quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Os avanços da ciência da alma[1]



Denise Paraná[2], da Filadélfia, Estados Unidos


Uma pesquisa inédita usa equipamentos de última geração para investigar o cérebro dos médiuns durante o transe. As conclusões surpreendem: ele funciona de modo diferente.

Estávamos no mês de julho de 2008. Na Rua 34 da cidade da Filadélfia, nos Estados Unidos, num quarto do Hotel Penn Tower, um grupo seleto de pesquisadores e médiuns preparava-se para algo inédito.
Durante dez dias, dez médiuns brasileiros se colocariam à disposição de uma equipe de cientistas do Brasil e dos EUA, que usaria as mais modernas técnicas científicas para investigar a controversa experiência de comunicação com os mortos. Eram médiuns psicógrafos, pessoas que se identificavam como capazes de receber mensagens escritas ditadas por espíritos, seres situados além da palpável matéria que a ciência tão bem reconhece. O cérebro dos médiuns seria vasculhado por equipamentos de alta tecnologia durante o transe mediúnico e fora dele. Os resultados seriam comparados. Como jornalista, fui convidada a acompanhar o experimento. Estava ali, cercada de um grupo de pessoas que acreditam ser capazes de construir pontes com o mundo invisível.
Seriam eles, de fato, capazes de tal engenharia?
A produção de exames de neuroimagem (conhecidos como tomografia por emissão de pósitrons) com médiuns psicógrafos em transe é uma experiência pioneira no mundo. Os cientistas Julio Peres, Alexander Moreira-Almeida, Leonardo Caixeta, Frederico Leão e Andrew Newberg, responsáveis pela pesquisa, garantiam o uso de critérios rigorosamente científicos. Punham em jogo o peso e o aval de suas instituições. Eles pertencem às faculdades de medicina da Universidade de São Paulo, da Universidade Federal de Juiz de Fora, da Universidade Federal de Goiás e da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia.
Principal autor do estudo, o psicólogo clínico e neurocientista Julio Peres, pesquisador do Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade (Proser), do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, acalentava a ideia de que a experiência espiritual pudesse ser estudada por meio da neuroimagem.
Em frente ao Q.G. dos médiuns no Hotel Penn Tower, o laboratório de pesquisas do Hospital da Universidade da Pensilvânia estava pronto. Lá, o cientista Andrew Newberg e sua equipe aguardavam ansiosos. Médico, diretor de Pesquisa do Jefferson-Myrna Brind Centro de Medicina Integrativa e especialista em neuroimagem de experiências religiosas, Newberg é autor de vários livros, com títulos como Biologia da Crença e Princípios de Neuroteologia. Suas pesquisas são consideradas uma referência mundial na área. Ele acabou por se tornar figura recorrente nos documentários que tratam de ciência e religião. Meses antes, Newberg escrevera da Universidade da Pensilvânia ao consulado dos EUA, em São Paulo, pedindo que facilitasse a entrada dos médiuns em terras americanas.
O consulado foi prestativo e organizou um arquivo especial com os nomes dos médiuns, classificando-o como “Protocolo Paranormal”.
“É conhecido o fato de experiências religiosas afetarem a atividade cerebral. Mas a resposta cerebral à mediunidade, a prática de supostamente estar em comunicação com ou sob o controle do espírito de uma pessoa morta, até então nunca tinha sido investigada”, diz Newberg. Os cientistas queriam investigar se havia alterações específicas na atividade cerebral durante a psicografia.
Se houvesse, quais seriam? Os dez médiuns, quatro homens e seis mulheres, participavam do experimento voluntariamente. Foram selecionados no Brasil por meio de uma longa triagem.
Entre os pré-requisitos, tinham de ser destros, saudáveis, não ter nenhum tipo de transtorno mental e não usar medicações psiquiátricas.
Metade dos voluntários dizia carregar décadas de experiência no “intercâmbio espiritual”. Outros, menos experientes, apenas alguns anos.
