Fernando Ferragino[2]
Mensalão, fraude do ISS, fraude
dos trens, máfia dos fiscais, sanguessugas, anões do orçamento, fraude da
previdência, dinheiro na cueca… a nossa capacidade para produzir escândalos de
corrupção só perde para a forma sempre criativa com que a Polícia Federal
utiliza para nomear as operações de combate às quadrilhas formadas por
empresários e políticos corruptos. É só ver ou ler o jornal para se deparar, a
cada dia, com novos casos de desvios de dinheiro. É triste dizer, mas já virou
parte da paisagem, do “jeitinho brasileiro” de fazer as coisas acontecerem…
Tanto na esfera pública, como na esfera privada (os dois lados se
retroalimentam).
Ainda assim, alguns, ou a
maioria (assim prefiro acreditar!) fica indignada ao se deparar com novos casos
de propina e roubo de verbas públicas. Neste momento, com o dedo em riste,
apontamos culpados e exigimos justiça. A questão, entretanto, é: será que nós
(mesmo os que ficam indignados) somos tão éticos assim? Ou será que sofremos da
mesma “amnésia moral” que acomete grande parte da classe política deste país?
Esta falha ou distorção no
capital moral das pessoas atenua dilemas e problemas de acordo com a percepção
daquilo que é bom única e exclusivamente para mim, de tal forma que uma
transgressão a uma regra vale para todo mundo, menos para mim (isto ajuda a
explicar porque algumas leis “pegam” no Brasil, ao passo que outras não).
Esta mesma amnésia moral é
endêmica e encontra-se há muito tempo enraizada na cultura do brasileiro. É
onde nasce o notório “jeitinho brasileiro” para solução de problemas, ou aquilo
que na gíria popular dos anos 70 e 80 convencionou-se chamar de Lei de Gérson.
Para quem não se lembra ou não
viveu na década de 70, segue a explicação: em 1976, o jogador de futebol da
Seleção Brasileira Gérson – uma das estrelas da conquista do tricampeonato da
Copa do Mundo disputada no México, em 1970, ao lado de Pelé – estrelou uma
propaganda de cigarros, onde vaticinava: “Gosto de levar vantagem em tudo,
certo? Leve vantagem você também”. A propaganda ganhou repercussão nacional e
cunhou a expressão da “lei da vantagem”, do “mais esperto”. Triste mesmo foi
constatar, conforme as décadas seguintes mostraram depois, que muitos
empresários e, principalmente, políticos brasileiros, adotaram o lema de Gérson
como prática sine qua non para a
obtenção de sucesso na vida.
A Lei de Gérson ilustra de
maneira exemplar o conceito de amnésia moral. Tal comportamento está presente
todas as vezes que furamos uma fila, cruzamos o semáforo vermelho, estacionamos
em local proibido, fazemos “gato”, sonegamos imposto, nos apropriamos de algo
indevido e enganamos o outro sempre em benefício próprio.
Quando situações como estas
acontecem no cotidiano, a amnésia moral faz com que não nos sintamos culpados
ou arrependidos pelo nosso deslize moral. Pelo contrário, nos sentimos em
vantagem, “espertos”, e ainda estufamos o peito com satisfação ao contar o
episódio aos amigos. Confundimos transgressão com virtude. E tachamos de
“trouxa” as pessoas éticas, que seguem as regras.
A culpa é do vizinho
A ironia da situação é que a
pessoa com amnésia moral normalmente nunca se julga corrupta, mas consegue
estabelecer um senso moral quando se trata de apontar o dedo para as falhas
morais na conduta dos outros. Nós sempre tendemos a ter uma imagem
supervalorizada de nós mesmos. Afinal, é muito mais fácil enxergar os defeitos
nos outros do que em nós mesmos.
Uma ampla pesquisa realizada
pelo jornal “Folha de São Paulo” em agosto de 2009 confirma essa tendência.
Após entrevistar 2.122 pessoas em 150 municípios de 25 estados brasileiros, o
jornal conseguiu estabelecer um retrato da ética no Brasil. O que eles
descobriram? Que o brasileiro, de forma geral, possui um senso moral e ético
equivalente ao encontrado em países considerados exemplares (como Suécia e
Noruega), mas paradoxalmente, se vê cercado de corrupção, como se não tivesse
participação alguma na prática de atos, no mínimo, questionáveis.
