A VONTADE DO HOMEM
A palavra liberdade é empregada
num sentido mais ou menos lato. Há filósofos que atribuem ao homem uma
liberdade ilimitada. A seu ver, o homem cria, por assim dizer, a sua própria
natureza, adquire as faculdades que deseja e age independente de qualquer lei.
Tal liberdade está em contradição com um ser criado. Tudo quanto possam dizer a
seu favor não passará de declamações enfáticas, desprovidas de senso e de
veridicidade.
Outros há que admitem uma
liberdade absoluta, em virtude da qual o homem age sem motivo. Isso, porém, é
presumir efeito sem causa, é isentar o homem da lei de causalidade. Seria uma
liberdade contraditória de si mesma, podendo-se proceder num mesmo caso bem ou
mal, mas sempre sem motivo. Inúteis seriam, então, todos os institutos de
finalidade beneficente, individual ou coletiva. De que serviriam as leis, a
Religião, as penalidades e recompensas, se nada determinasse o homem? Por que
esperar de outrem amizade e fidelidade, antes que ódio e perfídia? Promessas,
juramentos, votos, tudo ilusão! Tal liberdade nada tem de real, não passa de
especulativa e absurda.
Precisamos, ao contrário,
reconhecer uma liberdade acorde com a natureza humana, liberdade que a
legislação pressupõe liberdade raciocinada.
Três são as condições
fundamentais da legítima liberdade: em primeiro lugar, é preciso que a criatura
possa escolher entre vários motivos. Seguindo o motivo mais forte, ou agindo só
por prazer, já se não opera com liberdade. O prazer não é mais que uma falsa
aparência de liberdade. A ovelha que mastiga a erva com prazer não está
exercendo um ato livre.
Obedecendo a um desejo mais
forte, também o animal, quanto o homem, não pratica livremente, tampouco. A
condição precípua da liberdade é a inteligência, ou a faculdade de conhecer e
escolher os motivos. Quanto mais ativa a inteligência, mais ampla a liberdade.
Os idiotas natos, as crianças até uma certa idade, têm, às vezes, desejos muito
enérgicos, mas ninguém os considera livres, visto não possuírem inteligência
bastante para distinguir o falso do verdadeiro.
Os homens mais bem educados e os
mais inteligentes são os de quem, mais que dos ignorantes, deploramos as
faltas. À medida que se elevam na série das faculdades intelectivas, os animais
vão-se tornando mais livres e modificam mais individualmente os seus atos, de
acordo com as circunstâncias exteriores e com as lições de sua prévia
experiência. Se empregamos a violência para impedir o cão de perseguir a lebre,
ele se lembrará das pancadas que o aguardam e, árdego e trêmulo ao império dos
próprios desejos, não deixará de ceder. O homem, superior a todos os seus
irmãos da escala zoológica, é, por sua mesma natureza, o ser que goza de
liberdade no grau mais eminente. Só ele procura encadear efeitos e causas,
comparar melhor o presente e o passado, e daí tirar conclusões para o futuro.
Pesa as razões, detém-se nas que lhe parecem preferíveis, conhece a tradição.
Seu raciocínio decide e perfaz a vontade esclarecida, muitas vezes contrariamente
aos seus desejos.
Uma última condição da liberdade
é a influência da volição sobre os instrumentos que devam operar suas ordens
pessoais. O homem não é responsável por desejo ou por faculdades afetivas dele
independentes. A responsabilidade individual começa com a reflexão e com a
possibilidade de proceder voluntariamente. No estado de saúde os instrumentos
operatórios subordinam-se à influência da vontade. A fome é involuntária, mas,
se em senti-la, eu me abstiver de comer, exerço a influência da minha vontade
sobre os instrumentos do movimento voluntário. A cólera é involuntária, mas eu
não sou forçado a maltratar quem me provoque, só porque a minha vontade influi
em meus músculos. Perdido o domínio dessa influência, então sim, o homem já não
é livre. É o que amiúde sucede com os alienados, que experimentam desejos,
reconhecem a sua inconveniência, chegam a maldizê-los, mas não têm a força de
restringir os movimentos involuntários, chegando mesmo, algumas vezes, a pedir
que lhos embarguem.