Na Filadélfia, antes de a experiência começar, os médiuns passaram por uma fase de familiarização com os procedimentos e o ambiente do hospital onde seriam feitos os exames. O experimento só daria certo se os médiuns estivessem plenamente à vontade. Todos se perguntavam se o transe seria possível tão longe de casa, num hospital em que se podia perguntar se Dr. Gregory House, o personagem de ficção interpretado pelo ator inglês Hugh Laurie, não apareceria ali a qualquer momento.
Numa sala com aviso de perigo, alta radiação, começaram os exames. Por meio do método conhecido pela sigla Spect (Single Photon Emission Computed Tomography, ou Tomografia Computadorizada de Emissão de Fóton Único), mapeou-se a atividade do cérebro por meio do fluxo sanguíneo de cada um dos médiuns durante o transe da psicografia. Como tarefa de controle, o mesmo mapeamento foi realizado novamente, desta vez durante a escrita de um texto original de própria autoria do médium, uma redação sem transe e sem a “cola espiritual”. Os autores do estudo partiam da seguinte hipótese: uma vez que tanto a psicografia como as outras escritas dos médiuns são textos planejados e inteligíveis, as áreas do cérebro associadas à criatividade e ao planejamento seriam recrutadas igualmente nas duas condições. Mas não foi o que aconteceu. Quando o mapeamento cerebral das duas atividades foi comparado, os resultados causaram espanto.
Surpreendentemente, durante a psicografia os cérebros ativaram menos as áreas relacionadas ao planejamento e à criatividade, embora tenham sido produzidos textos mais complexos do que aqueles escritos sem “interferência espiritual”. Para os cientistas, isso seria compatível com a hipótese que os médiuns defendem: a autoria das psicografias não seria deles, mas dos espíritos comunicantes.
Os médiuns mais experientes tiveram menor atividade cerebral durante a psicografia, quando comparada à escrita dos outros textos. Isso ocorreu apesar de a estrutura narrativa ser mais complexa nas psicografias que nos outros textos, no que diz respeito a questões gramaticais, como o uso de sujeito, verbo, predicado, capacidade de produzir texto legível, compreensível etc..
Apesar de haver várias semelhanças entre a ativação cerebral dos médiuns estudados e pacientes esquizofrênicos, os resultados deixaram claro também que aqueles voluntários não tinham esquizofrenia ou qualquer outra doença mental. Os cientistas afirmam que a descoberta de ativação da mesma área cerebral sublinha a importância de mais pesquisas para distinguir entre a dissociação (processo em que as ações e os comportamentos fogem da consciência) patológica e não patológica.
Entre o que é e o que não é doença, quando alguém se diz tocado por outra entidade. Os médiuns estudados relataram ilusões aparentes, alucinações auditivas, alterações de personalidade e, ainda assim, foram capazes de usar suas experiências mediúnicas para tentar ajudar os outros. Pode haver, portanto, formas saudáveis de dissociação.
Uma das conclusões a que os cientistas chegaram é que a mediunidade envolve um tipo de dissociação não patológica, ou não doentia. A mediunidade pode ser uma expressão comum à natureza humana. Essas conclusões, que ÉPOCA antecipa nesta edição, serão divulgadas na revista científica americana Plos One.
O estudo Neuroimagem durante o estado de transe: uma contribuição ao estudo da dissociação terá acesso gratuito a partir desta sexta-feira, dia 16, no endereço eletrônico: dx.plos.org/10.1371/journal.pone.0049360 .
O maior de todos os psicógrafos
Naquele verão, na Filadélfia, os dez médiuns produziram psicografias espelhadas – escritas de trás para a frente –, redigiram em línguas que não dominavam bem, descreveram corretamente ancestrais dos cientistas que os próprios pesquisadores diziam desconhecer, entre outras tantas histórias. Convivendo com eles naquele experimento, colhendo suas histórias, ouvindo os dramas e prazeres de viver entre dois mundos, encontrei diferentes biografias. Todos eles compartilham, porém, a crença de que aquilo que veem e ouvem é, de fato, algo real. Outro ponto em comum: todos nutriam enorme respeito por Chico Xavier, considerado o modelo de excelência da prática psicográfica.
Mineiro de família pobre, fala mansa e sorriso tímido, Chico Xavier recebeu apenas o ensino básico. Isso não o impediu de publicar mais de 400 livros, alguns em dez idiomas diferentes, cobrindo variados gêneros literários e amplas áreas do conhecimento.
