Maria Ribeiro
Não são poucas as orientações
das obras da codificação assinadas com nomes dos santos católicos que foram, de
alguma forma, expoentes de uma fé verdadeira e que, até certo ponto, puderam
exercer alguma influência benéfica no seio da Igreja e que tiveram algum eco
para a humanidade, muito embora não imediatamente.
Este é um importante detalhe,
pois, analisado de forma superficial, deixa entrever um falso vínculo que venha
unir o Espiritismo ao Catolicismo, ao menos quando o Espiritismo toma a acepção
de Doutrina Espírita.
Em primeiro lugar é preciso
lembrar que o título de santo não faz da entidade um Espírito superior. E, não
sendo um Espírito superior, está sujeito a transmitir comunicações eivadas de
opiniões pessoais remanescentes dos preconceitos e ideias pré-concebidas dos
quais já se livraram completamente os Espíritos superiores. Outros Espíritos
também demonstram muito de suas antigas crenças, no modo de se expressarem,
usando palavras e expressões consagradas pela Igreja. Isto de forma alguma
retira a importância da mensagem, porém, é razão para receber críticas até
muito severas por parte de alguns adeptos que se dizem
cientificistas/laicistas, mas que, no fundo, não passam de críticos que esperneiam
em bases pouco consistentes. É o que se vê, principalmente, em comunicações na
Revue e também em O Evangelho segundo o
Espiritismo. Além do que, os médiuns também estavam embebidos pelo costume
de um mundo católico. O fato de Kardec ter mantido termos e expressões
originalmente católicos não significa uma submissão nem uma adesão ao vaticano,
mas a demonstração da irrelevância da questão. Por isto, este fato não pode ser
entendido nem como uma falha de Kardec nem como uma sanção.
Um sistema com duração de nada
menos que doze séculos não poderia fazer outra coisa senão moldar psiquismos,
fazendo com que as mesmas crenças e parâmetros fossem tidos como verdades. Mil
e duzentos anos sob o jugo absoluto e perverso de um sistema implacável,
certamente comprometeu o desenvolvimento intelectual humano, mas o pior de
todos os efeitos é que a essência do Cristianismo ficou confundida com a
religião católica romana. Historicamente, vale lembrar que Roma perseguiu os
primeiros cristãos após remeter o castigo da cruz para aquele a quem tornaria
seu monopólio.
Não se pode negar a laicidade do
Espiritismo quando se dá ao termo seu devido significado. Não tendo vínculo com
nenhuma religião, ou submetido à autoridade de qualquer sistema religioso
existente na Terra, o Espiritismo é laico. Da mesma forma não se pode omitir ao
Espiritismo a cristandade, ou seja, sua base cristã. Os cientificistas/lacistas
argumentam que, não sendo religião, o Espiritismo também não é cristão. Este
argumento chega a ser abjeto, pois em toda a obra espírita esta afirmação é
encontrada. Aqui está um ponto que merece mais reflexão para todas as vertentes
espíritas que têm-se hoje no Brasil: cristianismo não é religião. Cristianismo
foi um movimento ideológico e só recebeu este nome depois da morte de Jesus,
que era judeu. Tanto que, os primeiros adeptos do ensino que este ministrava,
poderiam ter constituído uma sinagoga, que a lei permitia para grupos com mais
de dez pessoas, e não o fizeram[2].
O cristianismo, mesmo para aqueles homens ignorantes, não estava num templo,
não era algo circunscrito a um lugar ou a uma época. Já tinha um caráter
universalista, muito longe do particularismo judeu herdado, de certa forma,
pelo catolicismo.
O erro está em se associar a
essência deste movimento com a ICAR, que fez um péssimo uso do nome cristão e
uma péssima propaganda de Jesus. Seria preciso questionar como a ICAR poderia
ser cristã em sua essência ao mesmo tempo em que a sua atuação traiu as
principais premissas ensinadas por Jesus e pela vivência dos primeiros
apóstolos, na simbologia do cristianismo.
“A Igreja só foi verdadeiramente
popular e democrática em suas origens, durante os tempos apostólicos, períodos
de perseguição e de martírio…”[3]
A despeito da crítica feita acerca das negligências da instituição, esta fala
inserta em Cristianismo e Espiritismo de Léon Denis deixa clara a associação de
Igreja com o movimento cristão primitivo, que são, em absoluto, duas vertentes
distintas.