A liberdade moral é a base mesma
da sociedade e se ela não passa de ilusão, todo o gênero humano, tanto as
nações incipientes como as mais civilizadas, que cultivam a Ciência e governam
a Matéria, bem como os povos remotos, toda a Humanidade, – repetimo-lo –
ter-se-ia deixado iludir pelo mais colossal dos erros que ainda existiu, depois
de enveredar pela senda mais falsa e injusta que possamos imaginar. Mas... que
dizemos: – injusta? Neste sistema, essa palavra nada significa e visto que o
bom e o mau não existem; visto não haver ordem moral, claro é que todas as
palavras concernentes à descrição dessa ordem, todos os pensamentos e
julgamentos carecem de sentido. E, contudo, a menos que abstraiamos a própria
consciência, não podemos anuir a semelhantes conclusões.
Quaisquer que sejam as
conclusões teóricas a que cheguem os lógicos na questão do livre arbítrio –
dizia Samuel Smiles –, todos sentimos que somos praticamente livres de escolher
entre o bem e o mal. Não somos o seixo que, lançado na torrente, apenas pode
seguir o curso das águas. Ao contrário, sentimos em nós a força do nadador, que
pode escolher a direção convinhável, lutar contra a corrente, ir mais ou menos
aonde lhe praza. Nenhum constrangimento absoluto nos empece a vontade. Sentimos
e sabemos no concernente aos nossos atos, que não somos encandeados por
qualquer espécie de magia. Todas as nossas aspirações para o bem e para o belo
ficariam paralisadas se pensássemos de modo diverso. Todos os negócios, nossa
conduta na vida, regime doméstico, contratos sociais, instituições públicas,
tudo, enfim se baseia na noção prática do livre-arbítrio. E sem ele, onde
estaria a responsabilidade? De que serviria ensinar, aconselhar, predicar,
reprimir, punir? Para que leis, se não houvesse uma crença universal como o próprio
fato universal, de que dos homens e de sua determinação depende conformar-se ou
não? O homem que melhor evidencia seu valor moral é o que se observa a si
mesmo, dirige as suas paixões, vive conforme a regra que se impôs, estuda suas
aptidões e suas falhas.
Eis, verdadeiramente, o homem:
sua grandeza está na sua liberdade. Não fora livre o homem, não se lhe
permitiria ter fome e sede, nem comer nem beber; nem senhorear, em coisa
alguma, as tendências do seu corpo. A ordem social não se teria constituído.
Mas nós não temos necessidade de
prova alguma exterior para afirmar a nossa liberdade. Ninguém melhor o sabe do
que a nossa própria consciência. Ela é, aliás, a única coisa que possuímos
completamente nossa, e a boa ou má direção que lhe damos, em definitivo, só
depende de nós. Nossos hábitos e pendores não são nossos amos, mas servos.
Mesmo quando com eles transigimos, a consciência adverte-nos de que poderíamos
resistir e que, para vencê-los, não careceríamos de fortaleza superior às
nossas possibilidades, se fizéssemos finca-pé. É pelo emprego livre da razão
que nos fazemos o que somos. Se ela apenas propende para o sensualismo é que a
vontade, forte e demoníaca, subjuga e escraviza a inteligência. Bem dirigida,
porém, essa mesma vontade compara-se a uma rainha, tendo por ministros as
faculdades intelectuais e presidindo ao maior desenvolvimento compatível com a
natureza humana.
Este pretenso ateísmo científico
tomou o encargo de rebaixar e destruir todos os caracteres da grandeza humana.
Não pode, contudo, impedir a alma de provar o seu valor, de assomar a matéria,
construindo-se de si mesma com os elementos do seu meio e do seu clima.
Ele, o materialismo, não percebe
que se a personalidade humana fosse resultado de influências fatalísticas da
Natureza, a criança e o selvagem, sob o governo quase exclusivo dessas forças,
seriam mais sensatos, mais íntegros que o sábio, o filósofo, o artista. Tal
consequência destrói, por si só, a teoria dos nossos adversários.
[1] Deus na
Natureza - Tomo III - Capítulo III - Camille
Flammarion
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