Quer um exemplo? Entre os
entrevistados, 94% declararam ser errado oferecer propinas ou vender votos. No
entanto, 79% disseram que os brasileiros vendem voto e 13% admitiram ter
trocado votos por emprego, dinheiro ou presente. No mínimo, incoerente. Se transpusermos
este percentual da amostra pesquisada para o universo total de eleitores no
país, podemos supor que mais de 17 milhões de brasileiros vendem ou já venderam
alguma vez seu voto em troca de alguma benesse. Um dado alarmante!
Ainda contradizendo o alto senso
moral individual:
– 33% dos entrevistados
concordaram com a ideia de que não é possível fazer política sem um pouco de
corrupção,
– 13% afirmaram que receberam
pedidos de propina (36% destes pagaram a propina),
– 31% colaram em provas ou
concursos,
– 27% receberam troco a mais e
não devolveram,
– 26% admitiram passar no sinal
vermelho,
– 2% compraram carteira de
motorista,
– 68% compraram produtos piratas,
– 27% fizeram download de música
sem pagar,
– 18% compraram ingressos de cambistas,
– 15% fizeram download ilegal de
filmes.
Em suma, 83% dos entrevistados
admitiram ter praticado ao menos um ato ilegal. É curioso notar que entre a
população mais rica e com estudo, o percentual de infrações foi maior – 97% dos
que ganham mais de 10 salários mínimos disseram que cometeram infrações contra
76% dos mais pobres. Apesar disso, 74% dos brasileiros dizem sempre obedecer à
lei, mesmo que isso signifique perder oportunidades, 76% afirmam discordar da
frase “se quero ganhar dinheiro, nem sempre posso ser honesto”, e 56% acreditam
que os outros tentariam tirar proveito deles, caso tivessem chance.
Vários fatores ajudam a explicar
esta contradição, ou amnésia moral. Em primeiro lugar, a falta de um modelo
idôneo e ético por parte das autoridades políticas que comandam o país (o
exemplo vem sempre de cima!). A partir do momento em que a população assiste
diariamente ao surgimento e à banalização de infindáveis casos de corrupção
entre a classe política, ela também se vê no direito de “tirar a sua lasca”,
afinal, “se eles podem, por que eu não?”.
Outra raiz para este
comportamento negativo reside justamente na maneira como enxergamos as outras
pessoas, algo conhecido como “visão de alteridade” – a capacidade de ver ou
perceber o outro como uma pessoa igual a mim. A grande falha de caráter que nos
impele a adotar condutas questionáveis, que prejudicam outras pessoas em
detrimento de um benefício próprio, está enraizada no fato de que estamos
habituados a enxergar os outros como estranhos, como se as outras pessoas
pertencessem a uma raça alienígena, sem conexão alguma com a natureza e o
propósito de vida humano. Ao ver o quadro limitado desta forma, não me importo
em causar danos ou prejudicar os outros. Isto não me afeta, uma vez que não me
percebo como igual ao outro. Desta forma, a culpa nunca é minha, é sempre do
“outro”! Este pensamento distorcido e alienado permite às empresas e
empresários selar acordos antiéticos e adotar condutas que trazem enorme
prejuízo aos concorrentes, aos funcionários, ao meio ambiente e à sociedade
como um todo. Quando a única coisa que me move é a garantia dos meus
interesses, tudo vale para atingir meus objetivos, nem que eu precise passar
por cima do outro. Afinal, nesta situação, enxergo o outro como um “estranho” e
não como um “igual”.
