quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Dualidade do Homem Provada pelo Sonambulismo[1]



Sem lembrar aqui os numerosos fenômenos que ressaltam do Espiritismo experimental, provando, à saciedade, a independência do Espírito e da matéria, chamaremos a atenção para um fato vulgar, do qual não se tem, ao que saibamos, tirado todas as consequências e que, no entanto, é susceptível de impressionar todo observador sério. Queremos falar do que se passa no sonambulismo natural ou artificial, nas estranhas faculdades que se desenvolvem nos catalépticos, no não menos estranho fenômeno da dupla vista, hoje perfeitamente comprovado, até pelos incrédulos, mas cuja causa não buscaram, embora valesse a pena. A seguinte carta, a nós dirigida por distinto médico do Tarn, prova por qual encadeamento de ideias um homem que reflete pode passar da incredulidade à crença, apenas com o auxílio do raciocínio e da observação feita com boa-fé.
Senhor,
Confundido na massa dos desconfiados e dos incrédulos, a leitura de O Livro dos Espíritos produziu em mim vivíssima impressão. A doce satisfação que me ficou de sua leitura fez nascer o desejo muito natural de crer, sem qualquer restrição, em todos os ensinos dados pelos Espíritos nesse livro. A fim de alcançar tal objetivo desejava constatar por mim mesmo a realidade das comunicações, para o que envidei esforços por me tornar médium; como não o consegui, tive de parar as pesquisas. Cansado de viver na incerteza, resolvi reportar-me às observações alheias; mas, por natureza, como não me deixo facilmente convencer, sentia necessidade de conhecer, a fim de poder julgar de sua realidade.
Depois de ter perlustrado os quatro primeiros anos da Revista Espírita e, principalmente, depois de haver notado com que precauções os numerosos fatos são ali relatados; depois de verificar que as manifestações dos Espíritos e suas comunicações são sempre constatadas por pessoas honradas, desinteressadas e dignas de fé, já não é possível conservar qualquer dúvida quanto à sua autenticidade.
Todavia, uma vez admitidas as comunicações, cabia-me ainda fazer uma ideia do grau de confiança que se deveria conceder às revelações, sobretudo aquelas que constituem a base da filosofia espírita. Nessa apreciação, as chamas do inferno não me poderiam deter, a menos que negasse a bondade infinita de Deus.
A diferença entre religiões também não criava obstáculos à minha lógica, considerando-se que, semeando o bem, o mais elementar bom-senso diz que não se pode colher o mal. Mas ainda me restava o ponto capital da reencarnação. Sobre isto o sonambulismo foi-me de grande valia e, se não resolve inteiramente a questão, em minha opinião a torna tão provável que seria preciso uma dose muito grande de má vontade para não a admitir. Antes de mais, se a existência da alma já não estivesse suficientemente demonstrada pelas manifestações e comunicações dos Espíritos, seria claramente provada pela visão a distância e através dos corpos opacos, que não se explica senão por este meio.
Em seguida, e pondo de lado as faculdades da alma desprendida da matéria, tais como a visão a distância, a transmissão do pensamento etc., o sonambulismo nos leva à descoberta no sensitivo de conhecimentos muito mais extensos que os que possui em vigília. Resulta deste fato que a alma deve ser mais antiga que o corpo, porque, se criada ao mesmo tempo que este, não poderia ter conhecimentos diferentes dos adquiridos durante a existência do corpo.
Mas, depois de ter constatado que a alma é mais antiga que o corpo, a gente não sente nenhuma repugnância em lhe conceder outras encarnações, porque se a existência atual não for o começo, nada prova que seja a última; ao contrário, tornam-se muito naturais e, mesmo, indispensáveis. Há mais: o sonâmbulo em estado de vigília geralmente não guarda nenhuma lembrança do que disse ou fez durante o sono; contudo, durante o sono reconhece sem dificuldade tudo quanto fez, não só durante os sonos precedentes, mas, também, em vigília. Não é o quadro exato da existência da alma em seus numerosos estados errantes e encarnados, com suas lembranças e esquecimentos?
