terça-feira, 18 de janeiro de 2022

JEAN RYZAK – A FORÇA DO REMORSO (Estudo Moral)[1]

 

Allan Kardec

 

Escrevem de Winschoten, em 2 de maio de 1867, ao Journal de Bruxelles:

Sábado passado, um operário cavouqueiro de nossa comuna apresentou-se à casa do guarda rural, onde intimou esse funcionário a prendê-lo e o entregar à justiça, diante da qual, dizia, deveria fazer a confissão de um crime por ele cometido há vários anos. Levado à presença do burgomestre, esse operário, que declarou chamar-se J. Ryzak, fez o seguinte relato:

Há cerca de doze anos eu era empregado nos trabalhos de dessecamento do lago de Harlem, quando um dia o cabo, pagando a minha quinzena, entregou-me o soldo devido a um de meus camaradas, com ordem de o entregar a este último. Gastei o dinheiro e, querendo evitar os dissabores das investigações, resolvi matar o amigo a quem acabava de roubar. Para isto, precipitei-o num dos abismos do lago, mas, vendo-o voltar à superfície e fazer esforços para nadar para a margem, dei-lhe duas facadas na nuca.

Tão logo cometi o crime, comecei a sentir remorso. Em breve tornou-se intolerável e foi-me impossível continuar no trabalho. Comecei por fugir do teatro do meu crime, e não achando em parte alguma do país nem paz nem trégua, embarquei para as Índias, onde me engajei no exército colonial. Mas lá, também, o espectro de minha vítima perseguiu-me noite e dia; minhas torturas eram incessantes e inauditas e, assim que terminou o meu tempo de serviço, uma força irresistível impeliu-me a voltar a Winschoten e a pedir à justiça o apaziguamento de minha consciência. Ela me dará, impondo-me a expiação que julgar conveniente. E se ordenar que eu morra, prefiro este suplício à tortura que me faz experimentar, há doze anos, a toda hora do dia e da noite, o carrasco que trago no peito.

 

Após esta declaração, e certificando-se de que o homem que estava à sua frente era são de espírito, o burgomestre requisitou a polícia, que prendeu Ryzak e relatou imediatamente o fato ao oficial de justiça.

Aqui se aguarda com emoção os desdobramentos que poderá ter este estranho acontecimento.

 

Instruções dos Espíritos sobre este Caso

(Sociedade de Paris, 10 de maio de 1867 – Médium: Srta. Lateltin)

 

Como sabeis, cada ser tem a liberdade do bem e do mal, o que chamais de livre-arbítrio. O homem tem em si a consciência, que o adverte quando fez bem ou fez mal, cometeu uma má ação ou descurou de fazer o bem; sua consciência que, como guardiã vigilante, encarregada de velar por ele, aprova ou desaprova sua conduta. Muitas vezes acontece que se mostre rebelde à sua voz, que repila suas inspirações; quer sufocá-la pelo esquecimento; mas jamais ela é completamente aniquilada para que, num dado momento, não desperte mais forte e mais poderosa e não exerça um severo controle de vossas ações.

A consciência produz dois efeitos diferentes: a satisfação de ter agido bem, a paz que deixa a consciência do dever cumprido, e o remorso que penetra e tortura quando se praticou uma ação reprovada por Deus, pelos homens ou pela honra. É, propriamente falando, o senso moral. O remorso é como uma serpente de mil voltas, que circula em redor do coração e o destrói; é o remorso que sempre faz ouvir as mesmas inflexões e vos grita: Fizeste uma ação má; deverás ser punido; teu castigo só cessará depois da reparação. E quando, a este suplício de uma consciência atormentada, vem juntar-se a visão constante da vítima, da pessoa a quem se fez o mal; quando, sem repouso nem trégua, sua presença exprobra ao culpado sua conduta indigna, repetindo-lhe incessantemente que sofrerá enquanto não tiver expiado e reparado o mal que fez, o suplício se torna intolerável. É então que, para pôr fim às suas torturas, seu orgulho se dobra e ele confessa seus crimes. O mal traz em si a sua pena, pelo remorso que deixa e pelos reproches feitos pela só presença daqueles contra os quais se agiu mal.

