quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Influência do Catolicismo no Espiritismo[1]



Maria Ribeiro


Não são poucas as orientações das obras da codificação assinadas com nomes dos santos católicos que foram, de alguma forma, expoentes de uma fé verdadeira e que, até certo ponto, puderam exercer alguma influência benéfica no seio da Igreja e que tiveram algum eco para a humanidade, muito embora não imediatamente.
Este é um importante detalhe, pois, analisado de forma superficial, deixa entrever um falso vínculo que venha unir o Espiritismo ao Catolicismo, ao menos quando o Espiritismo toma a acepção de Doutrina Espírita.
Em primeiro lugar é preciso lembrar que o título de santo não faz da entidade um Espírito superior. E, não sendo um Espírito superior, está sujeito a transmitir comunicações eivadas de opiniões pessoais remanescentes dos preconceitos e ideias pré-concebidas dos quais já se livraram completamente os Espíritos superiores. Outros Espíritos também demonstram muito de suas antigas crenças, no modo de se expressarem, usando palavras e expressões consagradas pela Igreja. Isto de forma alguma retira a importância da mensagem, porém, é razão para receber críticas até muito severas por parte de alguns adeptos que se dizem cientificistas/laicistas, mas que, no fundo, não passam de críticos que esperneiam em bases pouco consistentes. É o que se vê, principalmente, em comunicações na Revue e também em O Evangelho segundo o Espiritismo. Além do que, os médiuns também estavam embebidos pelo costume de um mundo católico. O fato de Kardec ter mantido termos e expressões originalmente católicos não significa uma submissão nem uma adesão ao vaticano, mas a demonstração da irrelevância da questão. Por isto, este fato não pode ser entendido nem como uma falha de Kardec nem como uma sanção.
Um sistema com duração de nada menos que doze séculos não poderia fazer outra coisa senão moldar psiquismos, fazendo com que as mesmas crenças e parâmetros fossem tidos como verdades. Mil e duzentos anos sob o jugo absoluto e perverso de um sistema implacável, certamente comprometeu o desenvolvimento intelectual humano, mas o pior de todos os efeitos é que a essência do Cristianismo ficou confundida com a religião católica romana. Historicamente, vale lembrar que Roma perseguiu os primeiros cristãos após remeter o castigo da cruz para aquele a quem tornaria seu monopólio.
Não se pode negar a laicidade do Espiritismo quando se dá ao termo seu devido significado. Não tendo vínculo com nenhuma religião, ou submetido à autoridade de qualquer sistema religioso existente na Terra, o Espiritismo é laico. Da mesma forma não se pode omitir ao Espiritismo a cristandade, ou seja, sua base cristã. Os cientificistas/lacistas argumentam que, não sendo religião, o Espiritismo também não é cristão. Este argumento chega a ser abjeto, pois em toda a obra espírita esta afirmação é encontrada. Aqui está um ponto que merece mais reflexão para todas as vertentes espíritas que têm-se hoje no Brasil: cristianismo não é religião. Cristianismo foi um movimento ideológico e só recebeu este nome depois da morte de Jesus, que era judeu. Tanto que, os primeiros adeptos do ensino que este ministrava, poderiam ter constituído uma sinagoga, que a lei permitia para grupos com mais de dez pessoas, e não o fizeram[2]. O cristianismo, mesmo para aqueles homens ignorantes, não estava num templo, não era algo circunscrito a um lugar ou a uma época. Já tinha um caráter universalista, muito longe do particularismo judeu herdado, de certa forma, pelo catolicismo.
O erro está em se associar a essência deste movimento com a ICAR, que fez um péssimo uso do nome cristão e uma péssima propaganda de Jesus. Seria preciso questionar como a ICAR poderia ser cristã em sua essência ao mesmo tempo em que a sua atuação traiu as principais premissas ensinadas por Jesus e pela vivência dos primeiros apóstolos, na simbologia do cristianismo.
“A Igreja só foi verdadeiramente popular e democrática em suas origens, durante os tempos apostólicos, períodos de perseguição e de martírio…”[3] A despeito da crítica feita acerca das negligências da instituição, esta fala inserta em Cristianismo e Espiritismo de Léon Denis deixa clara a associação de Igreja com o movimento cristão primitivo, que são, em absoluto, duas vertentes distintas.