Sem nos remetermos aos castigos
corporais, mortes, e todo tipo de violência que tolheu a liberdade, a criação
de dogmas subjugou a inteligência humana e isto tem sérios reflexos no
psiquismo humano até hoje, o que não deixa de ser um castigo moral de difícil
reparo. Não é raro ver quem supervalorize os sacramentos da ICAR sem mesmo
nunca ter assistido a uma missa. Ou seja, a bênção de Deus ainda está lá e só
lá. Em tudo há o ranço católico. E que dizer dos inumeráveis problemas
psicológicos! Se os seres aprendem por repetição, imagine-se o que é reencarnar
durante 1200 anos sempre sob o mesmo sistema.
Mas nem mesmo o Espiritismo que
veio trazer ao mundo o sentido do verdadeiro cristianismo, aquele ensinado por
Jesus e depois pelos discípulos, conseguiu isenção desta influência, embora
apenas no linguajar. Mas, pior do que ter-se assinaturas de santos católicos
nas Letras Espíritas, é perceber que há uma influência prática no movimento
espírita do Brasil. Para começar, lembrem-se que os dois maiores expoentes
bibliográficos são ex-membros da Igreja, um sacerdote e uma freira, ou Emmanuel
e Joanna de Ângelis, sob a benção do católico Adolfo Bezerra de Menezes em sua
simpatia pelos escritos de Roustaing, e que goza de extremada simpatia pelos
adeptos. Mas os dois primeiros são, de
longe, os mais consumidos e assimilados pela esmagadora maioria de adeptos
espíritas.
Esta nuance criou o que se pode
chamar de uma religião espírita, que adota certos rituais, ainda que velados,
aliás, tema já explorado noutra oportunidade.
Parece um contrassenso a esta
altura querer-se um vínculo com um sistema que dominou por longos séculos todo
um mundo, e que não foi capaz de resolver nenhum problema humano, mas criou
vários. Que a ICAR tenha ponto de contato com o Espiritismo, assim como todas
as religiões, é verdade sem contradita, afinal a fenomenologia sempre esteve a
par com a humanidade e não seriam os preconceitos das religiões que
representariam barreiras para sua ação.
Já a Doutrina Espírita nada tem
a ver com o catolicismo. Aliás, derrubou-lhe todos os pilares, construídos
sobre o orgulho e a ambição, tornando-se mesmo a sua antagonista, a começar
pela sustentação da reencarnação, da mediunidade e da evolução como sendo leis
naturais e inerentes à condição humana. A exemplo de Jesus e o movimento
continuado pelos seus discípulos e apóstolos (cristianismo), a Doutrina
Espírita consagrou a caridade como bandeira; exaltou a humildade e a
simplicidade não somente como estilos aparentes de vida, mas como modo de ser
espiritualmente falando; rompeu com a crença dos escolhidos e privilegiados por
Deus ao explanar sobre as provas e expiações, causa e efeito, livre arbítrio,
conduta moral, evolução do Espírito.
Dirigida pelos que pensavam ser
a Igreja a crença universal, algumas centenas de O Livro dos Espíritos foram levados às chamas da fogueira inquisidora
católica em pleno século XIX, acontecimento que entrou para a história do
Espiritismo como O Auto de Barcelona.
É oportuno perguntar o quê
exatamente a humanidade deve à ICAR. E vamos além: o quê o Espiritismo deve à
ICAR. Absolutamente nada, pela simples razão de que, independente dela e apesar
dela, os fenômenos sempre existiram.
O que se vê no meio espírita,
mesmo na banda dos opositores da FEB, que, diga-se de passagem, representa algo
da ICAR como em tempos de liberdade do além, defesas calorosas para com os
feitos da Igreja; o que remete à ideia de que a humanidade, na verdade o
espírita, deve pedir-lhe a bênção, como a grande mãe de todos, protetora,
provedora e que nos deixou uma herança inigualável.
Para concluir, pode-se dizer que
a influência da ICAR em todos os atos da humanidade ainda é enorme, e também
pode-se afirmar a tônica negativa que isto representa, principalmente, é claro,
no seio doutrinário, uma vez que, enquanto esta influência existir,
dificilmente ter-se-á uma divulgação de Doutrina Espírita isenta dos seus
frutos nocivos, já que a raiz permanece.
[2] ROPS, Daniel, A Igreja dos apóstolos e dos mártires, p.
11.
[3] DENIS, Leon, Cristianismo e Espiritismo, Introdução.
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