Maurício M. Vilela – 16/01/2015
Muito se tem falado e escrito
sobre o ataque à revista francesa satírica Charlie Hebdo. A primeira reação foi
de horror à ideia de que cartunistas pudessem ser mortos devido a uma charge
que desenharam ou publicaram. Porém, com o tempo, a reação inicial foi
gradualmente substituída, no que se refere a algumas pessoas, por uma crítica à
intolerância não dos radicais muçulmanos que mataram sete pessoas, mas dos
chargistas, transformando as vítimas em culpados.
Essa mudança se deveu
basicamente a duas atuações: por um lado, jornalistas de esquerda,
esquecendo-se de que a Charlie é uma revista com nítido viés de esquerda,
acusaram o Ocidente, o Capitalismo, a discriminação contra muçulmanos, etc.
para justificar o ataque. Por outro lado, pessoas mais religiosas, ao
conhecerem melhor o trabalho da Charlie em relação às religiões em geral, com
charges mostrando Maria dando à luz ou outras ofensivas à santíssima trindade,
subitamente mudaram de opinião, passando a afirmar que ninguém pode
desrespeitar a religião das pessoas.
E como ficam os espíritas com
isso? Essa pergunta nem deveria existir. Um espírita não deveria se posicionar
a favor da morte de ninguém, nem mesmo de um criminoso, que dirá de um simples
cartunista. A ideia de um Deus que possa ser “ofendido” ou “ultrajado” e que
necessite que seus fiéis saiam em Sua defesa, nem deveria passar pela mente de
um espírita. Mas não foi o que vimos pelas redes sociais.
Muitos espíritas, acompanhando
postagens de outros cristãos, sejam católicos ou protestantes, começaram a
afirmar que “havia limite” para o humor e que os cartunistas haviam
ultrapassado esse limite, praticamente “pedindo” para ser mortos. Não
repararam, esses cristãos, que esse raciocínio é o mesmo que diz que uma mulher
de minissaia ou decote está pedindo para ser estuprada.
Esse súbito respeito aos
costumes dos muçulmanos, na certa, não passou pelo conhecimento, por parte
desses críticos, das milhares de meninas nigerianas sequestradas pelo grupo
islâmico Boko Haran, muitas delas estupradas, torturadas ou mortas. Considerar
que uma religião está acima do bem e do mal, e que tudo que diz respeito a ela
não pode ser criticado é voltar perigosamente no tempo.
Curiosamente, poucas pessoas
sabem que o que é considerado ofensivo para os muçulmanos é a simples
representação gráfica do profeta Maomé (devido a uma interpretação equivocada,
uma vez que o Corão não proíbe essa representação). As charges sobre Maomé
estavam muito longe do grau de ofensividade das charges anti-judeus ou
anti-cristãos. Inclusive a primeira edição após o ataque, trouxe uma charge de
Maomé somente chorando e está foi igualmente considerada ofensiva.
Mais recentemente, muitos
cristãos, particularmente católicos, passaram a condenar as charges graças a
uma infeliz declaração do Papa Francisco. Após uma condenação burocrática da
violência, o Papa condenou o ataque às religiões e usou de um exemplo triste.
Disse que, se um amigo ali presente, falasse algo negativo sobre sua mãe, ele –
o Papa – lhe daria um murro!
Há mais de 150 anos não víamos
um Sumo Pontífice falar em praticar uma violência, ainda mais em pessoa. Embora
não seja católico, eu esperaria que o Papa, diante de uma crítica à sua mãe,
perguntasse ao interlocutor os motivos que o faziam dizer aquilo, tentar
contra-argumentar, nunca imaginaria que sua reação seria um murro! Nesse
momento, sinto saudades de João Paulo II que, seguindo os ensinos do Mestre,
perdoou o homem que tentou assassiná-lo. A pergunta que nenhum jornalista fez
foi: qual seria a reação do Papa contra alguém que falasse mal do seu Deus?
Será que, para os radicais muçulmanos, as mortes não foram um simples “murro”
de resposta a uma agressão?
