A anestesia foi um grande avanço médico, nos permitindo perder a consciência durante uma cirurgia e também em outros procedimentos dolorosos.
O problema é que nós não temos
muita certeza de como ela funciona. Entretanto, agora, com alguns estudos,
estamos cada vez mais perto de resolver essa questão, e juntamente com ela, o
próprio mistério da nossa consciência.
Quando alguém recebe um
anestésico, sua atividade cerebral e a cognição continuam funcionando, mas a consciência simplesmente desliga. Por
exemplo, alguns experimentos com ratos mostram que eles são capazes de
“lembrar” perfeitamente de odores mesmo estando anestesiados. É por isso que o anestesiologista
Stuart Hameroff, da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, é tão
fascinado por esse universo.
"Anestésicos apagam pedaços
da consciência de maneira bastante
seletiva, poupando atividade cerebral não-consciente", disse Hameroff.
"Assim, o mecanismo de ação do anestésico precisa ser direcionado para o
da consciência”. Por isso, hoje, as
chances de algo ruim acontecer enquanto estamos anestesiados são extremamente
pequenas. Porém, nem sempre foi assim.
De fato, a área da
anestesiologia já percorreu um longo caminho desde 1846, quando o médico
William Morton, no Hospital Geral de Massachusetts, realizou uma pequena
cirurgia de retirada de um tumor na boca de um homem. Para diminuir a dor, ele
usou uma garrafa de éter como inalador e o paciente ficou totalmente
inconsciente. Nesse momento, a anestesia começou a realmente ganhar importância
em procedimentos cirúrgicos.
Aproximadamente em 1940, a visão
da anestesia como uma proposta arriscada ainda era muito recorrente. Naquela
época, uma em cada 1.500 mortes foram atribuídas à anestesia perioperatória.
Esse número, desde então, reduziu bastante com o tempo, principalmente por
conta da melhora das técnicas e dos produtos químicos utilizados, dos padrões
de segurança e do influxo de anestesistas credenciados. Hoje, as possibilidades
de um paciente saudável sofrer uma morte por conta da anestesia é inferior a 1
em 200.000. Isso equivale à chance de 0,0005% de haver uma fatalidade.
Deve ser salientado, no entanto,
que "paciente saudável" é o termo operativo. Na realidade, as mortes
relacionadas com a anestesia estão em ascensão em outras áreas e idades, e o
envelhecimento da população tem muito a ver com isso. Depois de décadas de
declínio, a taxa de mortalidade em todo o mundo aumentou.
Durante o efeito da anestesia,
há cerca de 1,4 mortes em 200 mil, em pacientes considerados “não saudáveis”.
De forma alarmante, o número de mortes dentro de um ano após uma anestesia
geral é perturbadoramente alto: cerca de 1 em cada 20 pessoas acima de 65 anos.
O anestesista André Gottschalk diz que as taxas aumentaram porque há mais
idosos sendo operados, considerando que a anestesia pode ser estressante para
pessoas com problemas cardíacos ou com a pressão arterial elevada.
Entretanto, há outros perigos
associados à anestesia. Ela pode induzir uma condição conhecida como delírio
pós-operatório, um estado de confusão grave e perda de memória. Após a
cirurgia, alguns pacientes se queixam de alucinações, adquirem problemas para
responder perguntas, repetem muitas coisas e esquecem por que estão no
hospital. Estudos têm mostrado que cerca de metade dos pacientes com 60 anos ou
mais sofrem com esse tipo de delírio. Esta condição, normalmente, se resolve
após um ou dois dias. Contudo, para algumas pessoas, tipicamente aquelas com
idade superior a 70 anos e com um histórico de déficits mentais, uma alta dose
é suficiente para resultar em problemas crônicos de atenção e memória, que
podem durar meses ou anos.
Os pesquisadores especulam que
isso se deve não à qualidade dos anestésicos, mas sim à quantidade. E este não
é um problema fácil de resolver: quando a quantidade de anestésicos não é
suficiente, o paciente pode acordar no meio do processo; e quando ela está em
excesso, pode matá-lo. É um equilíbrio difícil de alcançar, porque, como a
escritora Maggie Koerth-Baker aponta: "A consciência não é algo que
podemos medir".
Em um estudo, alguns pacientes
receberam “propofol”, e outros, vários gases anestésicos. Na manhã após a
cirurgia, 16% que recebeu a anestesia fotossensível exibiam confusão, em
comparação a 24% que foi anestesiado normalmente. Da mesma forma, 15% dos
pacientes que já tinham um histórico mental complicado permaneceram por pelo
menos três meses no hospital se recuperando dos danos causados. Para ajudar a
aliviar estes efeitos, os médicos são encorajados a falarem com seus pacientes
durante a anestesia regional e garantir que eles estejam bem nutridos e
hidratados, melhorando o fluxo de sangue para o cérebro durante a cirurgia.
