segunda-feira, 21 de setembro de 2015

UM SONHO INSTRUTIVO[1]




Allan Kardec

          Durante a última doença que tivemos no corrente abril de 1866, estávamos sob o império de uma sonolência e de uma absorção quase contínuas; naqueles momentos revíamos constantemente coisas insignificantes, e às quais não prestávamos nenhuma atenção; mas na noite de 24 de abril, a visão ofereceu um caráter tão particular que por ela fomos vivamente tocados.
          Num lugar que nada lembrava à nossa lembrança e que parecia uma rua, havia uma reunião de indivíduos que conversavam juntos; dentre eles, somente alguns nos sendo conhecidos em sonho, mas sem que pudéssemos designá-los nominalmente. Considerávamos essa multidão e procurávamos saber o assunto da conversação, quando, de repente, apareceu num ângulo da parede uma inscrição em caracteres pequenos brilhantes como fogo, e que nos esforçávamos por decifrar; estava assim concebida: "Descobrimos que a borracha rolada sob a roda faz uma légua em dez minutos, contanto que a estrada....."   Enquanto procurávamos o fim da frase, a inscrição se apagou pouco a pouco, e despertamos. Com medo destas singulares palavras, nos apressamos em transcrevê-las.
          Qual poderia ser o sentido dessa visão, que absolutamente nada em nossos pensamentos, nem em nossas preocupações, poderia ter provocado? Não nos ocupando nem de invenções nem de pesquisas industriais, isso não poderia ser um reflexo de nossas ideias. Depois, que poderia significar essa borracha que, rolada sob uma roda, faz uma légua em dez minutos? Era a revelação de alguma nova propriedade dessa substância? Estaria chamada a desempenhar um papel na locomoção? Queria-se nos colocar no caminho de uma descoberta? Mas, então, por que dirigir-se a nós antes que a homens especiais, tendo o tempo suficiente para fazer os estudos e as experiências necessárias? No entanto, esse sonho era muito característico, muito especial, para ser alinhado entre os sonhos de fantasia; deveria ter um objetivo; qual era? É o que procurávamos inutilmente.
          No dia, tendo tido ocasião de consultar o doutor Demeure sobre a nossa saúde, disso aproveitamos para pedir-lhe nos dizer se esse sonho apresentava alguma coisa de sério. Eis o que ele nos respondeu:
          Os numerosos sonhos que vos cercaram nestes últimos dias são o resultado do próprio sofrimento que sentis. Todas as vezes que há um enfraquecimento do corpo, há tendência ao desligamento do Espírito; mas quando o corpo sofre, o desligamento não se opera de maneira regular e normal; o Espírito é incessantemente chamado ao seu posto; daí uma espécie de luta, de conflito, entre as necessidades materiais e as tendências espirituais; daí também as interrupções e as misturas que confundem as imagens e delas fazem conjuntos bizarros e desprovidos de sentido. O caráter dos sonhos se liga, mais do que se crê, à natureza da doença; é um estudo a fazer, e os médicos nele encontrarão, frequentemente, diagnósticos preciosos, quando reconhecerem a ação independente do Espírito e o papel importante que desempenha na economia. Se o estado do corpo reage sobre o Espírito, de seu lado o estado do Espírito influi poderosamente sobre a saúde, e, em certos casos, é tão útil agir sobre o Espírito quanto sobre o corpo; ora, a natureza dos sonhos pode, frequentemente, ser um indício do estado do Espírito. É, eu o repito, um estudo a fazer, negligenciado até este dia pela ciência, que não vê por toda a parte senão a ação da matéria e não leva em nenhuma conta o elemento espiritual.
          O sonho que me assinalais, aquele do qual guardais uma lembrança tão nítida, me parece pertencer a uma outra categoria: ele contém um fato notável e digno de atenção; certamente, foi motivado, mas não saberia dele dar-lhe presentemente uma explicação satisfatória; não poderia vos dar senão a minha opinião pessoal, da qual não estou bastante seguro. Tomarei minhas informações em boa fonte, e amanhã vos darei parte daquilo que tiver sabido. No dia seguinte ele nos deu a explicação que se segue:
          O que vistes no sonho, que estou encarregado de vos explicar, não é uma dessas imagens fantásticas provocadas pela doença; é muito realmente uma manifestação, não de Espíritos desencarnados, mas de Espíritos encarnados. Sabeis que, no sono, podem se encontrar com pessoas conhecidas ou desconhecidas, mortas ou vivas; foi este último caso que ocorreu nessa circunstância. Aqueles que vistes são encarnados que se ocupam separadamente, e sem se conhecerem na maioria, de invenções tendentes à aperfeiçoar os meios de locomoção, e anulando, tanto quanto possível, o excesso de despesa causado pelo desgaste dos materiais hoje em uso. Uns pensaram em borracha, outros em outras matérias; mas o que há de particular é que se quis chamar a vossa atenção, como assunto de estudo psicológico, sobre a reunião, num mesmo lugar, dos Espíritos de diferentes homens perseguindo o mesmo objetivo. A descoberta não tem relação com o Espiritismo; foi somente o conciliábulo dos inventores que se quis vos fazer ver, e a inscrição não tinha outro objetivo senão o de especificar, aos vossos olhos, o objeto principal de sua preocupação, porque há os que procuram outras aplicações da borracha. Ficai persuadido de que, frequentemente, o é assim, e que quando vários homens descobrem ao mesmo tempo, seja uma nova lei, seja um novo corpo, sobre diferentes pontos do globo, seu Espírito estudou junto a questão durante o sono, e, ao despertar, cada um trabalha de seu lado, aproveitando o fruto de suas observações.
          Notai bem que aí estão as ideias de encarnados, e que não prejulgam nada sobre o mérito da descoberta; pode ser que, de todos os cérebros em ebulição, saia alguma coisa de útil, como é possível que deles não saia senão quimeras. Não tenho necessidade de vos dizer que seria inútil interrogar os Espíritos a esse respeito; sua missão, como o dissestes em vossas obras, não é poupar ao homem o trabalho das pesquisas trazendo-lhe invenções inteiramente feitas, que seriam tanto prêmios de encorajamento para a preguiça e a ignorância. Nesse grande torneio da inteligência humana, cada um ali está por sua própria conta, e a vitória é do mais hábil, do mais perseverante, do mais corajoso.
          Pergunta: Que é preciso pensar das descobertas atribuídas ao acaso? Não há delas que não são o fruto de nenhuma pesquisa?
          Resposta: O acaso, bem o sabeis, não existe; as coisas que vos parecem o mais fortuitas têm sua razão de ser, porque é preciso contar com as inumeráveis inteligências ocultas que presidem a todas as partes do conjunto. Se o tempo de uma descoberta chegou, seus elementos são postos à luz por essas mesmas inteligências; vinte homens, cem homens passarão ao lado sem notá-la: um único lhe dará sua atenção; não era tudo encontrá-la, o essencial era saber colocá-la em obra. Não foi o acaso que lho colocou sobre os olhos, mas os bons Espíritos que lhe disseram: “Olha, observa e aproveita se tu o quiseres”. Depois, ele mesmo, nos momentos de liberdade de seu Espírito, durante o sono de seu corpo, pôde ser colocado no caminho, e, em seu despertar, instintivamente, se dirige para o lugar onde deve encontrar a coisa que está chamado a fazer frutificar por sua inteligência.
          "Não, não há acaso: tudo é inteligente na Natureza."


[1] Fonte: Revista Espírita Junho de 1866

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