Publicado: 19/06/2015 15:25
BRT - Atualizado: 06/11/2015 23:31 BRST
Faz cem anos que as drogas foram
proibidas pela primeira vez - e, ao longo desse século de guerra contra as
drogas, professores e governos nos contaram histórias de vício. Essas histórias
estão enraizadas em nossas mentes. Elas parecem óbvias, verdades evidentes.
Até três anos atrás, quando
comecei uma jornada de 50 000 quilômetros para escrever meu novo livro, Chasing The Scream: The First and Last Days
of the War on Drugs (Perseguindo o Grito: Os Primeiros e os Últimos Dias da
Guerra contra as Drogas, em tradução livre), eu também acreditava nisso. Mas o
que descobri em minhas viagens é que quase tudo o que nos contaram sobre o
vício está errado - e existe uma história muito diferente à nossa espera, se
estivermos prontos para ouvi-la.
Se realmente absorvermos essa
nova história, teremos de mudar muito mais que a guerra contra as drogas. Teremos de nos transformar.
Aprendi com uma mistura
extraordinária de pessoas que conheci na estrada. Dos amigos de Billie Holiday,
que me ajudaram a entender como o fundador da guerra contra as drogas a
perseguiu e ajudou a matá-la. De um médico judeu que foi tirado às escondidas
do gueto de Budapeste quando era bebê, para depois destravar os segredos do
vício quando adulto.
De um transexual traficante de
crack do Brooklyn que foi concebido quando sua mãe, uma viciada em crack, foi
estuprada pelo pai dele, um policial de Nova York. De um homem que foi mantido
preso no fundo de um poço durante dois anos por uma ditadura para depois
emergir e ser eleito presidente do Uruguai, começando os dias finais da guerra
contra as drogas.
Tinha uma razão bastante pessoal
para sair em busca dessas respostas. Uma das minhas primeiras lembranças da
infância é tentar acordar um parente, sem sucesso. Desde então, venho pensando
sobre o mistério do vício - o que faz algumas pessoas se fixar em uma droga ou
um comportamento a ponto de não conseguir parar? Como ajudamos essas pessoas a
voltar para a gente? Ao envelhecer, outro parente próximo ficou viciado em
cocaína, e eu me envolvi com uma pessoa viciada em heroína. Acho que me sinto
em casa perto de viciados.
Se você me perguntasse lá atrás
o que provoca o vício em drogas, te olharia como se você fosse um idiota e
diria: "Drogas. Dã." Não é difícil entender. Achei que tivesse visto
isso acontecer na minha própria vida. Qualquer um consegue explicar. Imagine se
eu, você e as próximas 20 pessoas que passarem na rua tomássemos uma droga
potente por 20 dias. Existem agentes químicos fortes nessas drogas, então no
vigésimo-primeiro dia nossos corpos precisariam desses químicos. Teríamos uma
necessidade urgente deles. Estaríamos viciados. Esse é o significado de vício.
Essa teoria foi estabelecida por
meio de experimentos com ratos - experimentos que foram injetados na psique
americana nos anos 1980, em um famoso anúncio da Partnership for a Drug-Free
America. Você talvez se lembre. O experimento é simples. Coloque um rato numa
gaiola, sozinho, com duas garrafas d'água. Uma delas tem só água. A outra tem
água misturada com cocaína ou heroína. Em quase todas as vezes que você fizer
esse experimento, o rato vai ficar obcecado com a água com drogas. Ele vai
tomá-la até morrer.
O anúncio explica: "Só uma
droga é tão viciante, nove de dez ratos de laboratório vão usá-la. E usá-la. E
usá-la. Até a morte. É chamada cocaína. E ela pode fazer o mesmo com
você".
Mas, nos anos 1970, um professor
de psicologia de Vancouver chamado Bruce Alexander percebeu algo estranho nesse
experimento. O rato está sozinho na gaiola. Ele não tem nada para fazer além de
usar a droga. O que aconteceria se tentássemos algo diferente? Então Alexander
criou o Rat Park. É uma gaiola sofisticada, onde os ratos têm bolas coloridas e
túneis para brincar, vários amigos e a melhor das comidas: tudo o que um rato
poderia desejar. Alexander queria saber o que iria acontecer.
No Rat Park, todos os ratos
tomaram água das duas garrafas, é claro, porque não sabiam o que elas
continham. Mas o que aconteceu depois foi surpreendente.