Ao final da vida, vendera cerca de 40 milhões de exemplares, cujos direitos autorais foram doados. Psicografou por sete décadas. Nenhum tipo de fraude foi comprovada. Isso não significa que seus feitos mediúnicos sejam absoluta unanimidade. Há controvérsias. O pesquisador Alexandre Caroli Rocha, doutor em teoria e história literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), chegou a conclusões que parecem favorecer a hipótese de que Chico fosse mesmo uma grande e sintonizada antena. Em seu mestrado, ele analisou o primeiro livro publicado pelo médium, Parnaso de Além-túmulo, que trazia 259 poemas atribuídos a 83 autores já mortos.
Seu estudo considerou os aspectos estilísticos, formais e interpretativos dos poemas e concluiu que a antologia não era um produto de imitação literária simples. Rocha descobriu, por exemplo, que Guerra Junqueiro (1850-1923), um dos autores mortos, assinava a continuação de um poema inacabado em vida. Não havia indício de que Chico tivesse tido acesso ao poema antes de psicografar sua continuação. No doutorado, Rocha concluiu que Chico reproduzia perfeitamente o estilo do popular escritor Humberto de Campos (1886-1934).
Nos textos que saíam da ponta de seu lápis havia, segundo Rocha, um estilo intrincado e sofisticado, detectável apenas por aqueles que conhecem bem como Humberto de Campos funciona.
Muitos dos textos atribuídos a Campos continham informações que estavam fora do domínio público. Encerradas num diário secreto, tais informações só foram reveladas 20 anos depois da morte de Campos e do início da produção mediúnica de Chico.
A ciência pode desvendar a natureza da alma?
“Se eu pudesse recomeçar minha vida, deixaria de lado tudo o que fiz, para estudar a paranormalidade”. Essa confissão de Sigmund Freud a seu biógrafo oficial, Ernest Jones, marca um dos capítulos pouco conhecidos da história do pensamento humano.
Pouca gente sabe também que muitas das teorias reconhecidas hoje pela ciência sobre o inconsciente e a histeria baseiam-se em trabalhos de pesquisadores que se dedicaram ao estudo da mediunidade. Talvez menos gente saiba que Marie Curie, a primeira cientista a ganhar dois prêmios Nobel, e seu marido, Pierre Curie, também Nobel, dedicaram espaço em suas atribuladas agendas ao estudo de médiuns.
No Instituto de Metapsíquica em Paris, no início do século passado, Madame Curie inquiriu com seus assombrados olhos azuis a médium de efeitos físicos Eusápia Palladino. O casal Curie supôs que os segredos da radioatividade poderiam ser revelados por meio de uma fonte de energia espiritual. Quem seria capaz de imaginar isso hoje?
Outros cientistas laureados com o Nobel consagraram parte de sua vida buscando respostas para os mistérios da alma e a possibilidade de comunicação com os mortos. Pesquisas que hoje seriam consideradas assombrosas, como materialização de espíritos, movimentação de objetos à distância, levitação etc., foram realizadas na passagem entre os séculos XIX e XX. Houve forte oposição materialista. Experimentos frustrados e a comprovação de fraude de alguns médiuns lançaram um manto de ceticismo e silêncio sobre o tema. Essa linha de pesquisa entrou em crise. Experimentos com mediunidade aos poucos se tornaram uma mácula nos currículos oficiais dos eminentes cientistas. E a ciência moderna acabou por condenar ao esquecimento inúmeras pesquisas científicas sobre o assunto, algumas rigorosas. Enquanto o cinema, a TV e a literatura cada vez se apropriam mais das questões do espírito, a ciência dominante tem torcido o nariz e deixado essas reflexões fora de seu campo.
A questão tem sido esquecida, mas não totalmente. Apesar de ainda tímidas, pesquisas científicas sobre comunicações mediúnicas, como a da Filadélfia, têm sido realizadas recentemente.