Normalmente, a anestesia é
aplicada com uma injeção contendo um medicamento chamado “propofol”, que dá uma
transição rápida e suave para a inconsciência. Para operações mais longas, é
adicionado um anestésico inalatório chamado “isoflurano” para garantir que o
paciente não irá acordar. Mesmo sendo medicamentos comuns e sejam conhecidos
seus efeitos, os neurocientistas ainda não possuem certeza de como esses
produtos químicos funcionam na consciência.
É aí que a neurociência aparece tentando iluminar esse mistério.
Os pesquisadores precisam traçar
os correlatos neurais da consciência
(NCCs), que são variações na função cerebral que podem ser observados quando
uma pessoa vai de consciente ao
inconsciente. Estes NCCs podem ser ondas cerebrais, respostas físicas,
sensibilidade à dor, enfim, só precisam ser diretamente relacionadas com a consciência.
Os cientistas sabem há algum
tempo que a potência anestésica se correlaciona com a solubilidade em um
ambiente. Para isso, eles incapacitam várias proteínas diferentes que agem na
superfície dos neurônios, que são essenciais para a regulação do sono, da
atenção e da aprendizagem. Ou seja, as atividades neuronais são interrompidas
em diversas regiões do cérebro que, em conjunto, provoca a inconsciência.
Onde fica o mistério então? O
problema é que os neurocientistas não tinham sido capazes de descobrir qual (ou
quais) região do cérebro é responsável por esse efeito. Há uma teoria chamada
de “espaço de trabalho global” que influencia nessa explicação. Esse pensamento
sustenta que a consciência é um
fenômeno amplamente distribuído, onde a informação sensorial é recebida
inicialmente em regiões separadas do cérebro, sem que estejamos conscientes
disso. Estes sinais são transmitidos para uma rede neuronal que os distribuem
por todo o cérebro e, a partir daí, ele começa a funcionar em sincronia.
Como o grau de sincronia é algo
cuidadosamente calibrado, os anestésicos devem ser manipulados com igual
cuidado a fim de perturbar essa harmonia. De fato, os anestésicos podem
provocar a inconsciência, bloqueando a capacidade do cérebro de integrar
corretamente as informações. A sincronia entre diferentes áreas do córtex
(parte do cérebro responsável pela atenção, consciência, pensamento e memória)
fica embaralhada e, então, a consciência
é desligada. Segundo o pesquisador Andres Engels, a comunicação de longa
distância fica bloqueada, de modo que o cérebro não consegue construir um
espaço de trabalho geral. "É como se a mensagem chegasse na caixa de
correio, mas ninguém viesse pegá-la". O “propofol”, em particular, parece
causar uma sincronia anormalmente forte entre outras regiões do cérebro e o
córtex primário. Quando muitos neurônios disparam em um ritmo fortemente
sincronizado, não há espaço para a troca de mensagens específicas.
Complementando essa ideia,
pesquisadores da Universidade da Califórnia dizem que o retorno da atividade
cerebral consciente ocorre em grupos distintos, como se fosse um agregado de
computadores que não ligam ao mesmo tempo. Isso não é de um todo ruim, já que
algumas partes, quando religadas, dão impulso para outras ligarem em seguida, e
é assim vai até que a consciência seja plenamente reestabelecida. "A
recuperação de uma anestesia não é simplesmente o resultado da retirada do
medicamento do corpo da pessoa, mas também é um trabalho árduo para o cérebro
encontrar o caminho de volta por meio de um labirinto de possíveis estados de
atividade, que permitem a atuação da consciência”,
observou o pesquisador Andrew Hudson. "Simplificando, é como se o cérebro
reiniciasse".
Há também o trabalho de Stuart
Hameroff que deve ser ressaltado, embora sua abordagem sobre a consciência ainda seja especulativa.
Tendo base um estudo feito por Rod Eckenhoff na Universidade da Pensilvânia, a
pesquisa demonstrou que os anestésicos agem em microtúbulos, polímeros extremamente
pequenos de proteínas de forma cilíndrica que fazem parte do citoesqueleto
celular. Juntamente com Travis Craddock, Hameroff colocou a possiblidade dos
anestésicos se ligarem aos microtúbulos, afetando-os e desestabilizando-os, o
que explicaria, então, a disfunção cognitiva relacionada à anestesia.
De fato, existem estudos sobre o
cérebro dos mais variados tipos e, definitivamente, ainda há um caminho longo
para percorrer. Provavelmente, será por meio de pesquisas com base em respostas
conscientes que poderá ser possível, um dia, chegar a compreender melhor aquilo
que chamamos de mente.
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