John Bramblitt
Um de nossos correspondentes de
Maine-et-Loire, o Dr. C..., transmitiu-nos o seguinte fato:
Eis um curioso exemplo da faculdade mediúnica aplicada ao
desenho, e que se manifestou vários anos antes que fosse conhecido o
Espiritismo, e mesmo antes das mesas girantes.
Três semanas atrás, estando em Bressuire, explicava o
Espiritismo e as relações dos homens com o mundo invisível a um advogado amigo
meu, que dele não conhecia patavina. Ora, eis o fato que ele me contou como
tendo grande relação com o que eu lhe dizia. Em 1849, disse ele, fui com um
amigo visitar o vilarejo de Saint-Laurent-sur-Sèvres e seus dois conventos, um
de homens, outro de mulheres. Fomos recebidos da maneira mais cordial possível
pelo Padre Dallain, superior do primeiro e que também tinha autoridade sobre o
segundo.
Depois de ter visitado os dois conventos, ele nos disse: Agora, senhores, quero vos mostrar uma das
coisas mais curiosas do convento das mulheres. Mandou trazer um álbum onde,
com efeito, admiramos aquarelas de grande perfeição. Eram flores, paisagens e
marinhas. Esses desenhos, tão bem
reunidos, disse-nos ele, foram feitos
por uma de nossas jovens religiosas que é cega. E eis o que nos contou de um encantador buquê
de rosas, com um botão azul: Há algum
tempo, em presença do marquês de La Rochejaquelein e de vários outros
visitantes, chamei a religiosa cega e pedi-lhe que se pusesse a uma mesa para
desenhar alguma coisa. Diluíram as tintas, deram-lhe papel, lápis, pincéis, e
ela imediatamente começou a pintar o buquê que vedes. Durante o trabalho
colocaram várias vezes um corpo opaco, ora um papelão, ora uma prancheta, entre
seus olhos e o papel, mas o pincel continuou a trabalhar com a mesma calma e a
mesma regularidade.
À observação de que o buquê estava um pouco franzino, ela
disse: Pois bem! Vou fazer sair um botão
da haste deste ramo. Enquanto trabalhava nessa correção, substituíram o
carmim de que se servia pelo azul; ela não percebeu a mudança e é por isso que
vedes um botão azul.
O abade Dallain,
acrescenta o narrador, era tão notável
por sua ciência e sua grande inteligência quanto por sua elevada piedade. Não
encontrei ninguém que me tivesse inspirado mais simpatia e veneração.
Em nossa opinião este fato não
prova, de modo evidente, uma ação mediúnica. Pela linguagem da jovem cega, é
certo que via, do contrário não teria dito: “Vou fazer sair um botão da haste
deste ramo”. Mas o que não é menos certo é que ela não via pelos olhos, já que
continuava seu trabalho, malgrado o obstáculo que interpunham à sua frente.
Agia com conhecimento de causa e não maquinalmente, como um médium. Parece,
pois, evidente que fosse dirigida pela segunda vista; via pelos olhos da alma,
abstração feita dos do corpo; talvez até mesmo estivesse, de maneira
permanente, num estado de sonambulismo desperto.
Fenômenos análogos foram
observados muitas vezes, mas as pessoas se contentavam em os achar
surpreendentes. Sua causa não podia ser descoberta, porque, ligados
essencialmente à alma, fazia-se necessário, primeiro, reconhecer a existência
da alma.
Mas, mesmo admitido, este ponto
ainda não era suficiente: faltava o conhecimento das propriedades da alma e o
das leis que regem suas relações com a matéria. O Espiritismo, ao nos revelar a
existência do perispírito, deu-nos a conhecer, se assim nos podemos exprimir, a
fisiologia dos Espíritos. Por aí nos foi dada a chave de uma imensidão de
fenômenos incompreendidos, qualificados, em falta de melhores razões, de
sobrenaturais por uns, e de bizarrias da Natureza por outros. Pode a Natureza
ter bizarrias? Não, porque bizarrias são caprichos. Ora, sendo a Natureza obra
de Deus, Deus não pode ter caprichos, sem o que nada seria estável no Universo.
Se há uma regra sem exceção, certamente é a que rege as obras do Criador; as
exceções seriam a destruição da harmonia universal. Todos os fenômenos se ligam
a uma lei geral e uma coisa não nos parece bizarra senão porque só observamos
de um único ponto, ao passo que, se considerássemos o conjunto, reconheceríamos
que a irregularidade daquele ponto é apenas aparente e depende de nosso
limitado ponto de vista.
