Ermance Dufaux
“O dever é o resumo prático de todas as especulações morais; é uma
bravura da alma que enfrenta as angústias da luta”.
Lázaro (Paris, 1863)
O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO – Cap. XVII, Item 7
Angústia é o sofrimento
emocional originado por alguma indefinição interna que leva ao conflito,
causando intensa aflição. Seus reflexos podem alcançar o corpo físico com dores
no peito e alteração respiratória. A intensidade da reação emocional que a criatura
terá, diante desse seu conflito, vai determinar a existência ou não de algum
prejuízo para o equilíbrio psíquico e mental. Isso ainda dependerá do maior ou
menor comprometimento da individualidade perante o tribunal da consciência, no
qual está arquivado o montante de desvarios e conquistas de suas múltiplas
vivências reencarnatórias.
Seguindo quase sempre uma linha
predefinida, os conflitos nascem do desajuste entre aquilo que a criatura quer,
aquilo que ela deve e aquilo que ela é capaz. Um descompasso entre desejo,
sentimento e escolha.
O conhecimento espírita pode
levar à angústia existencial face aos novos alvitres comportamentais de suas
lúcidas propostas. Muitos corações convidados pelas suas atrativas ideias
poderão experimentar, em graus diversos, a angústia da melhoria – o sofrimento
que reflete a luta entre um “eu real” e o “eu ideal”.
Terminantemente, quantos se
entregam ao serviço de autoburilamento, penetrarão as faixas do conflito. O
efeito mais perceptível dessa batalha interior é o sentimento de indignidade.
Porque ainda não logramos a habilidade do autoamor, costumamos ser muito
exigentes com nossas propostas de progresso moral, cultivando uma baixa
tolerância com as imperfeições e os fracassos. Uma postura de inaceitação e
cobranças intermináveis alimenta essa indignidade em direção ao perfeccionismo.
O resultado eminente desse
quadro mental é o cansaço consigo, a desmotivação com suas atividades
espiritualizantes induzindo o desejo de abandonar tudo, uma postura psicológica
de impotência levando a criatura às famosas senhas do derrotismo: “não vou dar
conta!” ou “não tem valido a pena esforçar!”, “estou cansado de viver!”. Todo
esse quadro de desastrosa penúria cria a condição mental do desânimo – o mais
cruel e sagaz dos adversários de nosso crescimento espiritual.
Querer ser melhor e não
conseguir tanto quanto gostaríamos! Eis a mais comum das angústias ao longo do
trajeto de aperfeiçoamento na vida.
O desânimo é o desejo de parar,
contudo, nosso sentimento é de querer ser alguém melhor e, para agravar, nossas
atitudes, em contraste com o desejo e o sentimento, são de fuga. Desejo,
sentimento e atitude em desconexão gerando um estado de pane. Os conflitos
criam as tensões no mundo íntimo em razão da contraposição entre esses três
fatores: o que a criatura gostaria, o que ela deve e aquilo que ela consegue.
Nesse torvelinho da vida mental,
um fenômeno é responsável por intensificar a dor emocional dos candidatos ao autoaperfeiçoamento,
ou seja, a ilusão. Em muitos casos, sofremos os impactos emocionais do erro ou
do desconforto com nossas imperfeições porque acreditamo-nos grandiosos demais,
portadores de virtudes que ainda não alcançamos, confundindo o conhecimento espírita
e a participação nas tarefas como se fossem incomparáveis saltos evolutivos.
Ilusão, ou a desconexão com sua
realidade pessoal, agrava a tormenta da angústia de melhoramento.
Decerto não deveríamos agir como
agimos em muitas ocasiões, considerando o volumoso caudal de conhecimentos e
vivências espirituais que enobrecem nossos passos, contudo, quase sempre,
sofremos culpa e desânimo perante nossas falhas porque imaginamo-nos valorosos
em demasia para, ainda, permitir que certas condutas enodoem os novos caminhos
que escolhemos.
Muito justo que nos exortemos a
melhores comportamentos face ao aprendizado espiritual que bem recentemente
começamos a angariar, todavia, muita exigência tem sido formulada aos adeptos
do Espiritismo, sem quaisquer identidades com as necessidades individuais de
sua singularidade. Mormente nascem de padrões construídos por estereótipos de
conduta. Semelhante quadro pode gerar tormenta e obsessão para quem não sabe
adequar sua realidade àquilo que aprende, sendo outra fonte costumeira de
episódios angustiantes para a alma.
