sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

OS ESPÍRITAS E O ATAQUE À CHARLIE HEBDO[1]




Maurício M. Vilela – 16/01/2015
 
Muito se tem falado e escrito sobre o ataque à revista francesa satírica Charlie Hebdo. A primeira reação foi de horror à ideia de que cartunistas pudessem ser mortos devido a uma charge que desenharam ou publicaram. Porém, com o tempo, a reação inicial foi gradualmente substituída, no que se refere a algumas pessoas, por uma crítica à intolerância não dos radicais muçulmanos que mataram sete pessoas, mas dos chargistas, transformando as vítimas em culpados.
Essa mudança se deveu basicamente a duas atuações: por um lado, jornalistas de esquerda, esquecendo-se de que a Charlie é uma revista com nítido viés de esquerda, acusaram o Ocidente, o Capitalismo, a discriminação contra muçulmanos, etc. para justificar o ataque. Por outro lado, pessoas mais religiosas, ao conhecerem melhor o trabalho da Charlie em relação às religiões em geral, com charges mostrando Maria dando à luz ou outras ofensivas à santíssima trindade, subitamente mudaram de opinião, passando a afirmar que ninguém pode desrespeitar a religião das pessoas.
E como ficam os espíritas com isso? Essa pergunta nem deveria existir. Um espírita não deveria se posicionar a favor da morte de ninguém, nem mesmo de um criminoso, que dirá de um simples cartunista. A ideia de um Deus que possa ser “ofendido” ou “ultrajado” e que necessite que seus fiéis saiam em Sua defesa, nem deveria passar pela mente de um espírita. Mas não foi o que vimos pelas redes sociais.
Muitos espíritas, acompanhando postagens de outros cristãos, sejam católicos ou protestantes, começaram a afirmar que “havia limite” para o humor e que os cartunistas haviam ultrapassado esse limite, praticamente “pedindo” para ser mortos. Não repararam, esses cristãos, que esse raciocínio é o mesmo que diz que uma mulher de minissaia ou decote está pedindo para ser estuprada.
Esse súbito respeito aos costumes dos muçulmanos, na certa, não passou pelo conhecimento, por parte desses críticos, das milhares de meninas nigerianas sequestradas pelo grupo islâmico Boko Haran, muitas delas estupradas, torturadas ou mortas. Considerar que uma religião está acima do bem e do mal, e que tudo que diz respeito a ela não pode ser criticado é voltar perigosamente no tempo.
Curiosamente, poucas pessoas sabem que o que é considerado ofensivo para os muçulmanos é a simples representação gráfica do profeta Maomé (devido a uma interpretação equivocada, uma vez que o Corão não proíbe essa representação). As charges sobre Maomé estavam muito longe do grau de ofensividade das charges anti-judeus ou anti-cristãos. Inclusive a primeira edição após o ataque, trouxe uma charge de Maomé somente chorando e está foi igualmente considerada ofensiva.
Mais recentemente, muitos cristãos, particularmente católicos, passaram a condenar as charges graças a uma infeliz declaração do Papa Francisco. Após uma condenação burocrática da violência, o Papa condenou o ataque às religiões e usou de um exemplo triste. Disse que, se um amigo ali presente, falasse algo negativo sobre sua mãe, ele – o Papa – lhe daria um murro!
Há mais de 150 anos não víamos um Sumo Pontífice falar em praticar uma violência, ainda mais em pessoa. Embora não seja católico, eu esperaria que o Papa, diante de uma crítica à sua mãe, perguntasse ao interlocutor os motivos que o faziam dizer aquilo, tentar contra-argumentar, nunca imaginaria que sua reação seria um murro! Nesse momento, sinto saudades de João Paulo II que, seguindo os ensinos do Mestre, perdoou o homem que tentou assassiná-lo. A pergunta que nenhum jornalista fez foi: qual seria a reação do Papa contra alguém que falasse mal do seu Deus? Será que, para os radicais muçulmanos, as mortes não foram um simples “murro” de resposta a uma agressão?