Isto posto, diremos que o
fenômeno de que se trata não é maravilhoso nem excepcional. É o que vamos
tentar explicar.
No estado atual dos nossos
conhecimentos, não podemos conceber a alma sem o seu invólucro fluídico,
perispiritual. O princípio inteligente escapa completamente à nossa análise; só
o conhecemos por suas manifestações, que se dão com o auxílio do perispírito. É
pelo perispírito que a alma age, percebe e transmite. Desprendida do envoltório
corporal, a alma ou Espírito ainda é um ser complexo. Ensina-nos a teoria, de
acordo com a experiência, que a visão da alma, assim como todas as outras
percepções, é um atributo do ser inteiro. No corpo é circunscrita ao órgão da
visão, sendo-lhe preciso o concurso da luz; tudo quanto se acha no trajeto do
raio luminoso o intercepta. Não é assim com o Espírito, para o qual não há
obscuridade nem corpos opacos. A seguinte comparação pode ajudar a compreender
esta diferença.
A céu aberto, o homem recebe a
luz por todos os lados; mergulhado no fluido luminoso, o horizonte visual se
estende por toda a volta. Se estiver encerrado numa caixa, na qual for feita
uma pequena abertura, em seu redor tudo estará na obscuridade, salvo o ponto
por onde lhe chega o raio luminoso. A visão do Espírito encarnado está neste
último caso; a do Espírito desencarnado está no primeiro. Esta comparação é
justa quanto ao efeito, mas não o é quanto à causa, porque a fonte de luz não é
a mesma para o homem e para o Espírito, ou, melhor dizendo, não é a mesma luz
que lhe dá a faculdade de ver.
Assim, a cega de que se trata
via pela alma e não pelos olhos. Eis por que o anteparo colocado à frente do
desenho não a incomodava mais do que incomodaria um vidente, ante os olhos do
qual tivessem posto um cristal transparente. É também por isto que tanto podia
desenhar de noite quanto de dia. Irradiando em torno dela, tudo penetrando, o
fluido perispiritual levava a imagem, não à retina, mas à sua alma. Nesse
estado, a visão abarca tudo? Não; ela pode ser geral ou especial, conforme a
vontade do Espírito; pode ser limitada ao ponto onde ele concentra a sua atenção.
Mas, então, irão perguntar: por
que ela não percebeu a substituição da cor? Primeiro pode ser que a atenção
voltada para o lugar onde queria pôr a flor a tenha desviado da cor; aliás, é
preciso considerar que a visão da alma não se opera pelo mesmo mecanismo que a
visão corporal, e que, assim, há efeitos de que não nos poderíamos dar conta;
depois, ainda é preciso notar que nossas cores são produzidas pela refração de
nossa luz. Ora, sendo as propriedades do perispírito diferentes das de nossos
fluidos ambientes, é provável que a refração aí não produza os mesmos efeitos;
que as cores não tenham, para os Espíritos, as mesmas causas que para o
encarnado. Assim ela podia, pelo pensamento, ver rosa o que nos parece azul.
Sabe-se que o fenômeno da substituição das cores é muito frequente na visão
ordinária. O fato principal é o da visão bem constatada sem o concurso dos
órgãos da visão. Como se vê, esse fato não implica ação mediúnica, mas, também,
não exclui, em certos casos, a assistência de um Espírito estranho. Essa jovem,
pois, podia ou não ser médium, o que só um estudo mais atento teria podido
revelar.
Uma pessoa cega que gozasse
dessa faculdade seria um precioso objeto de observação. Mas, para tanto, teria
sido necessário conhecer a fundo a teoria da alma, a do perispírito e, por
conseguinte, o sonambulismo e o Espiritismo. Naquela época não se conheciam
essas coisas; mesmo hoje, não seria nos meios onde as consideram como
diabólicas que poderiam entregar-se a tais estudos. Também não é naqueles onde
se nega a existência da alma que podem fazê-lo. Dia virá, sem dúvida, em que
reconhecerão a existência de uma física espiritual, como começam a reconhecer a
existência da medicina espiritual.
[1] Revista
Espírita – Março/1864 – Allan Kardec
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