quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Os Espíritos Glóbulos[1]


 
A vontade de ver os Espíritos é coisa muito natural e conhecemos poucas pessoas que não desejariam fruir dessa faculdade. Infelizmente é uma das mais raras, sobretudo quando permanente. As aparições espontâneas são bastante frequentes, mas acidentais, e quase sempre motivadas por uma circunstância toda individual, baseada nas relações que podem ter existido entre o vidente e o Espírito que lhe aparece. Uma coisa é ver fortuitamente um Espírito; outra é vê-lo habitualmente e nas condições normais ordinárias. Ora, é aí que está o que constitui, a bem dizer, a faculdade dos médiuns videntes. Ela resulta de uma aptidão especial, cuja causa ainda é desconhecida e que pode desenvolver-se, mas que em vão seria provocada se não existisse a predisposição natural. É necessário, pois, que nos acautelemos contra as ilusões que podem nascer do desejo de possui-la, e que deram lugar a estranhos sistemas. Tanto combatemos as teorias temerárias pelas quais são atacadas as manifestações, sobretudo quando essas teorias denotam a ignorância dos fatos, quanto devemos procurar, no interesse da verdade, destruir ideias que provam mais entusiasmo que reflexão e que, por isso mesmo, fazem mais mal do que bem, levando ao ridículo.
A teoria das visões e das aparições é hoje perfeitamente conhecida. Desenvolvemo-la em vários artigos, especialmente nos números de dezembro de 1858, fevereiro e agosto de 1859, e no nosso O Livro dos Médiuns, ou Espiritismo Experimental[2]. Portanto, não a repetiremos aqui; lembraremos apenas alguns pontos essenciais, antes de chegar ao exame do sistema dos glóbulos.
Os Espíritos podem ser vistos sob diferentes aspectos; o mais frequente é a forma humana. Sua aparição geralmente ocorre sob uma forma vaporosa e diáfana, às vezes vaga e imprecisa. A princípio quase sempre é uma claridade esbranquiçada, cujos contornos pouco a pouco se vão delineando.
De outras vezes as linhas são mais acentuadas e os menores traços da fisionomia são desenhados com tal precisão que permite dar-lhes descrição mais exata. Nesses momentos, certamente um pintor poderia fazer o seu retrato com tanta facilidade quanto faria o de uma pessoa viva. As maneiras e o aspecto são os mesmos que tinha o Espírito quando encarnado. Podendo dar todas as aparências ao seu perispírito, que constitui seu corpo etéreo, ele se apresenta sob a que melhor o faça reconhecível. Assim, embora como Espírito não mais tenha nenhuma das enfermidades corpóreas que pudesse ter experimentado como homem, mostrar-se-á estropiado, coxo ou corcunda, se o julga conveniente para atestar a sua identidade.
Quanto às vestes, compõem-se geralmente de um amontoado de pano, terminando em longa túnica flutuante; é, pelo menos, a aparência dos Espíritos superiores, que nada conservaram das coisas terrestres. Os Espíritos vulgares, porém, os que aqui conhecemos, quase sempre aparecem com os trajos que usavam no último período de sua vida.
Frequentemente, os Espíritos mostram atributos característicos da posição que ocuparam. Os superiores têm sempre uma figura bela, nobre e serena; os inferiores, ao contrário, têm uma fisionomia vulgar, espelho onde se refletem as paixões mais ou menos ignóbeis que os agitavam. Algumas vezes ainda revelam os vestígios dos crimes que praticaram, ou dos suplícios que padeceram.
Coisa interessante é que, salvo em circunstâncias especiais, as partes menos acentuadas são os membros inferiores, enquanto a cabeça, o tronco e os braços são sempre claramente desenhados.
Dissemos que as aparições têm algo de vaporoso, malgrado sua nitidez. Em certos casos, poderíamos compará-las à imagem que se reflete num espelho sem estanho, o que não impede se vejam os objetos que lhe estão por detrás. Geralmente, é assim que os médiuns videntes as percebem. Eles as veem ir e vir, entrar, sair, andar por entre os vivos com ares – pelo menos se se trata de Espíritos comuns – de participarem ativamente de tudo quanto se passa em derredor deles, de se interessarem segundo o assunto, de ouvirem o que dizem os humanos. Com frequência são vistos a se aproximar das pessoas, a lhes insuflar ideias, a influenciá-las, a consolá-las, a se mostrar tristes ou contentes conforme o resultado que obtenham. Numa palavra: constituem como que a réplica ou o reflexo do mundo corpóreo, com suas paixões, vícios ou virtudes, mais virtudes do que a nossa natureza material dificilmente nos permite compreender. Tal é esse mundo oculto que povoa os espaços, que nos cerca, dentro do qual vivemos sem o perceber, como vivemos em meio às miríades de seres do mundo microscópico.
Mas pode acontecer que o Espírito revista uma forma ainda mais precisa e tome todas as aparências de um corpo sólido, a ponto de causar completa ilusão e dar a crer, aos que observam a aparição, que têm diante de si um ser corpóreo. Enfim, a tangibilidade pode tornar-se real, isto é, possível se torna ao observador tocar, apalpar o corpo, sentir a mesma resistência, o mesmo calor que num corpo vivo, apesar de poder se desvanecer com a rapidez do relâmpago. Embora a aparição desses seres, designados pelo nome de agêneres, seja muito rara, é sempre acidental e de curta duração e, sob essa forma, não poderiam tornar-se os comensais habituais de uma casa.