Basicamente, encontraram que, além de fenômenos que revelam fraude proposital ou inconsciente do médium, há muito a explicar. Muita coisa não cabe dentro do discurso que prevalece hoje na ciência. Pesquisadores da área acreditam que a telepatia do médium com o consciente ou o inconsciente daquele que deseja uma comunicação espiritual não explica psicografias nas quais se revelam informações desconhecidas das pessoas que o procuram.
Muitas informações fornecidas por médiuns, dizem eles, se confirmaram verdadeiras só mais tarde, após pesquisa sobre o morto. Como pensar então em telepatia se só o morto detinha as informações?
Seria possível a ideia de comunicação direta com os mortos? Alguns cientistas que estudam as percepções mediúnicas discordam dessa hipótese. Acreditam que é possível não haver limite de espaço e tempo para percepções mediúnicas. O médium poderia andar para a frente e para trás no tempo e no espaço, coletando as informações que desejasse, quando e onde elas estivessem.
Num fenômeno em que comprovadamente não houvesse fraude ou sugestão inconsciente, sobrariam apenas duas hipóteses: ou haveria a capacidade do médium de captar informações em outro espaço e tempo; ou existiria mesmo a capacidade de comunicação entre o médium e o espírito de um morto.
Atuais referências no estudo científico de fenômenos tidos como espirituais, cientistas como Robert Cloninger, Mario Beauregard, Erlendur Haraldsson, Stuart Hameroff e Peter Fenwick aplaudem a iniciativa de Julio Peres em seu estudo. Esse neurocientista brasileiro, que tem colhido apoio em seus pares, afirma que seus achados “compõem um conjunto de dados interessantes para a compreensão da mente e merecem futuras investigações, tanto em termos de replicação como de hipóteses explicativas”. Outro coautor do estudo, o psiquiatra Frederico Camelo Leão, coordenador do Proser, defende mais estudos acerca das experiências tidas como espirituais. “O impacto das pesquisas despertará a comunidade científica para como esse desafio tem sido negligenciado”, diz.
O pesquisador Alexander Moreira-Almeida, coautor do estudo e diretor do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (Nupes), da Universidade Federal de Juiz de Fora, é o principal responsável por colocar o Brasil em destaque nessa área no cenário internacional.
Moreira-Almeida recebeu o Prêmio Top Ten Cited, como o primeiro autor do artigo mais citado na Revista Brasileira de Psiquiatria, com Francisco Lotufo Neto e Harold G Koenig. É editor do livro Exploring frontiers of the mind-brain relantionship (Explorando as fronteiras da relação mente-cérebro, em tradução livre), pela reputada editora científica Springer.
Ele afirma que a alma, ou como prefere dizer, a personalidade ou a mente, está intimamente ligada ao cérebro, mas pode ser algo além dele. Para esse psiquiatra fluminense, pesquisas sobre experiências espirituais, como a mediunidade, são importantes para entendermos a mente e testarmos a hipótese materialista de que a personalidade seja um simples produto do cérebro. Moreira-Almeida lembra que Galileu e Darwin só puderam revolucionar a ciência porque passaram a analisar fenômenos que antes não eram considerados. “O materialismo é uma hipótese, não é ainda um fato cientificamente comprovado, como muitos acreditam”, diz Moreira-Almeida.
Apesar de todos os avanços da ciência materialista, a humanidade continua aceitando as dimensões espirituais. Dados do World Values Survey revelam que a maioria da população mundial acredita na vida após a morte.
Em todo o planeta, um número expressivo de pessoas declara ter se sentido em contato com mortos: são 24% dos franceses, 34% dos italianos, 26% dos britânicos, 30% dos americanos e 28% dos alemães. Não há dúvida de que o materialismo científico foi instrumento de enorme progresso para a humanidade. A dúvida é se ele, sozinho, seria capaz de explicar toda a experiência humana. Para a maioria da população, a visão materialista parece deixar um vazio atrás de si. Na busca de respostas para nossas principais questões, muitos assinariam embaixo da frase de Albert Einstein: o homem que não tem os olhos abertos para o mistério passará pela vida sem ver nada.




[1] Revista Época – 19/11/2012
[2] Denise Paraná é jornalista, doutora em ciências humanas pela Universidade de São Paulo e pósdoutora, como visiting scholar, pela Universidade de Cambridge, Inglaterra

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