Allan Kardec
Escrevem de Winschoten, em 2 de
maio de 1867, ao Journal de Bruxelles:
Sábado passado, um operário
cavouqueiro de nossa comuna apresentou-se à casa do guarda rural, onde intimou
esse funcionário a prendê-lo e o entregar à justiça, diante da qual, dizia,
deveria fazer a confissão de um crime por ele cometido há vários anos. Levado à
presença do burgomestre, esse operário, que declarou chamar-se J. Ryzak, fez o
seguinte relato:
Há cerca de doze anos eu era empregado nos trabalhos de
dessecamento do lago de Harlem, quando um dia o cabo, pagando a minha quinzena,
entregou-me o soldo devido a um de meus camaradas, com ordem de o entregar a
este último. Gastei o dinheiro e, querendo evitar os dissabores das
investigações, resolvi matar o amigo a quem acabava de roubar. Para isto,
precipitei-o num dos abismos do lago, mas, vendo-o voltar à superfície e fazer
esforços para nadar para a margem, dei-lhe duas facadas na nuca.
Tão logo cometi o crime, comecei a sentir remorso. Em
breve tornou-se intolerável e foi-me impossível continuar no trabalho. Comecei
por fugir do teatro do meu crime, e não achando em parte alguma do país nem paz
nem trégua, embarquei para as Índias, onde me engajei no exército colonial. Mas
lá, também, o espectro de minha vítima perseguiu-me noite e dia; minhas
torturas eram incessantes e inauditas e, assim que terminou o meu tempo de
serviço, uma força irresistível impeliu-me a voltar a Winschoten e a pedir à justiça
o apaziguamento de minha consciência. Ela me dará, impondo-me a expiação que
julgar conveniente. E se ordenar que eu morra, prefiro este suplício à tortura
que me faz experimentar, há doze anos, a toda hora do dia e da noite, o
carrasco que trago no peito.
Após esta declaração, e
certificando-se de que o homem que estava à sua frente era são de espírito, o
burgomestre requisitou a polícia, que prendeu Ryzak e relatou imediatamente o
fato ao oficial de justiça.
Aqui se aguarda com emoção os
desdobramentos que poderá ter este estranho acontecimento.
Instruções dos
Espíritos sobre este Caso
(Sociedade de Paris, 10 de maio de 1867 – Médium:
Srta. Lateltin)
Como sabeis, cada ser tem a liberdade do bem e do mal,
o que chamais de livre-arbítrio. O homem tem em si a consciência, que o adverte
quando fez bem ou fez mal, cometeu uma má ação ou descurou de fazer o bem; sua
consciência que, como guardiã vigilante, encarregada de velar por ele, aprova
ou desaprova sua conduta. Muitas vezes acontece que se mostre rebelde à sua
voz, que repila suas inspirações; quer sufocá-la pelo esquecimento; mas jamais
ela é completamente aniquilada para que, num dado momento, não desperte mais
forte e mais poderosa e não exerça um severo controle de vossas ações.
A consciência produz dois efeitos diferentes: a
satisfação de ter agido bem, a paz que deixa a consciência do dever cumprido, e
o remorso que penetra e tortura quando se praticou uma ação reprovada por Deus,
pelos homens ou pela honra. É, propriamente falando, o senso moral. O remorso é
como uma serpente de mil voltas, que circula em redor do coração e o destrói; é
o remorso que sempre faz ouvir as mesmas inflexões e vos grita: Fizeste uma
ação má; deverás ser punido; teu castigo só cessará depois da reparação. E
quando, a este suplício de uma consciência atormentada, vem juntar-se a visão
constante da vítima, da pessoa a quem se fez o mal; quando, sem repouso nem
trégua, sua presença exprobra ao culpado sua conduta indigna, repetindo-lhe
incessantemente que sofrerá enquanto não tiver expiado e reparado o mal que
fez, o suplício se torna intolerável. É então que, para pôr fim às suas
torturas, seu orgulho se dobra e ele confessa seus crimes. O mal traz em si a
sua pena, pelo remorso que deixa e pelos reproches feitos pela só presença
daqueles contra os quais se agiu mal.
Crede-me, escutai sempre essa voz que vos adverte
quando estais prestes a falir; não a sufoqueis pela revolta do vosso orgulho; e
se falirdes, apressai-vos em reparar o mal, sem o que o remorso será a vossa
punição. Quanto mais vos demorardes, mais penosa será a reparação e mais
prolongado o suplício.
