terça-feira, 10 de maio de 2016

ANTE A DOR DA MORTE[1]



Christiano Torchi[2]
 

Por que razão a morte, sendo um fenômeno tão natural, que ocorre com frequência, causa tanto impacto em nossas vidas, sobretudo quando ela ceifa a vida de nossos entes queridos, sejam eles familiares ou amigos? Se meditarmos seriamente sobre esta questão, certamente chegaremos à conclusão de que o modo como enfrentamos a morte tem muito a ver com a maneira pela qual vivemos.
Habitando em um mundo de provas e expiações e encarnados em um corpo ainda denso, vivemos intensamente a vida animal, esquecidos de que somos Espíritos encarnados de passagem pela Terra. Em consequência disso, apegamo-nos demasiadamente às ilusões terrenas que a vida na matéria nos proporciona.
Esmagadora maioria dos habitantes de nosso planeta tem severas dificuldades para lidar com a morte por desconhecer ou desprezar a própria natureza espiritual. Quem sou, de onde vim, o que estou fazendo aqui e para onde vou?
Há religiões que, muito embora se preocupem com o futuro espiritual das almas, apresentam aos seus seguidores uma visão bem superficial, quando não distorcida, sobre o que nos espera depois da morte. Prometem um céu beatífico para aqueles que cumprirem ritos de cultos externos ou um inferno ardente para aqueles que não se comportarem de acordo com determinados dogmas teológicos. A ciência médica, por seu lado, enclausurada em preceitos materialistas da Academia, apesar de ter a sublime missão de cuidar da saúde e salvar vidas, também não consegue oferecer aos pacientes preparação psicológica à altura desse grave momento de cada um, pelo fato de desconhecer e até negar a realidade espiritual, concentrando no corpo perecível todas as aspirações de cura e bem-estar, panorama que, felizmente, vai aos poucos mudando com o trabalho pioneiro e corajoso das Associações Médicos-Espíritas e de outras organizações e cientistas independentes, no Brasil e exterior.
Em boa hora, a Doutrina Espírita veio em socorro da humanidade, demonstrando por provas irrecusáveis que não somos um aglomerado de células, que a vida continua e tem um propósito sagrado para todas as criaturas, independentemente de sua condição econômico-social e de suas crenças. São os próprios seres que partiram que, por intermédio da mediunidade, vêm trazer seu testemunho de saudade, amor ou ódio, a nos advertir constantemente de que a vida prossegue, de que vale a pena fazer o bem, viver dignamente, e que não há motivo para desespero, pois a morte é apenas uma mudança de estado, não é um adeus, mas sim um até breve.
E por que razão, mesmo quando somos iniciados no conhecimento da imortalidade, as nossas dificuldades são imensas para aceitar a dor da separação daqueles a quem amamos? Há várias causas para isso, que poderíamos denominar de imaturidade do senso espiritual, pelo fato de que nossa conduta nem sempre está de acordo com aquilo que pensamos e sabemos sobre os princípios espíritas:
“Quando a morte ceifa nas vossas famílias, arrebatando, sem restrições, os mais jovens antes dos velhos, costumais dizer: ‘Deus não é justo, pois sacrifica o que está forte e tem grande futuro e conserva os que já viveram longos anos cheios de decepções; pois leva os que são úteis e deixa os que já não servem para nada; pois despedaça o coração de uma mãe, privando-a da inocente criatura que era toda sua alegria’.
Humanos, é nesse ponto que precisais elevar-vos acima do terra-a-terra da vida, a fim de compreenderdes que o bem, muitas vezes, está onde julgais ver o mal, e a sábia previdência onde acreditais ver a cega fatalidade do destino. Por que medir a Justiça divina pela medida da vossa? Podeis supor que o Senhor dos mundos queira, por simples capricho, infligir-vos penas cruéis? Nada se faz sem um fim inteligente e, seja o que for que aconteça, tudo tem a sua razão de ser. Se perscrutásseis melhor todas as dores que vos atingem, nelas encontraríeis sempre a razão divina, razão regeneradora, e os vossos miseráveis interesses mereceriam uma consideração tão secundária, que os relegaríeis para o último plano” [3].