Defender a liberdade de expressão quando estamos falando de algo que concordamos, não é vantagem nenhuma. Defender realmente a liberdade de expressão é defender que pessoas expressem exatamente aquilo que não concordamos. Como naquela frase, atribuída a Voltaire (mas que parece não ser dele): “Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”.
E, novamente, nós espíritas? Onde ficamos? O conhecimento de que vivemos num mundo imperfeito, cheio de pessoas imperfeitas, deve permear nossas avaliações. Imaginar que pessoas, talvez moralmente inferiores, que desrespeitam as religiões dos outros merecem morrer é comprovar que nós também, não nos elevamos tanto moralmente assim.
Há algum tempo, ouvi uma pessoa perguntar a um palestrante espírita, se Deus iria dar infinitas oportunidades de encarnação a “essas pessoas” que ele via na Terra. E complementava dizendo: “acho que não”. Ou seja, ele acreditava que, após algumas tentativas, Deus simplesmente perderia a paciência e jogaria alguns espíritos no lixo, pois “vieram com defeito”. Na época, cheguei a pensar que ainda bem que Deus dava infinitas oportunidades de encarnação, pois eu mesmo não sabia quantas eu tinha levado para chegar aonde cheguei e quantas ainda precisaria para melhorar um pouquinho…
É claro que sabemos que ninguém morre (exceto por suicídio) sem que isso esteja na sua programação. Nem podemos admitir a ideia, defendida por alguns, de que os cartunistas foram suicidas ao provocarem os muçulmanos. A morte por intolerância religiosa indica que, essas pessoas talvez fossem espíritos endividados por terem, elas mesmas, matado pessoas em nome de Deus, talvez antigos inquisidores reencarnados.
Alguns autores acreditam que, espíritos que vieram de uma encarnação onde foram fanáticos religiosos e se arrependeram disso, reencarnam com um horror instintivo à religião, o que facilita que se tornem ateus, sendo necessário novas encarnações para que eles encontrem um meio-termo. Se isso for correto, fica ainda mais forte a suspeita de se tratarem de antigos inquisidores.
É claro que esse conhecimento não pode, de modo algum, ser usado para que os espíritas relativizem o ataque. Jesus já havia avisado que o escândalo (os assassinatos) ainda seria necessário, mas que ai daquele por quem viesse o escândalo. Ou seja, mesmo que estivesse na programação daquelas pessoas a morte violenta, seus assassinos não fogem da culpa. Até porque estes radicais, agora, estão na mesma posição em que estavam os antigos inquisidores.
Por isso, pensar que a solução para o desrespeito às crenças alheias deve ser a morte, além de uma atitude anti-cristã é, definitivamente, anti-espírita. Todos os dias vemos pessoas que, após anos de ateísmo, finalmente começam a crer em Deus. Quem poderia dizer que aqueles cartunistas não mudariam de ideia com o tempo?
Muitas crianças chegam numa idade onde passam a ter vergonha dos pais. Acham que eles não sabem nada. Porém se essa criança ouve um ataque de um coleguinha contra sua mãe, sairá em defesa dela. Ataques nem sempre são ruins. Muitas vezes eles nos fazem repensar nossos valores e fortalecem nossas crenças. Num mundo onde católicos estão às voltas com escândalos de pedofilia, evangélicos lidando com pastores corruptos e espíritas imersos num mar de pseudo-médiuns e mercantilismo, um veículo que nos sacuda talvez seja necessário para acordarmos.
Talvez fosse essa a função da Charlie Hebdo. Forçar os religiosos de todas as vertentes a se questionar sobre o que é realmente a sua crença e o quanto eles a respeitam.
Esperamos, para o futuro, um mundo onde não existam mais revistas como a Charlie Hebdo, especializada em ataques a tudo e a todos, mas esperamos também um mundo onde, se existir uma revista assim, os alvos dos ataques reajam de forma mais civilizada.

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