Sem lembrar aqui os numerosos
fenômenos que ressaltam do Espiritismo experimental, provando, à saciedade, a independência
do Espírito e da matéria, chamaremos a atenção para um fato vulgar, do qual não
se tem, ao que saibamos, tirado todas as consequências e que, no entanto, é
susceptível de impressionar todo observador sério. Queremos falar do que se passa
no sonambulismo natural ou artificial, nas estranhas faculdades que se
desenvolvem nos catalépticos, no não menos estranho fenômeno da dupla vista, hoje perfeitamente comprovado,
até pelos incrédulos, mas cuja causa não buscaram, embora valesse a pena. A
seguinte carta, a nós dirigida por distinto médico do Tarn, prova por qual
encadeamento de ideias um homem que reflete pode passar da incredulidade à
crença, apenas com o auxílio do raciocínio e da observação feita com boa-fé.
Senhor,
Confundido na massa
dos desconfiados e dos incrédulos, a leitura de O Livro dos Espíritos produziu
em mim vivíssima impressão. A doce satisfação que me ficou de sua leitura fez nascer
o desejo muito natural de crer, sem qualquer restrição, em todos os ensinos
dados pelos Espíritos nesse livro. A fim de alcançar tal objetivo desejava
constatar por mim mesmo a realidade das comunicações, para o que envidei
esforços por me tornar médium; como não o consegui, tive de parar as pesquisas.
Cansado de viver na incerteza, resolvi reportar-me às observações alheias; mas,
por natureza, como não me deixo facilmente convencer, sentia necessidade de
conhecer, a fim de poder julgar de sua realidade.
Depois de ter
perlustrado os quatro primeiros anos da Revista Espírita e, principalmente,
depois de haver notado com que precauções os numerosos fatos são ali relatados;
depois de verificar que as manifestações dos Espíritos e suas comunicações são
sempre constatadas por pessoas honradas, desinteressadas e dignas de fé, já não
é possível conservar qualquer dúvida quanto à sua autenticidade.
Todavia, uma vez
admitidas as comunicações, cabia-me ainda fazer uma ideia do grau de confiança
que se deveria conceder às revelações, sobretudo aquelas que constituem a base
da filosofia espírita. Nessa apreciação, as chamas do inferno não me poderiam
deter, a menos que negasse a bondade infinita de Deus.
A diferença entre
religiões também não criava obstáculos à minha lógica, considerando-se que,
semeando o bem, o mais elementar bom-senso diz que não se pode colher o mal.
Mas ainda me restava o ponto capital da reencarnação. Sobre isto o sonambulismo
foi-me de grande valia e, se não resolve inteiramente a questão, em minha opinião
a torna tão provável que seria preciso uma dose muito grande de má vontade para
não a admitir. Antes de mais, se a existência da alma já não estivesse
suficientemente demonstrada pelas manifestações e comunicações dos Espíritos,
seria claramente provada pela visão a distância e através dos corpos opacos,
que não se explica senão por este meio.
Em seguida, e pondo
de lado as faculdades da alma desprendida da matéria, tais como a visão a distância,
a transmissão do pensamento etc., o sonambulismo nos leva à descoberta no
sensitivo de conhecimentos muito mais extensos que os que possui em vigília.
Resulta deste fato que a alma deve ser mais antiga que o corpo, porque, se
criada ao mesmo tempo que este, não poderia ter conhecimentos diferentes dos adquiridos
durante a existência do corpo.
Mas, depois de ter
constatado que a alma é mais antiga que o corpo, a gente não sente nenhuma
repugnância em lhe conceder outras encarnações, porque se a existência atual
não for o começo, nada prova que seja a última; ao contrário, tornam-se muito
naturais e, mesmo, indispensáveis. Há mais: o sonâmbulo em estado de vigília
geralmente não guarda nenhuma lembrança do que disse ou fez durante o sono;
contudo, durante o sono reconhece sem dificuldade tudo quanto fez, não só
durante os sonos precedentes, mas, também, em vigília. Não é o quadro exato da
existência da alma em seus numerosos estados errantes e encarnados, com suas
lembranças e esquecimentos?