Sabe-se que, entre as faculdades excepcionais de que o Sr. Home deu provas irrecusáveis, deve-se colocar a de fazer aparecerem mãos tangíveis, que podem ser apalpadas e que, por seu lado, podem pegar, apertar e deixar marcas na pele. As aparições tangíveis, dizemos, são bastante raras, mas as que ocorreram nestes últimos tempos confirmam e explicam as que a História registra, a respeito de pessoas que se mostraram depois de mortas com todas as aparências da natureza corporal. Aliás, por mais extraordinários que sejam, tais fenômenos perdem inteiramente todo o caráter de maravilhoso, quando conhecida a maneira por que se produzem e quando se compreende que, longe de constituírem uma derrogação das leis da Natureza, são apenas efeito de uma aplicação dessas leis.
Quando os Espíritos revestem a forma humana, não poderemos nos enganar. Já o mesmo não acontece quando tomam outras aparências. Não falaremos de certas imagens terrestres refletidas pela atmosfera, que alimentaram a superstição das pessoas ignorantes, mas de alguns outros efeitos sobre os quais até homens esclarecidos puderam enganar-se. É aí, sobretudo, que nos devemos pôr em guarda contra a ilusão, para não nos expormos a tomar por Espíritos fenômenos puramente físicos.
Nem sempre o ar é perfeitamente límpido; há circunstâncias em que a agitação e as correntes de moléculas aeriformes, produzidas pelo calor, são perfeitamente visíveis. A aglomeração dessas partículas forma pequenas massas transparentes que parecem nadar no espaço e que deram lugar ao singular sistema dos Espíritos sob a forma de glóbulos. A causa dessa aparência está no próprio ar, mas também pode estar no olho.
O humor aquoso oferece pontos imperceptíveis, que hão perdido alguma coisa da sua natural transparência. Esses pontos são como corpos semi-opacos em suspensão no líquido, cujos movimentos e ondulações eles acompanham. Produzem no ar ambiente e a distância, por efeito do aumento e da refração, a aparência de pequenos discos, por vezes irisados, variando de 1 a 10 milímetros de diâmetro. Vimos certas pessoas tomarem esses discos por Espíritos familiares, que as seguiam e acompanhavam a toda parte e, em seu entusiasmo, verem figuras nos matizes da irisação. Uma simples observação, fornecida por essas pessoas, reconduzi-las-ão ao terreno da realidade.
Os aludidos discos, ou medalhões, dizem elas, não só as acompanham, como lhes seguem todos os movimentos, vão para a direita, para a esquerda, para cima, para baixo, ou param, conforme o movimento que elas fazem com a cabeça. Esta coincidência, por si só, prova que a sede da aparência está em nós, e não fora de nós, e o que o demonstra, além disso, é que, em seus movimentos ondulatórios, jamais esses discos se afastam de um certo ângulo; como, porém, não seguem bruscamente o movimento da linha visual, parecem ter certa independência. A causa desse efeito é bem simples. Os pontos opacos ou semi-opacos do humor aquoso, causa primeira do fenômeno, são, já dissemos, mantidos em suspensão, mas tendendo sempre a descer. Quando sobem, é que foram solicitados pelo movimento dos olhos, de baixo para cima; chegados a certa altura, se o olho se torna fixo, nota-se que os discos descem lentamente, depois param. Sua mobilidade é extrema, porquanto basta um movimento imperceptível do olho para fazê-los percorrer no raio visual toda a amplitude do ângulo em sua abertura no espaço, onde se projeta a imagem.
O mesmo diremos das centelhas que se produzem algumas vezes em feixes mais ou menos compactos, pela contração do músculo do olho, e são devidas, provavelmente, à fosforescência ou à eletricidade natural da íris, porque geralmente adstritas à circunferência do disco desse órgão.
Tais ilusões não podem provir senão de uma observação incompleta. Quem quer que tenha estudado a natureza dos Espíritos, por todos os meios que a ciência prática faculta, compreenderá tudo o que elas têm de pueril. Se esses glóbulos aéreos fossem Espíritos, teríamos de convir que estariam reduzidos a um papel puramente mecânico para seres inteligentes e livres, papel sofrivelmente fastidioso para os Espíritos inferiores e, com mais forte razão, incompatível com a ideia que fazemos dos Espíritos superiores.
Os únicos sinais que, realmente, podem atestar a presença dos Espíritos são os sinais inteligentes. Enquanto não ficar provado que as imagens de que acabamos de falar, ainda que assumindo a forma humana, têm movimento próprio, espontâneo, com evidente caráter intencional e acusando uma vontade livre, nisso não veremos senão fenômenos fisiológicos ou ópticos. A mesma observação se aplica a todos os gêneros de manifestações, sobretudo aos ruídos, às pancadas, aos movimentos insólitos dos corpos inertes, que milhares de causas físicas podem produzir.
Repetimos: enquanto um efeito não for inteligente por si mesmo, e independente da inteligência dos homens, é preciso olhá-lo duas vezes antes de o atribuir aos Espíritos.



[1] Revista Espírita FEVEREIRO DE 1860 – Allan Kardec - N. do T.: vide O Livro dos Médiuns – Segunda Parte – Capítulo VI – item 108.
[2] N. do T.: Vide O Livro dos Médiuns, Segunda Parte, capítulo VI: Manifestações visuais.

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