Um Espírito
(Mesma sessão – Médium: Sra. B...)
Hoje tendes um exemplo notável da punição que sofrem,
mesmo na Terra, os que se tornaram culpados de uma ação má. Não é somente no
mundo invisível que a visão da vítima vem atormentar o assassino para o forçar
ao arrependimento; lá onde a justiça dos homens não começou a expiação, a
justiça divina faz começar, à revelia de todos, o mais lento e o mais terrível
dos suplícios, o mais temível castigo.
Há certas pessoas que dizem que a punição infligida ao criminoso
no mundo dos Espíritos, e que consiste na visão contínua de seu crime, não pode
ser muito eficaz, e que em nenhum caso não é esta punição que, por si só,
determina o arrependimento. Dizem que um naturalmente perverso, como é um
criminoso, não pode senão amargurar-se cada vez mais por essa visão, e assim se
tornando pior. Os que assim falam não fazem ideia do que pode tornar-se um tal
castigo; não sabem quanto é cruel esse espetáculo contínuo de uma ação que
jamais se queria haver cometido. Certamente vemos alguns criminosos
empedernidos, mas muitas vezes é só por orgulho e por quererem parecer mais fortes
que a mão que os castiga; é para fazer crer que não se deixam abater pela visão
de imagens vãs; mas essa falsa coragem não tem longa duração, pois logo os
vemos fraquejar em presença desse suplício, que deve muito de seus efeitos à
sua lentidão e persistência. Não há orgulho que possa resistir a esta ação, semelhante
à da gota d’água sobre a rocha; por mais dura que possa ser a pedra, é
inevitavelmente atacada, desagregada, reduzida a pó.
É assim que o orgulho, que faz com que esses infelizes
se obstinem contra seu soberano senhor, mais cedo ou mais tarde é abatido, e que
o arrependimento, enfim, pode ter acesso à sua alma. Como sabem que a origem de
seus sofrimentos está em sua falta, pedem para repará-la, a fim de trazer um
abrandamento a seus males.
Aos que pudessem duvidar, não tendes senão que citar o
fato que vos foi assinalado esta noite; ali não é só a hipótese, não é mais o
só ensinamento dos Espíritos, mas um exemplo de certo modo palpável, que se vos
apresenta. Nesse exemplo, o castigo seguiu de perto a falta e foi tal que, ao
cabo de vários anos, forçou o culpado a pedir a expiação de seu crime à justiça
humana, e ele mesmo disse que todas as penas, a própria morte, lhe pareceriam menos
cruéis do que aquilo que sofria, no momento em que se entregou à justiça.
Um Espírito
Observação – Sem ir buscar aplicações do remorso nos grandes
criminosos, que são exceções na sociedade, nós as encontramos nas mais
ordinárias circunstâncias da vida. É esse sentimento que leva todo indivíduo a
afastar-se daqueles contra os quais sente que tem censuras a se fazer; em
presença deles sente-se mal; se a falta não for conhecida, ele teme ser
adivinhado; parece-lhe que um olhar pode penetrar o fundo de sua consciência;
vê em toda palavra, em todo gesto uma alusão à sua pessoa, razão por que, desde
que se sente desmascarado, retira-se. O ingrato também foge de seu benfeitor,
já que sua visão é uma censura incessante, da qual em vão procura
desembaraçar-se, pois uma voz íntima lhe grita no fundo da consciência que ele
é culpado.
Se o remorso já é um suplício na Terra, quão maior não será
esse suplício no mundo dos Espíritos, onde não é possível subtrair-se à vista
daqueles a quem se ofendeu! Felizes os que, tendo reparado já nesta vida,
poderão sem receio enfrentar todos os olhares no mundo onde nada é oculto.
O remorso é uma consequência do desenvolvimento do senso
moral; não existe onde o senso moral ainda se acha em estado latente. É por
isto que os povos selvagens e bárbaros cometem sem remorsos as piores ações.
Aquele, pois, que se pretendesse inacessível ao remorso, assimilar-se-ia ao
bruto. À medida que o homem progride, o senso moral torna-se mais apurado;
ofusca-se ao menor desvio do reto caminho. Daí o remorso, que é o primeiro
passo para o retorno ao bem.
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