Os ratos nessa vida boa não
gostavam da água com drogas. Eles basicamente a ignoravam: consumiam menos de
um quarto dessa água, em comparação com os animais isolados. Nenhum deles
morreu. Todos os ratos que estavam sozinhos em suas gaiolas se tornaram
dependentes da droga, mas isso não aconteceu com nenhum dos animais do Rat
Park.
Inicialmente, achei que isso
fosse meramente uma idiossincrasia dos ratos, até descobrir que havia - na
mesma época do experimento do Rat Park - um equivalente humano em andamento.
Era a Guerra do Vietnã.
A revista Time relatou que,
entre os soldados americanos, usar heroína estava se tornando um hábito tão
corriqueiro quanto mascar chiclete, e existem evidências sólidas para sustentar
tal afirmação: cerca de 20% dos soldados americanos ficaram viciados em heroína
no Vietnã, segundo um estudo publicado no Archives of General Psychiatry. Muita
gente ficou compreensivelmente aterrorizada; elas achavam que com o fim da
guerra um enorme número de viciados voltaria para casa.
Mas, na realidade, cerca de 95%
dos soldados viciados - segundo o mesmo estudo - simplesmente pararam de usar
heroína. Alguns poucos foram para clínicas de recuperação. Eles passaram de uma
gaiola aterrorizante para uma agradável, e não queriam mais usar drogas.
Alexander argumenta que essa
descoberta é uma contestação profunda tanto da visão direitista, segundo a qual
o vício é uma fraqueza moral causada por uma vida de festas e hedonismo, quanto
da visão liberal, que diz que o vício é uma doença que existe num cérebro
quimicamente sequestrado. Na verdade, segundo Alexander, vício é adaptação. Não
é você. É a gaiola.
Depois da primeira fase do Rat
Park, Alexander levou seu teste além. Ele refez os primeiros experimentos, nos
quais os ratos se tornavam usuários compulsivos de drogas. Ele os deixou usar a
droga durante 57 dias - se tem um jeito de ficar viciado, é esse.
Então ele tirou os animais do
isolamento e os colocou no Rat Park. Alexander queria saber se, uma vez
viciado, o cérebro estava sequestrado e não havia maneira de recuperá-lo. As
drogas assumem o controle? O que aconteceu - de novo - foi impressionante. Os
ratos pareciam exibir alguns tremores de abstinência, mas logo pararam de usar
as drogas pesadamente e voltaram a ter uma vida normal. A gaiola boa os salvou.
(As referências completas de todos os estudos que estou mencionando estão no
livro[2]).
Quando soube disso, fiquei
encucado. Como seria possível? Essa nova teoria é um ataque tão radical ao que
nos contaram que não parecia ser verdade. Mas, quanto mais cientistas
entrevistava, quanto mais estudos lia, mais descobria coisas que não pareciam
fazer sentido - a menos que você leve em conta essa nova abordagem.
Eis um exemplo de experimento
que acontece à sua volta, e pode inclusive acontecer com você um dia desses. Se
você for atropelado e quebrar a bacia, provavelmente vão te dar diamorfina, o nome médico para heroína.
No hospital, haverá muita gente
tomando heroína por longos períodos, para aliviar a dor. A heroína que o médico
te der vai ser muito mais pura e potente que aquela usada pelos viciados, que
compram uma droga adulterada pelos traficantes. Então, se a velha teoria do
vício estiver certa - a culpa é da droga; ela faz seu corpo precisar dela -, é
óbvio o que vai acontecer. As pessoas sairão do hospital e irão direto procurar
um traficante para comprar heroína.
Mas eis o que é estranho: isso
virtualmente nunca acontece. Como me explicou o médico canadense Gabor Mate os
usuários de heroína médica simplesmente param, apesar de meses de uso. A mesma
droga, usada pelo mesmo período, cria viciados nas ruas, mas não afeta os
pacientes de hospitais.
Se você ainda acredita, como eu
acreditava, que o vício é causado por agentes químicos, isso não faz sentido.
Mas, se você acredita na teoria de Bruce Alexander, a imagem começa a entrar em
foco. O viciado da rua é o rato da primeira gaiola, isolado, sozinho, com uma
única fonte de conforto. O paciente do hospital é o rato da segunda gaiola. Ele
vai para casa, para uma vida em que está cercado pelas pessoas que ama. A droga
é a mesma, mas o ambiente é diferente.