Crede-me, escutai sempre essa voz que vos adverte quando estais prestes a falir; não a sufoqueis pela revolta do vosso orgulho; e se falirdes, apressai-vos em reparar o mal, sem o que o remorso será a vossa punição. Quanto mais vos demorardes, mais penosa será a reparação e mais prolongado o suplício.

Um Espírito

 

(Mesma sessão – Médium: Sra. B...)

 

Hoje tendes um exemplo notável da punição que sofrem, mesmo na Terra, os que se tornaram culpados de uma ação má. Não é somente no mundo invisível que a visão da vítima vem atormentar o assassino para o forçar ao arrependimento; lá onde a justiça dos homens não começou a expiação, a justiça divina faz começar, à revelia de todos, o mais lento e o mais terrível dos suplícios, o mais temível castigo.

Há certas pessoas que dizem que a punição infligida ao criminoso no mundo dos Espíritos, e que consiste na visão contínua de seu crime, não pode ser muito eficaz, e que em nenhum caso não é esta punição que, por si só, determina o arrependimento. Dizem que um naturalmente perverso, como é um criminoso, não pode senão amargurar-se cada vez mais por essa visão, e assim se tornando pior. Os que assim falam não fazem ideia do que pode tornar-se um tal castigo; não sabem quanto é cruel esse espetáculo contínuo de uma ação que jamais se queria haver cometido. Certamente vemos alguns criminosos empedernidos, mas muitas vezes é só por orgulho e por quererem parecer mais fortes que a mão que os castiga; é para fazer crer que não se deixam abater pela visão de imagens vãs; mas essa falsa coragem não tem longa duração, pois logo os vemos fraquejar em presença desse suplício, que deve muito de seus efeitos à sua lentidão e persistência. Não há orgulho que possa resistir a esta ação, semelhante à da gota d’água sobre a rocha; por mais dura que possa ser a pedra, é inevitavelmente atacada, desagregada, reduzida a pó.

É assim que o orgulho, que faz com que esses infelizes se obstinem contra seu soberano senhor, mais cedo ou mais tarde é abatido, e que o arrependimento, enfim, pode ter acesso à sua alma. Como sabem que a origem de seus sofrimentos está em sua falta, pedem para repará-la, a fim de trazer um abrandamento a seus males.

Aos que pudessem duvidar, não tendes senão que citar o fato que vos foi assinalado esta noite; ali não é só a hipótese, não é mais o só ensinamento dos Espíritos, mas um exemplo de certo modo palpável, que se vos apresenta. Nesse exemplo, o castigo seguiu de perto a falta e foi tal que, ao cabo de vários anos, forçou o culpado a pedir a expiação de seu crime à justiça humana, e ele mesmo disse que todas as penas, a própria morte, lhe pareceriam menos cruéis do que aquilo que sofria, no momento em que se entregou à justiça.

Um Espírito

 

Observação – Sem ir buscar aplicações do remorso nos grandes criminosos, que são exceções na sociedade, nós as encontramos nas mais ordinárias circunstâncias da vida. É esse sentimento que leva todo indivíduo a afastar-se daqueles contra os quais sente que tem censuras a se fazer; em presença deles sente-se mal; se a falta não for conhecida, ele teme ser adivinhado; parece-lhe que um olhar pode penetrar o fundo de sua consciência; vê em toda palavra, em todo gesto uma alusão à sua pessoa, razão por que, desde que se sente desmascarado, retira-se. O ingrato também foge de seu benfeitor, já que sua visão é uma censura incessante, da qual em vão procura desembaraçar-se, pois uma voz íntima lhe grita no fundo da consciência que ele é culpado.

Se o remorso já é um suplício na Terra, quão maior não será esse suplício no mundo dos Espíritos, onde não é possível subtrair-se à vista daqueles a quem se ofendeu! Felizes os que, tendo reparado já nesta vida, poderão sem receio enfrentar todos os olhares no mundo onde nada é oculto.

O remorso é uma consequência do desenvolvimento do senso moral; não existe onde o senso moral ainda se acha em estado latente. É por isto que os povos selvagens e bárbaros cometem sem remorsos as piores ações. Aquele, pois, que se pretendesse inacessível ao remorso, assimilar-se-ia ao bruto. À medida que o homem progride, o senso moral torna-se mais apurado; ofusca-se ao menor desvio do reto caminho. Daí o remorso, que é o primeiro passo para o retorno ao bem.



[1] Revista Espírita – agosto/1867 – Allan Kardec

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