Filho do povo, minha
instrução, extremamente medíocre e adquirida por mim mesmo, remonta apenas a um
terço de minha idade, que é de quarenta e dois anos. Assim, parece-me que uma
pena, por menos experimentada que fosse, ressaltaria muito mais claramente, a
esse propósito, as verdades que tentei descobrir. Entretanto, por mais
imperfeitas que sejam estas comparações, bastaram para determinar minha
convicção e eu me sentiria feliz se as julgásseis dignas de poder exercer a
mesma influência sobre outros.
Não obstante minha
convicção seja de data muito recente, começou a produzir frutos e,
independentemente das felizes modificações que já trouxe à minha maneira de
ser, é para mim a fonte de mui suaves consolações. Essas mudanças felizes se devem
unicamente ao conhecimento de vossas obras. Assim, senhor, eu rogo vos digneis
aceitar o eterno reconhecimento daquele que, no futuro, deseja ser contado no
número dos vossos mais fervorosos adeptos.
G...
A visão a distância, as
impressões sentidas pelo sonâmbulo, conforme o meio que vai visitar, provam que
uma parte de seu ser é transportada. Ora, desde que não é o seu corpo material,
visível, que não mudou de lugar, só pode ser o corpo fluídico, invisível e
sensível. Não é o fato mais patente da dupla existência corpórea e espiritual?
Mas, sem falar desta singular faculdade, que não é geral, basta observar o que
se passa nos mais vulgares sonâmbulos. A dualidade se manifesta de maneira não menos
evidente, como observa o nosso correspondente, no fenômeno do esquecimento ao
despertar. Não há ninguém que, tendo observado os efeitos magnéticos, não tenha
constatado a instantaneidade de tal esquecimento. Um sonâmbulo fala, sua conversa
é perfeitamente encadeada e racional; despertam-no de súbito, no meio de uma
frase, até mesmo de uma palavra, que não chega a concluir; em seguida, se se
lhe perguntar o que acaba de dizer, se se lhe lembrar a palavra começada,
responderá que nada disse. Se o pensamento fosse produto da matéria cerebral,
por que tal esquecimento, desde que a matéria está sempre lá e é sempre a mesma?
Por que basta um instante para mudar o curso das ideias?
Mas o que é ainda mais
característico é a recordação perfeita, num novo sono, daquilo que foi dito e
feito num sono precedente, às vezes com um ano de intervalo. Só este fato
provaria que, ao lado da vida do corpo, há a vida da alma, e que a alma pode
agir e pensar de maneira independente. Se pode manifestar tal independência durante
a vida do corpo, do qual sofre mais ou menos os entraves, com mais forte razão
o poderá, quando goza de sua inteira liberdade.
As consequências tiradas desses
fenômenos por nosso correspondente para provar a anterioridade da alma e a
pluralidade das existências são perfeitamente lógicas. Os fenômenos sonambúlicos,
como tantos outros, parecem trazidos pela Providência para nos pôr na via do
mistério do pensamento. No entanto, a Ciência não se digna levá-los em
consideração; para os ver, não desviará os olhos de um pólipo, de um cogumelo
ou de um filete nervoso. É verdade que a alma não se mostra à ponta de um escalpelo,
nem sob uma lupa; mas, como se julga a causa pelos efeitos, os efeitos da alma
estão a todo instante sob os vossos olhos e não os olhais; caminharíeis cem
léguas para observar um fenômeno astronômico sem utilidade prática, ao passo
que só tendes sarcasmos e desdém quando se trata dos fenômenos da alma, que
estão ao vosso alcance, e que interessam a toda a Humanidade, em seu presente e
no seu futuro.
Se dificilmente a ciência
oficial renuncia a seus preconceitos, seria injusto fazer cair a
responsabilidade sobre todos os sábios. Entre eles manifesta-se um movimento de
bom augúrio, em relação às ideias novas; as adesões individuais e tácitas são numerosas;
mas, talvez, mais que outros, ainda temem pôr-se em evidência. Bastará que
algumas sumidades ergam a bandeira para fazer calar os escrúpulos alheios,
impor silêncio aos engraçadinhos e fazer refletirem os agressores interessados.
É o que não tardaremos a ver.
[1] Revista
Espírita – Julho/1863 – Allan Kardec
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