Filho do povo, minha instrução, extremamente medíocre e adquirida por mim mesmo, remonta apenas a um terço de minha idade, que é de quarenta e dois anos. Assim, parece-me que uma pena, por menos experimentada que fosse, ressaltaria muito mais claramente, a esse propósito, as verdades que tentei descobrir. Entretanto, por mais imperfeitas que sejam estas comparações, bastaram para determinar minha convicção e eu me sentiria feliz se as julgásseis dignas de poder exercer a mesma influência sobre outros.
Não obstante minha convicção seja de data muito recente, começou a produzir frutos e, independentemente das felizes modificações que já trouxe à minha maneira de ser, é para mim a fonte de mui suaves consolações. Essas mudanças felizes se devem unicamente ao conhecimento de vossas obras. Assim, senhor, eu rogo vos digneis aceitar o eterno reconhecimento daquele que, no futuro, deseja ser contado no número dos vossos mais fervorosos adeptos.
G...
A visão a distância, as impressões sentidas pelo sonâmbulo, conforme o meio que vai visitar, provam que uma parte de seu ser é transportada. Ora, desde que não é o seu corpo material, visível, que não mudou de lugar, só pode ser o corpo fluídico, invisível e sensível. Não é o fato mais patente da dupla existência corpórea e espiritual? Mas, sem falar desta singular faculdade, que não é geral, basta observar o que se passa nos mais vulgares sonâmbulos. A dualidade se manifesta de maneira não menos evidente, como observa o nosso correspondente, no fenômeno do esquecimento ao despertar. Não há ninguém que, tendo observado os efeitos magnéticos, não tenha constatado a instantaneidade de tal esquecimento. Um sonâmbulo fala, sua conversa é perfeitamente encadeada e racional; despertam-no de súbito, no meio de uma frase, até mesmo de uma palavra, que não chega a concluir; em seguida, se se lhe perguntar o que acaba de dizer, se se lhe lembrar a palavra começada, responderá que nada disse. Se o pensamento fosse produto da matéria cerebral, por que tal esquecimento, desde que a matéria está sempre lá e é sempre a mesma? Por que basta um instante para mudar o curso das ideias?
Mas o que é ainda mais característico é a recordação perfeita, num novo sono, daquilo que foi dito e feito num sono precedente, às vezes com um ano de intervalo. Só este fato provaria que, ao lado da vida do corpo, há a vida da alma, e que a alma pode agir e pensar de maneira independente. Se pode manifestar tal independência durante a vida do corpo, do qual sofre mais ou menos os entraves, com mais forte razão o poderá, quando goza de sua inteira liberdade.
As consequências tiradas desses fenômenos por nosso correspondente para provar a anterioridade da alma e a pluralidade das existências são perfeitamente lógicas. Os fenômenos sonambúlicos, como tantos outros, parecem trazidos pela Providência para nos pôr na via do mistério do pensamento. No entanto, a Ciência não se digna levá-los em consideração; para os ver, não desviará os olhos de um pólipo, de um cogumelo ou de um filete nervoso. É verdade que a alma não se mostra à ponta de um escalpelo, nem sob uma lupa; mas, como se julga a causa pelos efeitos, os efeitos da alma estão a todo instante sob os vossos olhos e não os olhais; caminharíeis cem léguas para observar um fenômeno astronômico sem utilidade prática, ao passo que só tendes sarcasmos e desdém quando se trata dos fenômenos da alma, que estão ao vosso alcance, e que interessam a toda a Humanidade, em seu presente e no seu futuro.
Se dificilmente a ciência oficial renuncia a seus preconceitos, seria injusto fazer cair a responsabilidade sobre todos os sábios. Entre eles manifesta-se um movimento de bom augúrio, em relação às ideias novas; as adesões individuais e tácitas são numerosas; mas, talvez, mais que outros, ainda temem pôr-se em evidência. Bastará que algumas sumidades ergam a bandeira para fazer calar os escrúpulos alheios, impor silêncio aos engraçadinhos e fazer refletirem os agressores interessados. É o que não tardaremos a ver.


[1] Revista Espírita – Julho/1863 – Allan Kardec

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