quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Filosofia viva e racional, sem o espírito de sistema[1]




A posição filosófica de Kardec – Uma lição de Casirer – A moral espírita decorre dos ensinos do Cristo.

Kardec foi ou não foi um filósofo? O Espiritismo é ou não é uma filosofia, um sistema filosófico? Essas indagações vêm sendo formuladas ultimamente, em alguns meios espíritas, diante da alegação de alguns adversários da doutrina, em sentido contrário.
Justo, pois, que alguns leitores nos interpelem a respeito, tanto mais quando ainda há pouco houve uma referência ao assunto, neste mesmo jornal. Por outro lado, o problema é realmente de interesse doutrinário.
A propósito de Kardec, a primeira coisa a considerar é que ele jamais se disse filósofo ou pretendeu entrar para a galeria dos filósofos. Sua especialidade era a pedagogia. Foi discípulo emérito de Pestalozzi e interessou-se a fundo pelos problemas pedagógicos, deixando, na França, numerosos livros didáticos. Apesar de sua vasta cultura, e de ser constantemente solicitado pelos meios culturais da época, o interesse de Kardec não se voltava para as glórias humanas. Preferiu colocar o seu saber e a sua inteligência a serviço da espiritualidade.
Quanto ao Espiritismo, é indiscutível a existência de uma filosofia espírita, cujo tratado fundamental é O Livro dos Espíritos.
Nesse ponto, poderíamos ver uma contradição com o que dissemos acima. Basta lembrarmos, porém, que O Livro dos Espíritos não é de Kardec, mas dos Espíritos, para vermos que não há contradição.
O próprio mestre fez sempre questão de esclarecer que a filosofia espírita não fora elaborada por ele, mas pelas entidades espirituais que, sob a égide do Espírito da Verdade, transmitiram-lhe a nova revelação.
Há pouco, alguém declarou, em entrevista a um jornal do norte do país, que O Livro dos Espíritos não pode ser considerado um livro filosófico, porque não está vazado na linguagem técnica.
Seria o caso de perguntarmos se filosofia é uma técnica de linguagem ou um processo de indagação da verdade através do pensamento. Parafraseando conhecida passagem evangélica, podemos dizer que a filosofia é senhora da linguagem técnica e não o contrário. O que importa em O Livro dos Espíritos é a filosofia contida nas suas páginas, e não qualquer espécie de vocabulário técnico, da mesma maneira que o que importa no Evangelho é a sua filosofia de vida, não as suas formas de expressão.
Outra coisa de que devemos nos lembrar é que O Livro dos Espíritos não se destinava a criar uma nova escola filosófica, mas a fazer uma nova revelação. Assim como, sobre a revelação do Cristo, os homens trabalharam para construir sistemas filosóficos, assim também, sobre a revelação do Espírito da Verdade, os filósofos poderão construir os seus sistemas. Mas, da mesma maneira por que existe uma filosofia cristã, representada pelos princípios evangélicos, que transformaram o mundo, também existe uma filosofia espírita, orientando as novas transformações por que o mundo tem de passar, para que o Reino de Deus nele se estabeleça.
Ainda hoje se discute se existe ou não uma filosofia cristã.
Não é, pois de estranhar que se pergunte pela filosofia espírita.
Entretanto, no próprio O Livro dos Espíritos encontramos uma explicação de Kardec a respeito deste assunto. Diz o mestre: “Ele foi escrito por ordem de (e ditado pelos) Espíritos Superiores, para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, livre dos prejuízos do espírito de sistema”. Como se vê, não interessava a Kardec formular um sistema filosófico no estilo clássico, aliás, já superado inteiramente hoje em dia, quando se compreende que a verdade não pode ser encerrada na melhor das sistematizações humanas.
Os que não veem filosofia no Espiritismo e não reconhecem a Kardec uma posição filosófica, em virtude de questões puramente formais e, portanto, convencionais, deviam lembrar-se de que Jesus também não formulou um sistema filosófico, ao gosto da época, e que o verdadeiro pai da filosofia grega, Sócrates, também não se interessou por isso. Ernst Casirer, em sua Antropologia Filosófica, acentuando a inconveniência dos sistemas clássicos, declara: “Cada teoria se converte num leito de Procusto, em que os fatos empíricos são obrigados a se acomodar a um padrão preconcebido”. Como se vê, a opinião de Kardec, sobre os inconvenientes do “espírito de sistema”, é referendada por um dos maiores pensadores atuais.
Uma das coisas que se aponta, em O Livro dos Espíritos, como antifilosófico, é a forma didática e, particularmente, a forma dialogada. Devemos lembrar, porém, que o diálogo é uma forma tradicional de exposição filosófica, em que os grandes filósofos sempre foram mestres. A pedagogia é uma parte da filosofia, e a própria filosofia é também pedagógica, segundo assinala René Hubert, acentuando: “Toda filosofia aspira a difundir-se, a ser uma propaganda. Ter a mão cheia de verdades e conservá-la fechada é de espíritos tacanhos. O que seria, pois, uma verdade que não quisesse comunicar-se?”
De tudo o que ficou dito, conclui-se que a posição filosófica de Kardec é inegável, embora ele nunca se disse filósofo; que o Espiritismo possui uma filosofia, racional e livre do espírito de sistema; e, por fim, que o problema filosófico do Espiritismo é o mesmo do Cristianismo. Quando à existência de uma ética espírita, negada por ilustre opositor da doutrina, repetimos que a moral espírita é a do Cristo, como se vê em O Evangelho segundo o Espiritismo, e que a terceira parte de O Livro dos Espíritos é inteiramente dedicada ao estudo das leis morais.


[1] O Mistério do Bem e do Mal  - J. Herculano Pires – 2ª. Edição – São Bernardo do Campo: Correio Fraterno, 2008

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