Sem nos remetermos aos castigos corporais, mortes, e todo tipo de violência que tolheu a liberdade, a criação de dogmas subjugou a inteligência humana e isto tem sérios reflexos no psiquismo humano até hoje, o que não deixa de ser um castigo moral de difícil reparo. Não é raro ver quem supervalorize os sacramentos da ICAR sem mesmo nunca ter assistido a uma missa. Ou seja, a bênção de Deus ainda está lá e só lá. Em tudo há o ranço católico. E que dizer dos inumeráveis problemas psicológicos! Se os seres aprendem por repetição, imagine-se o que é reencarnar durante 1200 anos sempre sob o mesmo sistema.
Mas nem mesmo o Espiritismo que veio trazer ao mundo o sentido do verdadeiro cristianismo, aquele ensinado por Jesus e depois pelos discípulos, conseguiu isenção desta influência, embora apenas no linguajar. Mas, pior do que ter-se assinaturas de santos católicos nas Letras Espíritas, é perceber que há uma influência prática no movimento espírita do Brasil. Para começar, lembrem-se que os dois maiores expoentes bibliográficos são ex-membros da Igreja, um sacerdote e uma freira, ou Emmanuel e Joanna de Ângelis, sob a benção do católico Adolfo Bezerra de Menezes em sua simpatia pelos escritos de Roustaing, e que goza de extremada simpatia pelos adeptos.  Mas os dois primeiros são, de longe, os mais consumidos e assimilados pela esmagadora maioria de adeptos espíritas.
Esta nuance criou o que se pode chamar de uma religião espírita, que adota certos rituais, ainda que velados, aliás, tema já explorado noutra oportunidade.
Parece um contrassenso a esta altura querer-se um vínculo com um sistema que dominou por longos séculos todo um mundo, e que não foi capaz de resolver nenhum problema humano, mas criou vários. Que a ICAR tenha ponto de contato com o Espiritismo, assim como todas as religiões, é verdade sem contradita, afinal a fenomenologia sempre esteve a par com a humanidade e não seriam os preconceitos das religiões que representariam barreiras para sua ação.
Já a Doutrina Espírita nada tem a ver com o catolicismo. Aliás, derrubou-lhe todos os pilares, construídos sobre o orgulho e a ambição, tornando-se mesmo a sua antagonista, a começar pela sustentação da reencarnação, da mediunidade e da evolução como sendo leis naturais e inerentes à condição humana. A exemplo de Jesus e o movimento continuado pelos seus discípulos e apóstolos (cristianismo), a Doutrina Espírita consagrou a caridade como bandeira; exaltou a humildade e a simplicidade não somente como estilos aparentes de vida, mas como modo de ser espiritualmente falando; rompeu com a crença dos escolhidos e privilegiados por Deus ao explanar sobre as provas e expiações, causa e efeito, livre arbítrio, conduta moral, evolução do Espírito.
Dirigida pelos que pensavam ser a Igreja a crença universal, algumas centenas de O Livro dos Espíritos foram levados às chamas da fogueira inquisidora católica em pleno século XIX, acontecimento que entrou para a história do Espiritismo como O Auto de Barcelona.
É oportuno perguntar o quê exatamente a humanidade deve à ICAR. E vamos além: o quê o Espiritismo deve à ICAR. Absolutamente nada, pela simples razão de que, independente dela e apesar dela, os fenômenos sempre existiram.
O que se vê no meio espírita, mesmo na banda dos opositores da FEB, que, diga-se de passagem, representa algo da ICAR como em tempos de liberdade do além, defesas calorosas para com os feitos da Igreja; o que remete à ideia de que a humanidade, na verdade o espírita, deve pedir-lhe a bênção, como a grande mãe de todos, protetora, provedora e que nos deixou uma herança inigualável.
Para concluir, pode-se dizer que a influência da ICAR em todos os atos da humanidade ainda é enorme, e também pode-se afirmar a tônica negativa que isto representa, principalmente, é claro, no seio doutrinário, uma vez que, enquanto esta influência existir, dificilmente ter-se-á uma divulgação de Doutrina Espírita isenta dos seus frutos nocivos, já que a raiz permanece.




[2] ROPS, Daniel, A Igreja dos apóstolos e dos mártires, p. 11.
[3] DENIS, Leon, Cristianismo e Espiritismo, Introdução.

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