Isso nos dá um insight muito
mais profundo que a necessidade de entender os viciados. O professor Peter
Cohen argumenta que os seres humanos têm uma necessidade profunda de
estabelecer laços e conexões. É como nos satisfazemos. Se não conseguirmos nos
conectar uns com os outros, vamos nos conectar com o que encontrarmos - a
bolinha pulando na roleta ou a ponta da agulha de uma seringa. Ele diz que
deveríamos simplesmente parar de falar em "vício": deveríamos falar
em "ligação". Um viciado em heroína criou uma ligação com a droga
porque não conseguiu estabelecer outras conexões.
O oposto de vício, portanto, não
é sobriedade. É conexão humana.
Quando soube disso tudo, fui
sendo persuadido gradualmente. Mas restava uma dúvida incômoda. Será que os
cientistas estão dizendo que a parte química do vício não faz diferença
nenhuma?
Explicaram-me - você pode se
viciar em jogo, mas ninguém vai achar que você vai injetar um baralho nas
veias. Você pode ser viciado, mas não há o lado químico. Fui a uma reunião dos
Viciados em Jogos Anônimos em Las Vegas (com a permissão de todos os presentes,
que sabiam que eu estava lá apenas como observador). Eles eram tão viciados
quanto os usuários de cocaína e heroína que conheci. Mas uma mesa de pôquer não
tem químicos.
Ainda assim, perguntei: a química
desempenha algum papel? Um experimento tem a resposta precisa, que descobri no
livro The Cult of Pharmacology (O Culto
da Farmacologia, em tradução livre), de Richard DeGranpre.
Todos concordam que fumar
cigarros é um dos processos mais viciantes que existem. Os químicos do tabaco
vêm da nicotina. Quando foram inventados os adesivos de nicotina, no começo dos
anos 1990, houve uma grande onda de otimismo - os fumantes poderiam satisfazer
suas necessidades químicas sem o resto dos efeitos imundos (e mortais) do
cigarro. Seria a libertação.
Mas o Ministério da Saúde
descobriu que apenas 17,7% dos fumantes conseguem parar de fumar usando
adesivos de nicotina. É claro que não é pouca coisa. Se os químicos respondem
por 17,7% do vício, como mostra esse dado, ainda temos milhões de vidas
arruinadas globalmente. Mas o que ele revela, mais uma vez, é que a história
que nos contaram sobre as causas químicas do vício é real, mas só uma parte
pequena de uma fotografia muito maior.
Isso tem enormes implicações para
a secular guerra contra as drogas. Essa guerra massiva - que, como vi, mata
gente dos shoppings mexicanos às ruas de Liverpool - é baseada na afirmação de
que precisamos erradicar fisicamente uma vasta gama de químicos, pois eles
sequestram cérebros e provocam o vício. Mas, se as drogas em si não são as
causadoras do vício - se, na verdade, é a desconexão que causa o vício, então
nada disso faz sentido.
Ironicamente, a guerra contra as
drogas na verdade potencializa esses causadores de vício. Por exemplo: fui a
uma prisão no Arizona - "Tent City", onde os detentos ficam presos em
minúsculas celas de pedra ("O Buraco") por semanas a fio se usarem
drogas. É a versão humana mais próxima que consigo imaginar das gaiolas de
isolamento dos ratos. Quando os presos saem da cadeia, não conseguirão emprego,
porque têm ficha criminal - garantido um isolamento ainda maior. Vi exemplos
assim no mundo inteiro.
Existe uma alternativa. Você
pode criar um sistema desenhado para ajudar os viciados a se reconectar com o
mundo - e, assim, deixar o vício para trás.
Isso não é teoria. Está
acontecendo. Vi com meus próprios olhos. Cerca de 15 anos atrás, Portugal tinha
um dos piores problemas de drogas da Europa - 1% da população era viciada em
heroína. Os portugueses tentaram a guerra contra as drogas, mas o problema só
piorava. Então decidiram fazer algo radicalmente diferente. Resolveram
descriminar todas as drogas e usar o dinheiro gasto para prender os viciados em
programas de reconexão - com seus sentimentos e com a sociedade. O passo mais
crucial é garantir moradia e empregos subsidiados, para que eles tenham
propósito na vida, algo que os faça sair da cama pela manhã. Em clínicas
acolhedoras, vi os viciados aprendendo a se reconectar com seus sentimentos,
depois de anos de trauma e de um silêncio forçado causado pelas drogas.