“Só é possível falar numa ética
que promova a vida digna coletiva se eu for capaz de olhar o outro como outro,
e não como estranho.” - Mario Sergio Cortella
Fé na prática
A espiritualidade está
intimamente ligada aos princípios éticos que uma pessoa constrói e à consciência
moral que ela desenvolve e pratica ao longo da vida. E justamente o maior campo
de testes para nossos valores éticos e morais acontece diariamente no local de
trabalho. Não é dentro da igreja ou de um templo que eu afirmo minha fé e
minhas crenças em Deus ou no divino, mas toda vez que consigo superar os
obstáculos e dilemas morais que se sobrepõem a minha frente com dignidade,
honestidade e compaixão pelo outro. Aí reside o verdadeiro desafio da fé. Na
forma como lido com os problemas no dia-a-dia da empresa e na relação que
mantenho com minha família e meus amigos.
Não adianta nada fazer mil
orações a Deus, se não pratico a bondade e os valores espirituais positivos da
minha religião no cotidiano. Se não consigo exercer a comunhão verdadeira com
meu vizinho. Esta é a verdadeira comunhão com Deus. Esta noção de lealdade e
honestidade, antes de tudo com nós mesmos, revela minha espiritualidade e o
estágio da minha consciência moral, que me impele a fazer escolhas conscientes
com karma positivo para todos a minha volta. A consciência da nossa relação de
interdependência no mundo necessariamente nos impõe a responsabilidade de que
nossas ações têm impacto direto ou indireto sobre a vida das outras pessoas,
sejam elas colegas de trabalho, familiares, consumidores dos produtos que vendo
ou clientes de um serviço que realizo. Cabe à ética justamente o papel de
garantir, na condição de juiz de valor da minha consciência moral, que meus
atos não prejudiquem ou interfiram de maneira negativa na felicidade das outras
pessoas. Atos éticos e espirituais caminham lado a lado. Ao objetivar a
felicidade de outras pessoas, estes atos e intenções nos beneficiam também e
dão sentido às nossas vidas.
“Tudo me é permitido, mas nem
tudo convém”
Ética é o conjunto de princípios e valores de
conduta que orientam uma pessoa ou organização no momento de tomar uma decisão,
julgar e avaliar um cenário ou negócio. Quando a empresa diz ser ética, ela
está dizendo em outras palavras que não compactua com qualquer tipo de negócio
que possa ferir seus princípios. Ao se comprometer com isto, a empresa sinaliza
que à frente de suas relações comerciais e do lucro estão os seus valores. Isto
significa que esta mesma empresa pode vir a perder uma excelente oportunidade
de negócios que traga rendimentos fabulosos imediatos à organização, caso esta
relação comercial, de alguma maneira, macule seus princípios éticos. Ou pelo
menos deveria ser assim…
O significado da ética remonta à
origem da palavra, do grego ethos,
cujo significado é “morada do humano”. “Ethos é o lugar onde habitamos, é a
nossa casa. ‘Nesta casa não se faz isso, ‘nesta casa não se admite tal coisa’”,
explica Mario Sergio Cortella. Mais do que isto, na visão do filósofo, a ética
tem uma importância crucial ao traçar a fronteira daquilo que nos difere dos
animais, ao nos propiciar a liberdade de escolha, o nosso “livre arbítrio”.
Este livre arbítrio me dá o poder de fazer tudo o que minha consciência
desejar, mas me impõem consequências (olha o karma de novo) às minhas ações e
intenções. Poder e direito são coisas diferentes! Como Paulo define na Bíblia
(I Co.6.12), “tudo me é permitido, mas nem tudo convém”.
As três peneiras: Quero? Devo?
Posso?
Enquanto a ética transita na
esfera abstrata dos princípios, a moral se traduz em ação e se desdobra nas
diversas maneiras que utilizo para aplicar estes princípios na prática.
Enquanto a ética determina princípios que devem ser adotados e compartilhados
por um grupo de pessoas, a moral é individual, ou seja, é determinada pelo meu
capital moral, ou melhor, pela minha conduta particular a responder a um
determinado acontecimento ou circunstância. Para Cortella, nossa moral é
colocada à prova nas situações em que precisamos responder a três perguntas
essenciais da vida: “Quero? Devo? Posso?”.
