a gente do povo compreenda todos esses fenômenos, seria necessário iniciá-los na verdadeira ciência espírita, único meio de arrancar dentre eles a crença nos feiticeiros e todas as ideias supersticiosas, que ainda por muito tempo representarão o maior obstáculo à sua moralização.
Terminaremos com uma última observação.
Ouvimos algumas pessoas dizerem que não queriam ocupar-se de Espiritismo, com receio de atrair os Espíritos e provocar manifestações do gênero da que acabamos de relatar.
Não conhecemos o padeiro Goubert, mas cremos poder afirmar que nem ele, nem seu filho, nem seu ajudante jamais se ocuparam com os Espíritos. É mesmo de notar que as manifestações espontâneas se produzem preferencialmente entre pessoas que nenhuma ideia possuem do Espiritismo, prova evidente de que os Espíritos vêm sem ser chamados. Dizemos mais: O conhecimento esclarecido dessa ciência é o melhor meio de nos preservarmos dos Espíritos importunos, porque indica a única maneira racional de os afastar.
Nosso correspondente está perfeitamente certo ao dizer que o Espiritismo é um remédio contra a superstição. Não será, com efeito, uma ideia supersticiosa, a crença de que esses fenômenos estranhos se devem ao deslocamento do cemitério? A superstição não consiste na crença em um fato, quando é verificado, mas na causa irracional atribuída ao fato. Está, sobretudo, na crença em pretensos meios de adivinhação, no efeito de certas práticas, na virtude dos talismãs, nos dias e horas cabalísticos etc., coisas cujo absurdo e ridículo o Espiritismo demonstra.




[1] Revista Espírita – Março/1860 – Allan Kardec

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