Defender a liberdade de
expressão quando estamos falando de algo que concordamos, não é vantagem
nenhuma. Defender realmente a liberdade de expressão é defender que pessoas
expressem exatamente aquilo que não concordamos. Como naquela frase, atribuída
a Voltaire (mas que parece não ser dele): “Posso não concordar com o que você
diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”.
E, novamente, nós espíritas?
Onde ficamos? O conhecimento de que vivemos num mundo imperfeito, cheio de
pessoas imperfeitas, deve permear nossas avaliações. Imaginar que pessoas,
talvez moralmente inferiores, que desrespeitam as religiões dos outros merecem
morrer é comprovar que nós também, não nos elevamos tanto moralmente assim.
Há algum tempo, ouvi uma pessoa
perguntar a um palestrante espírita, se Deus iria dar infinitas oportunidades
de encarnação a “essas pessoas” que ele via na Terra. E complementava dizendo:
“acho que não”. Ou seja, ele acreditava que, após algumas tentativas, Deus
simplesmente perderia a paciência e jogaria alguns espíritos no lixo, pois
“vieram com defeito”. Na época, cheguei a pensar que ainda bem que Deus dava infinitas
oportunidades de encarnação, pois eu mesmo não sabia quantas eu tinha levado
para chegar aonde cheguei e quantas ainda precisaria para melhorar um
pouquinho…
É claro que sabemos que ninguém
morre (exceto por suicídio) sem que isso esteja na sua programação. Nem podemos
admitir a ideia, defendida por alguns, de que os cartunistas foram suicidas ao
provocarem os muçulmanos. A morte por intolerância religiosa indica que, essas
pessoas talvez fossem espíritos endividados por terem, elas mesmas, matado
pessoas em nome de Deus, talvez antigos inquisidores reencarnados.
Alguns autores acreditam que,
espíritos que vieram de uma encarnação onde foram fanáticos religiosos e se
arrependeram disso, reencarnam com um horror instintivo à religião, o que
facilita que se tornem ateus, sendo necessário novas encarnações para que eles
encontrem um meio-termo. Se isso for correto, fica ainda mais forte a suspeita
de se tratarem de antigos inquisidores.
É claro que esse conhecimento
não pode, de modo algum, ser usado para que os espíritas relativizem o ataque.
Jesus já havia avisado que o escândalo (os assassinatos) ainda seria
necessário, mas que ai daquele por quem viesse o escândalo. Ou seja, mesmo que
estivesse na programação daquelas pessoas a morte violenta, seus assassinos não
fogem da culpa. Até porque estes radicais, agora, estão na mesma posição em que
estavam os antigos inquisidores.
Por isso, pensar que a solução
para o desrespeito às crenças alheias deve ser a morte, além de uma atitude
anti-cristã é, definitivamente, anti-espírita. Todos os dias vemos pessoas que,
após anos de ateísmo, finalmente começam a crer em Deus. Quem poderia dizer que
aqueles cartunistas não mudariam de ideia com o tempo?
Muitas crianças chegam numa
idade onde passam a ter vergonha dos pais. Acham que eles não sabem nada. Porém
se essa criança ouve um ataque de um coleguinha contra sua mãe, sairá em defesa
dela. Ataques nem sempre são ruins. Muitas vezes eles nos fazem repensar nossos
valores e fortalecem nossas crenças. Num mundo onde católicos estão às voltas
com escândalos de pedofilia, evangélicos lidando com pastores corruptos e
espíritas imersos num mar de pseudo-médiuns e mercantilismo, um veículo que nos
sacuda talvez seja necessário para acordarmos.
Talvez fosse essa a função da
Charlie Hebdo. Forçar os religiosos de todas as vertentes a se questionar sobre
o que é realmente a sua crença e o quanto eles a respeitam.
Esperamos, para o futuro, um
mundo onde não existam mais revistas como a Charlie Hebdo, especializada em
ataques a tudo e a todos, mas esperamos também um mundo onde, se existir uma
revista assim, os alvos dos ataques reajam de forma mais civilizada.
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