Nossas respostas a estas três
simples questões determinam o grau do nosso capital ou inteligência moral e
revelam o código ético que conduz nossas vidas. Por exemplo, se trabalho no
departamento de compras de uma empresa e um de meus fornecedores me oferece
propina para que eu o escolha entre os demais concorrentes, logo as três
perguntas se apresentam à minha frente:
– Eu quero o dinheiro que me
está sendo oferecido? – Preciso realmente deste dinheiro e vou conseguir
conviver em paz com minha decisão? Este dinheiro me proporcionará um sono
tranquilo quando deitar minha cabeça no travesseiro à noite? É preciso ficar claro
que mesmo nos casos quando faço algo a contragosto, porque recebo ordens de
alguém (“ou aceitava o dinheiro ou estava na rua, porque lá na empresa as
coisas sempre funcionaram assim”), ainda assim, faço porque quero, afinal,
sempre temos uma escolha na vida: a escolha de dizer não!
– Devo aceitar o dinheiro? –
Devo me “vender” desta maneira? De alguma maneira, esta conduta contraria a
minha ética, me ofende e é uma afronta aos meus valores morais?
– Posso aceitar o dinheiro?
Existe algum código ético que me impeça de receber o dinheiro? Minha empresa,
meu chefe e os acionistas compactuam com este tipo de atitude? E eu, me sinto
bem com esta conduta? Aceitar o dinheiro fere a ética da minha empresa, do
mercado, prejudica os concorrentes e transita na contramão da minha moral? As
respostas a estes dilemas éticos e morais revelam o caráter e a integridade de
uma pessoa. Ética não é cosmética! O código ético e moral de uma empresa traduz
seu comprometimento com os valores que apregoa e deve pautar para valer (e não
só para inglês ver) a conduta de seus funcionários e todas as suas relações
comerciais. Se às vésperas de fechar um negócio muito lucrativo com um pretenso
parceiro comercial, descubro que esta empresa em questão emprega mão-de-obra
infantil e análoga à escrava, ou utiliza madeira de origem ilegal, proveniente
de desmatamento de área florestal protegida, devo levar o negócio adiante?
Quero? Devo? Posso? Vai depender justamente da bússola moral que orienta seus
princípios pessoais e profissionais.
Afinal, ninguém aguenta
trabalhar (pelo menos por muito tempo) em um local que não compactua com seus
valores pessoais. Você ainda pode ponderar que se fechar o negócio, será
promovido e que talvez, se deixar de fechar o negócio, muito provavelmente,
outra pessoa irá selar o acordo no seu lugar e você vai ficar chupando o dedo…
De novo o dilema se apresenta. Quero carregar este karma negativo comigo? Minha
consciência vai ficar em paz? As empresas devem apontar os caminhos certos a
serem seguidos. Muitas escolhas, entretanto, continuarão sendo estritamente
pessoais.
Dimensão interior
De acordo com o Dalai-Lama, a
fórmula para desenvolvermos nosso senso ético e nossos valores morais consiste
no exercício constante da empatia, ou seja, nossa percepção e sensibilidade em
relação ao sofrimento dos outros. À medida que nos solidarizamos com a dor dos
outros e diminuímos nossa tolerância em relação ao sofrimento alheio,
gradativamente passamos a aumentar nossos sentimentos de empatia, amor e compaixão
para com os outros.
Atingir esta maturidade, ou grau
de consciência elevado, por sua vez, é um exercício voluntário que requer
tempo, paciência, disposição e honestidade para olhar para dentro de si,
reconhecer e enfrentar seus males interiores. Este contato contínuo com nossa
dimensão interior, preconizado pela espiritualidade, nos capacita, ao longo do
tempo, a adquirir uma percepção real de que nossa mente, sentimentos,
experiências e sensações são elementos distintos que interferem na nossa consciência,
nas nossas escolhas e na maneira como enxergamos o mundo.
Pouco a pouco, as organizações
estão caminhando rumo a um estágio de maturidade que demonstra que
responsabilidade é fundamental para agregar valor a produtos e serviços, como
diferencial competitivo. Frente ao exposto, nota-se que a sociedade passou a trilhar
um caminho sem volta em que o valor de um produto ou serviço é e será cada vez
mais influenciado pelo respeito e comprometimento assumido pela empresa frente
a seus consumidores, e medido pelas responsabilidades que a organização passará
a assumir em prol de um bem coletivo.
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