Ninguém sintetizou tão bem essa
caminhada da vida interior quanto Paulo, o apóstolo dos gentios, ao mencionar:
“Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço” [2].
A grande batalha humana pela instauração do bem em si mesmo pode ser
sintetizada nessa frase.
A saga da perfeição inclui a
dolorosa luta entre aspirações e hábitos, conduzindo-nos a atitudes
desconectadas dos ideais que colhemos no campo das intenções. É o quadro,
psicológico que nomeamos como sendo angústia da melhora.
Todo aquele que assume a lenta e
desafiante tarefa da reforma íntima, inevitavelmente, será lançado a essa
vivência da alma em variados lances de intensidade. Somente acendendo a luz do
autoperdão, recomeçando quantas vezes forem necessárias, na aceitação das
atitudes enfermiças e impulsos infelizes é que edificaremos estimulante
campanha de promoção pessoal, no aprimoramento rumo à perfeição.
Reforma também exige tempo e
meditação. Por isso, não devemos recear a postura de enfrentamento do mundo
íntimo. Um acordo de pacificação interior deve existir entre nós e nossa velha
personalidade. Ao invés de cobrança e tristeza, seria mais sensato um autoexame
para verificar o que poderíamos ter feito de melhor nas ocasiões de erro, no
intuito de condicionar na mente algumas diretrizes para outras oportunidades,
nas quais novamente seremos testados naquelas mesmas deficiências que não
conseguimos desvencilhar. Proceda a uma corajosa “reconstituição do mau ato”
e analise o que poderia ter feito ou deixado de fazer para não chegar aos resultados
que te infernizam. Da mesma forma, instrui-te sempre sobre a natureza de suas
mazelas, a fim de melhor ajuizares sobre seu modus operandi. Se em nada te valer
semelhantes apontamentos, então reflete que pior ainda será se parares e decidires
por interromper o doloroso trabalho de melhoria.
Lázaro adverte-nos de forma
oportuníssima sobre o dever, definindo-o como “... uma bravura da alma que
enfrenta as angústias da luta”. Conquanto o valor do autoconhecimento, jamais
poderemos descuidar do dever que nos chama, porque somente através de seu
rigoroso cumprimento encontraremos as condições essenciais para consolidar os
reflexos novos. Somente com novos hábitos, que serão dinamizadores de novos
raciocínios e sentimentos, romperemos a pesada carapaça das enfermidades
morais, acolhendo no coração um estado de plenitude que ensejará a superação da
angústia e da depressão, do desânimo e do desamor a si.
Face a isso, somente uma
recomendação não deve sair do foco de nossas atenções: trabalhar, trabalhar e
trabalhar, sem condições e exigências – eis o buril do dever.
Na medida em que progredimos
pelas trilhas do dever e do autoconhecimento adquirimos paz íntima e domínio
mental, antídotos eficazes contra quaisquer adoecimentos da vida psíquica.
Enquanto se processam
semelhantes ações de fortalecimento, podemos ainda contar com duas medidas profiláticas
de dilatado poder em favor de nossa paz e vigilância é a oração.
Verifiquemos que a função do
vigilante é preventiva, é comunicar à sua volta que algo está sob cuidado e não
à mercê das ocorrências. A função do vigilante não é atacar. Quem vigia, o faz
para que algo não o surpreenda ou agrida. Vigilância no terreno da reforma
íntima significa estar atento ao inimigo, àquele que pode nos causar prejuízos,
nosso homem velho.
Vigiar o inimigo, no entanto, é
diferente de abater o inimigo. A maneira mais pacífica de vigiar é conquistando-o,
e só o conquistamos demonstrando a inviabilidade da guerra, fazendo fortes o
suficiente os nossos valores para que ele se sinta impotente, incapaz de ser
mais forte.
Vigilância é atenção para com as
movimentações inferiores da personalidade, e o estudo sereno das estratégias do
homem velho, requer muita disciplina.
Por sua vez, a oração é o
movimento sagrado da mente no despertamento de forças superiores. É a busca da
alma que se abre para o bem e se fortalece.
Dever, vigilância e oração –
balizas seguras que nos permitem talhar o homem novo, mesmo sob a escaldante
temperatura das velhas angústias que nos acompanham há milênios.
[1] Reforma Íntima
sem Martírio – Wanderley S. de
Oliveira
[2] ROMANOS, 7:19
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