sexta-feira, 7 de abril de 2017

Reflexo-matriz[1]


Ermance Dufaux

 
“Em resumo, naquele que nem se quer concebe a ideia do mal, já há progresso realizado; naquele a quem essa ideia acode, mas que a repele há progresso em vias de realizar-se”.

O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO – Cap. VIII, Item 7

 
Que ideia mais clara de reforma íntima pode se exarar que essa exposta acima?
Naquele que a ideia do mal não faz parte de sua bagagem mental, encontramos a transformação moral efetivada.
Allan Kardec, no entanto, no item 4, capítulo XVII, de O Evangelho Segundo o Espiritismo, deixa claro que o verdadeiro espírita seria reconhecido não só por esse aspecto moralizador, mas, igualmente, pelos esforços que emprega para domar as más inclinações; nesse ângulo encontramos o outro estágio, aquele em que a ideia do mal acode e é repelida.
Será reducionismo definir o processo renovador da vida íntima por meros critérios de aparência exterior. Ser espírita é uma vivência ética que reflete e, a um só tempo, induz profundas metamorfoses no campo da mente. Dessa forma, deixa de ser conceito religioso para alcançar o patamar de sagrada viagem pelos escaninhos da alma, através do autodescobrimento e da conduta.
No reino mental encontramos complexos mecanismos que operam a formação da personalidade, como uma “identidade temporária do Espírito” nas sendas evolutivas. Subconsciente, consciente e superconsciente são níveis que interagem em perfeita sinergia, com funções específicas. Na vida subconsciencial encontramos o reflexo e a emoção induzindo, para o consciente, o projeto das ideias que vão subconstanciar atitudes e palavras nos projetos das ideias que vão consubstanciar atitudes e palavras nos rumos da perfeição ou no cativeiro das expiações dolorosas.
Portanto, a cadeia reflexo-emotividade-ideia-ação-palavra compõem a fisiologia da alma.
Os reflexos são como “personalidades indutoras” estabelecendo o automatismo dos sentimentos externados em atitudes e palavras. Nesse circuito vivemos e decidimos, progredimos ou estacionamos. Não será incorreto, conquanto os muitos conceitos, definir personalidade como sendo “núcleos dinâmicos e gestores de sentimentos” funcionando sob automatismo mental contínuo. São essas muitas personalidades construídas nas múltiplas vivências da alma que reformam os alicerces das inclinações humanas – tendências, impulsos, desejos, intenções e hábitos.
Na usina da mente, o pensamento exerce a função de supervisão ininterrupta da rotina mental, sob a gerência da vontade, expedindo ordens de aprovação ou censura pela intervenção da inteligência, a qual decide e avalia os estímulos recebidos da vida. Somente depois dessas intrincadas operações é que são acionados os sentimentos, que esculpirão a natureza efetiva de toda essa sequência, conduzindo a alma a perceber os ditames da consciência nesse caleidoscópio de “movimentos sublimes da alma”. Por isso os pensamentos precisam ser muitos vigiados para induzirem as velhas emoções, as quais associamos as experiências da atitude, conforme os roteiros que escolhemos ao longo de milênios.
Nessa sequência de vida mental, encontramos o reflexo-matriz do interesse pessoal como sendo a origem da rotina das operações psíquicas e emocionais, as quais convergem para o que os nomeamos como personalismo – a parcela patológica do ego.
Assim declinamos porque o interesse pessoal em si é uma necessidade para o progresso. Seu excesso, no entanto, gerou essa fixação prolongada da alma no narcisismo – a paixão pelo que imaginamos ser.
Com razão asseveram os orientadores espirituais da codificação: “frequentemente, as qualidades morais são como, no objeto de cobre, a douradura que não resiste à pedra de toque. Pode o homem possuir qualidades reais, conquanto assinalem um progresso, nem sempre suportam certas provas e às vezes basta que se fira a corda do interesse pessoal para que o fundo fique a descoberto. O verdadeiro desinteresse é coisa ainda tão rara na Terra que, quando se patenteia, todos os admiram como se fora um fenômeno[2]”.
Devido a esse arcabouço psicológico do personalismo, vivemos, preponderantemente, em torno daquilo que imaginamos que somos, sustentados por convicções e hábitos que irrigam todo o “cosmo pensante” do ser com ideias e sentimentos irreais ou deturpados sobre nós mesmos. São as ilusões. Sua manifestação mais saliente é a criação de uma autoimagem superdimensionada em valores em conquistas que supomos possuir.
Lutamos há milênios com a força descomunal desse reflexo-matriz que dirige por automatismo, até mesmo, a maioria de nossas escolhas.
Em razão disso, quando temos o interesse pessoal contrariado, magoamos; quando feridos, penetramos no melindre; quando ameaçados, tombamos na insegurança; quando traídos, caímos na revolta; quando lesados, inclinamos para o revide. Entretanto, podemos mudar esse quadro, pois Freud, um dos mais célebres cientistas das ciências psíquicas, dizia que, em matéria de impulsos, depositava esperanças no futuro por considerar os seres humanos educáveis.
O desenvolvimento de novos hábitos constitui a terapêutica para nossos impulsos egoístas. A caridade, entendida como criação de relações educativas, será medida libertadora dessa escravidão dolorosa nos costumes humanos.
O treino da empatia, o aprendizado de saber ouvir, o cultivo do respeito à vida alheia, a cautela no uso das palavras dirigidas ao próximo, a sensibilidade para com os dramas humanos, as atitudes de solidariedade efetiva e renovadora são autênticos ensaios das qualidades superiores que vão, pouco a pouco, desenvolvendo o novo “interesse universal”, desenovelando as blandícias do altruísmo e do amor–reflexos celestes do Pai, nos quais todos fomos criados distantes do mal e da dor.
Quando alcançarmos esse patamar, podemos afirmar com Kardec: “Em resumo, naquele que nem sequer concebe a ideia do mal já há progresso”.




[1] Reforma Íntima Sem Martírio – Wanderley S. de Oliveira
[2] O Livro dos Espíritos – Questão 895.

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