O fato, porém, de acreditarmos na sobrevivência do ser amado não significa que devamos reprimir o choro natural de saudade daquele que partiu, ou que devamos ocultar o sentimento puro que nos une no amor sem jaça. O que não convém é nos comprazer no luto, alimentando uma tristeza mórbida que em nada ajuda o ser que desapareceu de nossas vistas, conduta que se equipara a um mudo sentimento de rebeldia às leis do Criador:
“O Espírito é sensível à lembrança e às saudades daqueles que amou na Terra, mas uma dor incessante e fora de propósito o afeta penosamente, porque ele vê, nessa dor excessiva, falta de fé no futuro e de confiança em Deus e, por conseguinte, um obstáculo ao progresso e talvez ao reencontro com os que ficaram”.
Merece ser relembrada, a título de reflexão, antiga lenda árabe, já conhecida de muitos, encontrada no site “Perda de entes queridos [4]”, que ilustra bem o comportamento ideal ante a dor da morte:
Narra antiga lenda árabe que um rabino, religioso dedicado, vivia muito feliz com sua família, esposa admirável e dois filhos queridos.
Certa vez, por imperativos da religião, o rabino empreendeu longa viagem ausentando-se do lar por vários dias.
No período em que estava ausente, um grave acidente provocou a morte dos dois filhos amados. A mãe sentiu o coração dilacerado de dor.
No entanto, por ser uma mulher forte, sustentada pela fé e pela confiança em Deus, suportou o choque com bravura. Mas uma preocupação lhe vinha à mente: como dar ao esposo a triste notícia.
Sabendo-o portador de insuficiência cardíaca, temia que não suportasse tamanha comoção. Lembrou-se de fazer uma prece. Rogou a Deus auxílio para resolver a difícil questão.
Alguns dias depois, num final de tarde, o rabino retornou ao lar. Abraçou longamente a esposa e perguntou pelos filhos…
Ela pediu para que não se preocupasse. Que tomasse o seu banho, e logo depois ela lhe falaria dos moços.
Alguns minutos depois, estavam ambos sentados à mesa. Ela lhe perguntou sobre a viagem, e logo ele perguntou novamente pelos filhos.
A esposa, numa atitude um tanto embaraçada, respondeu ao marido: – Deixe os filhos. Primeiro quero que me ajude a resolver um problema que considero grave.
O marido, já um pouco preocupado, perguntou:
– O que aconteceu? Notei você abatida! Fale! Resolveremos juntos, com a ajuda de Deus.
– Enquanto você esteve ausente, um amigo nosso visitou-me e deixou duas joias de valor incalculável para que as guardasse. São joias muito preciosas! Jamais vi algo tão belo! O problema é esse! Ele vem buscá-las e eu não estou disposta a devolvê-las, pois já me afeiçoei a elas. O que você me diz?
– Ora mulher! Não estou entendendo o seu comportamento! Você nunca cultivou vaidades! … Por que isso agora?
– É que nunca havia visto joias assim! São maravilhosas!
– Podem até ser, mas não lhe pertencem! Terá que devolvê-las.
– Mas eu não consigo aceitar a ideia de perdê-las! E o rabino respondeu com firmeza: – Ninguém perde o que não possui. Retê-las equivaleria a roubo!
– Vamos devolvê-las, eu a ajudarei. Faremos isso juntos, hoje mesmo.
– Pois bem, meu querido, seja feita a sua vontade. O tesouro será devolvido. Na verdade isso já foi feito. As joias preciosas eram nossos filhos.
– Deus os confiou à nossa guarda e durante a sua viagem veio buscá-los. Eles se foram…
Se a vida continua após a morte, se a transitoriedade da vida na matéria tem a elevada finalidade de nos proporcionar a ascensão evolutiva, de oferecer ensejo a resgatarmos nossos equívocos do passado, não faz sentido que negligenciemos a nossa conduta espiritual e nos comportemos de forma incompatível com os ensinos espíritas ante os desafios de viver em um mundo de provas e expiações, sobretudo quando a dor da separação dos entes queridos nos visita inesperadamente.

[3] KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2ª. edição. 2ª. impressão. Brasília: FEB, 2014. cap. 5, it. 21.
[4] Texto: “As duas joias”.

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