Ermance Dufaux
“Em resumo, naquele que nem se quer concebe a ideia do mal, já há
progresso realizado; naquele a quem essa ideia acode, mas que a repele há
progresso em vias de realizar-se”.
O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO – Cap. VIII, Item 7
Que ideia mais clara de reforma
íntima pode se exarar que essa exposta acima?
Naquele que a ideia do mal não
faz parte de sua bagagem mental, encontramos a transformação moral efetivada.
Allan Kardec, no entanto, no
item 4, capítulo XVII, de O Evangelho
Segundo o Espiritismo, deixa claro que o verdadeiro espírita seria
reconhecido não só por esse aspecto moralizador, mas, igualmente, pelos
esforços que emprega para domar as más inclinações; nesse ângulo encontramos o
outro estágio, aquele em que a ideia do mal acode e é repelida.
Será reducionismo definir o
processo renovador da vida íntima por meros critérios de aparência exterior.
Ser espírita é uma vivência ética que reflete e, a um só tempo, induz profundas
metamorfoses no campo da mente. Dessa forma, deixa de ser conceito religioso
para alcançar o patamar de sagrada viagem pelos escaninhos da alma, através do
autodescobrimento e da conduta.
No reino mental encontramos
complexos mecanismos que operam a formação da personalidade, como uma
“identidade temporária do Espírito” nas sendas evolutivas. Subconsciente,
consciente e superconsciente são níveis que interagem em perfeita sinergia, com
funções específicas. Na vida subconsciencial encontramos o reflexo e a emoção
induzindo, para o consciente, o projeto das ideias que vão subconstanciar
atitudes e palavras nos projetos das ideias que vão consubstanciar atitudes e
palavras nos rumos da perfeição ou no cativeiro das expiações dolorosas.
Portanto, a cadeia reflexo-emotividade-ideia-ação-palavra
compõem a fisiologia da alma.
Os reflexos são como
“personalidades indutoras” estabelecendo o automatismo dos sentimentos
externados em atitudes e palavras. Nesse circuito vivemos e decidimos, progredimos
ou estacionamos. Não será incorreto, conquanto os muitos conceitos, definir
personalidade como sendo “núcleos dinâmicos e gestores de sentimentos”
funcionando sob automatismo mental contínuo. São essas muitas personalidades
construídas nas múltiplas vivências da alma que reformam os alicerces das
inclinações humanas – tendências, impulsos, desejos, intenções e hábitos.
Na usina da mente, o pensamento
exerce a função de supervisão ininterrupta da rotina mental, sob a gerência da
vontade, expedindo ordens de aprovação ou censura pela intervenção da
inteligência, a qual decide e avalia os estímulos recebidos da vida. Somente
depois dessas intrincadas operações é que são acionados os sentimentos, que
esculpirão a natureza efetiva de toda essa sequência, conduzindo a alma a
perceber os ditames da consciência nesse caleidoscópio de “movimentos sublimes
da alma”. Por isso os pensamentos precisam ser muitos vigiados para induzirem
as velhas emoções, as quais associamos as experiências da atitude, conforme os
roteiros que escolhemos ao longo de milênios.
Nessa sequência de vida mental,
encontramos o reflexo-matriz do interesse pessoal como sendo a origem da rotina
das operações psíquicas e emocionais, as quais convergem para o que os nomeamos
como personalismo – a parcela patológica do ego.
Assim declinamos porque o
interesse pessoal em si é uma necessidade para o progresso. Seu excesso, no
entanto, gerou essa fixação prolongada da alma no narcisismo – a paixão pelo
que imaginamos ser.
Com razão asseveram os
orientadores espirituais da codificação: “frequentemente, as qualidades morais
são como, no objeto de cobre, a douradura que não resiste à pedra de toque.
Pode o homem possuir qualidades reais, conquanto assinalem um progresso, nem
sempre suportam certas provas e às vezes basta que se fira a corda do interesse
pessoal para que o fundo fique a descoberto. O verdadeiro desinteresse é coisa
ainda tão rara na Terra que, quando se patenteia, todos os admiram como se fora
um fenômeno[2]”.
Devido a esse arcabouço
psicológico do personalismo, vivemos, preponderantemente, em torno daquilo que
imaginamos que somos, sustentados por convicções e hábitos que irrigam todo o
“cosmo pensante” do ser com ideias e sentimentos irreais ou deturpados sobre
nós mesmos. São as ilusões. Sua manifestação mais saliente é a criação de uma
autoimagem superdimensionada em valores em conquistas que supomos possuir.
Lutamos há milênios com a força
descomunal desse reflexo-matriz que dirige por automatismo, até mesmo, a
maioria de nossas escolhas.
Em razão disso, quando temos o
interesse pessoal contrariado, magoamos; quando feridos, penetramos no
melindre; quando ameaçados, tombamos na insegurança; quando traídos, caímos na
revolta; quando lesados, inclinamos para o revide. Entretanto, podemos mudar
esse quadro, pois Freud, um dos mais célebres cientistas das ciências
psíquicas, dizia que, em matéria de impulsos, depositava esperanças no futuro
por considerar os seres humanos educáveis.
O desenvolvimento de novos
hábitos constitui a terapêutica para nossos impulsos egoístas. A caridade,
entendida como criação de relações educativas, será medida libertadora dessa
escravidão dolorosa nos costumes humanos.
O treino da empatia, o
aprendizado de saber ouvir, o cultivo do respeito à vida alheia, a cautela no
uso das palavras dirigidas ao próximo, a sensibilidade para com os dramas
humanos, as atitudes de solidariedade efetiva e renovadora são autênticos
ensaios das qualidades superiores que vão, pouco a pouco, desenvolvendo o novo
“interesse universal”, desenovelando as blandícias do altruísmo e do amor–reflexos
celestes do Pai, nos quais todos fomos criados distantes do mal e da dor.
Quando alcançarmos esse patamar,
podemos afirmar com Kardec: “Em resumo, naquele que nem sequer concebe a ideia
do mal já há progresso”.
[1] Reforma Íntima
Sem Martírio – Wanderley S. de Oliveira
[2] O Livro dos Espíritos – Questão 895.
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