Um exemplo que observei foi um
grupo de viciados que recebeu um empréstimo para começar uma empresa de coleta
de lixo. Repentinamente, eles eram um grupo, todos conectados entre si e com a
sociedade, cuidando uns dos outros.
Agora se conhecem os resultados
disso tudo. Um estudo independente do British Journal of Criminology descobriu
que, desde a total descriminação, o vício caiu e o uso de drogas injetáveis
teve redução de 50%. Repito: o uso de drogas injetáveis teve redução de 50%. A
descriminação foi um sucesso tão grande que pouquíssima gente em Portugal
defende uma volta ao antigo sistema. O maior opositor dessa política em 2000
era João Figueira, o principal policial da força antidrogas. Ele fez alertas
terríveis, do tipo que se espera ouvir na Fox News ou ler no Daily Mail. Mas,
quando conversamos em Lisboa, Figueira me disse que nenhuma de suas previsões
se confirmou - e agora ele espera que o resto do mundo siga o exemplo
português.
Isso não é relevante só para os
viciados que amo. É relevante para todos nós, pois nos força a pensar de
maneira diferente a respeito de nós mesmos. Os seres humanos são animais que
precisam de laços. Precisamos de conexões e de amor. A frase mais sábia do
século 20 foi "Apenas se conecte", de E.M. Forster. Mas criamos um
ambiente e uma cultura que cortou conexões, ou que oferece apenas um simulacro
delas: a internet. O crescimento do vício é sintoma de uma doença mais profunda
na maneira como vivemos - constantemente olhando para o próximo objeto
brilhante que queremos comprar, em vez dos humanos que nos cercam.
O escritor George Monbiot fala
na "era da solidão" Criamos sociedades humanas em que o corte de
conexões nunca foi tão fácil. Bruce Alexander, o criador do Rat Park, me disse
que falamos demais em recuperação de indivíduos. Precisamos falar de
recuperação social - como todos nos recuperamos juntos da doença do isolamento
que recai sobre nós como uma névoa densa.
Mas essas novas evidências não
são apenas um desafio político. Elas não nos forçam somente a transformar
nossas cabeças. Elas nos forçam a transformar nossos corações.
É muito difícil amar um viciado.
Quando olho para os viciados que amo, é sempre tentador optar pela estratégia
durona recomendada por programas como Intervention - falar para o viciado tomar
jeito ou então cortá-lo de sua vida. A mensagem é que o viciado que não parar
com as drogas deve ser rejeitado. É a lógica da guerra contra as drogas
importada para nossas vidas. Mas, na verdade, aprendi que isso só agrava o
vício - e você pode perder a pessoa para sempre. Voltei para casa determinado a
me aproximar como nunca dos viciados da minha vida - dizer para eles que os amo
incondicionalmente, consigam eles parar ou não.
Quando terminei minha longa jornada,
olhei para meu ex-namorado, em crise de abstinência, tremendo no quarto de
visitas, e pensei nele de um jeito diferente. Há um século estamos entoando
cantos de guerra sobre os viciados. Quando secava a testa dele, me ocorreu que
deveríamos estar entoando canções de amor.
A história completa da jornada
de Johann Hari - contada por meio das histórias das pessoas que ele conheceu -
está em 'Chasing The Scream: The First
and Last Days of the War on Drugs' (Perseguindo o Grito: Os Primeiros e os Últimos
Dias da Guerra contra as Drogas, em tradução livre), publicada pela Bloomsbury.
O livro foi elogiado por Elton John, Naomi Klein e Glenn Greenwald, entre
outros. Saiba mais sobre o livro.
As referências completas e
fontes para todas as informações citadas neste artigo estão nas extensas notas
do livro.
Drogas mais usadas do mundo:
Álcool (90.8 %); Tabaco (56.7 %); Cannabis (48.2 %); Energéticos (45.9 %); MDMA
(23.4 %); Tabaco de narguilé (18.5 %); Cocaína (16.4 %); Cigarro eletrônico
(12.3 %); Anfetaminas (11.7 %); Cogumelos (10.6 %)
Este artigo foi originalmente
publicado pelo HuffPost
[2] Chasing The Scream: The First and Last Days of the War
on Drugs – Johann Hari
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